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2. Ética da vida

2.3 O momento da factibilidade

Finalmente, o que resta perquirir é como a ética, mesmo depois de atendidos aos momentos ético-material e ético-formal, responde à factibilidade, quais são as suas condições de realização, quais as circunstâncias concretas de sua operabilidade: “Uma critério que devemos entender porque entre os M ky não existe a palavra viver, mas apenas a con-viver, e porque a comunidade, nos primórdios, se reúne a fim de decidir se saem ou não da Casa da Pedra.

80 É mister também recordar o valor que Paulo Freire delega ao diálogo como campo no qual os humanos pronunciam o mundo e, pronunciando-o, criam-no, coletivamente, visto que somente é possível dialogar com “o outro”. Afirma, pois, Paulo Freire (2003: 78): “(...) se dizer a palavra verdadeira, que é trabalho, que é práxis, é transformar o mundo, dizer a palavra não é privilégio de alguns homens, mas direito de todos os homens. Precisamente por isto, ninguém pode dizer a palavra verdadeira sozinho, ou dizê-la para os outros, num ato de prescrição, com o qual rouba a palavra aos demais. O diálogo é este encontro de homens, mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu.”

81 “O momento ético-processual da factibilidade realizadora (não é meramente procedimental, mas processo, processual) que, num primeiro momento, é exercício da razão instrumental e estratégica formais, com referência a juízos de fato; num segundo momento, é confronto deste exercício dos princípios ético-material e moral-formal, dando como resultado a máxima ou norma do ato ‘bom’, da instituição ‘legítima’, do sistema cultural vigente (Sittlichkeit), etc.” (Dussel, 2002: 238)

50 norma ou práxis impossível (lógica, empírica ou facticamente) não é realizável” (Dussel, 2002: 260). Esse escrutínio Dussel faz tendo por base Franz Hinkelammert e o seu livro

Crítica da razão utópica82.

As exigências ético-material e ético-formal devem corresponder às factibilidades, às possibilidades de realização. Claro está: a exigência de vida, de corporalidade e a exigência de que a comunidade ético-crítica discuta a corporalidade, a vida etc. são basilares para a produção, a reprodução e o desenvolvimento da vida, mas também deve estar claro que a vida somente será possível de ser realizada de tal forma se a comunidade ético-crítico- discursiva, para realizar o princípio ético-material, perquira sobre as possibilidades e os “como” da realização da vida, realizando-a.

(...) qualquer imaginação da “melhor sociedade possível” tem que partir da “melhor sociedade concebível”. Logo, a melhor sociedade possível sempre se apresenta como aproximação ou antecipação da melhor sociedade concebível, mas, necessariamente, a melhor sociedade possível sempre é inferior à melhor sociedade concebível. Por isso, o conteúdo do possível é sempre algo impossível, mas que dá sentido e direção ao possível, em cujo quadro se apresentam as valorações éticas arbitrárias. (HINKELAMMERT, 1988: 18)

Por esta forma, o conteúdo do discurso ético-crítico e material, quando impossível, dá rumo às possibilidades da comunidade em vista da realização da vida. É, portanto, discutindo sobre as impossibilidades e possibilidades, em comunidade ético-crítica, que as possibilidades se transformam em práticas; e, o que hoje a comunidade enxerga como

impossível, amanhã, de novo em comunidade ético-crítica, servirá como direcionamento do possível. É neste sentido que “a política é a arte do possível”83. Não se trata de submeter a

82 Nesta obra, Hinkelammert constrói uma análise, a partir das teorias sociais mais importantes e da realidade histórica do mundo nos anos de 1980*, tentando reconhecer o processo de “produção das utopias”, os seus discursos, as suas éticas implícitas e as conseqüências reais para a história humana. *A primeira edição do livro é de 1984, na Costa Rica; no Brasil, a primeira edição é de 1986.

83 Assim diz Hinkelammert, ao prefaciar o seu Crítica: “A necessidade da crítica à razão utópica na atualidade não carece de muita justificação [veja-se que ele está escrevendo em 1984; antes, inclusive, do Fim da

história, de Fukuyama]. Todos os pensamentos sociais do século passado e até de séculos anteriores nos legaram a tradição de uma espécie de ingenuidade utópica que recobre como um véu a percepção da realidade social. Para onde quer olhemos, podemos ver teorias sociais que buscam as raízes empíricas dos maiores sonhos humanos, para posteriormente descobrir algum modo de realizá-los a partir do tratamento adequado dessa realidade. Essa ingenuidade utópica está presente tanto no pensamento burguês (...) como no

51 prática ao “faremos somente o que for possível”, mas de enxergar os limites reais da discursividade e realizar o possível-momentâneo ampliando os horizontes das possibilidades comunitárias.

Assim se define, pois, o princípio ético de factibilidade na Ética da Libertação:

O princípio de factibilidade ética determina o âmbito do que se pode fazer (...) dentro do horizonte: a) do que é eticamente permitido fazer; b) até o que se deve fazer necessariamente. Esse horizonte encerra todas as ações com factibilidade-ética (operabilia). (...) A exigência propriamente ética em última instância se ocupa daquilo que se deve fazer deonticamente: obriga a fazer aqui que não-pode-deixar-de-ser-feito a partir das exigências de vida e da validade intersubjetiva moral. (DUSSEL, 2002: 270)

Desta forma, pois, as necessidades básicas para a produção, a reprodução e o desenvolvimento da vida são deônticas, de forma que o exigido é, em primeira e em última instâncias, a vida plena de todos e somente depois é que as necessidades de mercado, de consumo individualista deverão ser avaliadas ético-comunitariamente. O princípio básico fundamental é a vida dos sujeitos humanos éticos. Não são sujeitos idealizados, metafísicos. São sujeitos históricos, concretos, com fome, com sede, necessitados de prazer, de pão, de casa e de caminho, de lar e de história, de corporeidade e de utopias-sonhos. Por tudo isso, capazes de inventar e re-inventar o mundo, com responsabilidade e intersubjetivamente.

É, pois, considerando esse movimento, levando em conta que “a eticidade se produz processualmente” nas dimensões material, formal e factível da eticidade que se dirá de um ato ou de um sistema “é bom”, considerando que o ato ou sistema de eticidade deverá conter os três componentes do movimento de eticidade.

“O projeto de uma Ética da Libertação entra em jogo de maneira própria a partir do exercício da crítica ética, onde se afirma a dignidade negada da vida da vítima, do oprimido ou excluído.” (Ibidem: 93). O reconhecimento da situação de vitimada faz da comunidade pensamento socialista (...). Parece existir uma escada que leva da terra ao céu. E o problema reside em encontrá-la. (1988: 5)

52 um ethos possível para a auto-afirmação responsável em favor de sua libertação (Dussel, 2002: 383). Assim como os M ky recusa a mesmidade eterna nos primórdios e se auto- responsabiliza pela sua história, a comunidade de vítimas, periferia do sistema-mundo, deve construir ela própria e aplicar os princípios éticos material, formal e de factibilidade correspondentes com uma ética da vida coletiva, con-vivencial. A própria comunidade de vítimas é forjadora da Ética da Vida quando compreenderá e considerará os aspectos fundamentais da ética84.

Uma Ética da Vida, crítica da situação de morte a que estão submetidos os excluídos do direito de viver, fundamentadora conceitual dos princípios da ética-crítica-comunitária e campo para a re-invenção do projeto-utopia possível, será a Casa na qual os humanos se abrirão à constante aventura do ser mais, ao Caminho da realização e da felicidade humana. A Ética da Vida é, por isso, necessariamente estética.

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