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4 ÉTICA, MEMÓRIA E RESSIGNIFICAÇÃO DO TRAUMA

4.2 A IMAGEM DEFLAGRANDO A RESSIGNIFICAÇÃO NO DOCUMENTÁRIO

4.2.1 O momento da ruptura e o início da reconstrução

Na escrita cinematográfica de Cabra marcado para morrer, há duas cenas importantes no sentido de sinalizar, primeiro, para o rompimento de uma imaginária unidade do grupo de camponeses, cercado pelos homens da repressão, depois, para a possibilidade de, tanto Eduardo Coutinho como o referido grupo, ressignificar o trauma causado por este acontecimento. Será, então, em torno da interpretação destas cenas, que este subitem do último capítulo desta dissertação será desenvolvido.

idênticas e em preto e branco aparecem em inserção sequencial e, aparentemente, em desconexão com aquela que está antes e depois delas – em linguagem cinematográfica, um

insert.81: um homem sai montado a cavalo do interior de uma casa de taipa, despedaça sobre o chão de terra batida uma cumbuca de barro e desaparece da tela, levado pelo animal em disparada. Imediatamente antes de sua aparição, uma mulher muito jovem, também sai da casa com uma criança de colo nos braços e outras duas crianças a acompanharem-na. Dois homens observam a cena – um deles, supostamente um trabalhador do campo, pois segura uma enxada, o outro, provavelmente é um aliado do cavaleiro, já que, ao final, segue-o em montaria.

Figura 8 – Imagem da referida terceira cena, extraída do filme “Cabra marcado pra morrer” – a quebra da

cumbuca

Fonte: “Cabra marcado pra morrer”. Disponível em:https://www.youtube.com/watch?v=noA1ex2HPRo

Entre a primeira tomada fílmica desta montagem e a terceira, o grupo de cinco pessoas se desfaz e, ao final, resta apenas o trabalhador do campo, a jovem mulher e a criança no seu colo.

Levando-se em consideração que a montagem é a etapa da organização do material compilado na qual as imagens que participarão da narrativa são selecionadas e inseridas em determinados pontos da película – e não noutros –, infere-se que haja por trás do aproveitamento das três tomadas idênticas, um propósito mais do que estético, em se tratando deste documentário, um propósito político.

81 “Imagem breve, rápida e quase sempre inesperada que lembra momentaneamente o passado ou antecipa algum

acontecimento. Os inserts podem ser variados ou repetidos, estes servindo, às vezes, de plot, o núcleo dramático ou algo que o simbolize.” Ver: “Vocabulário do roteirista”. Disponível em: http://www.roteirodecinema.com.br/manuais/vocabulario.htm

Neste sentido, entende-se que a invasão à casa, a expulsão de seus humildes e trabalhadores moradores, a intimidação declarada pela quebra do vaso, bem como o lugar de onde se praticam estes atos – de cima e do alto –, serviram para representar o ataque dos homens do DOPS à equipe do filme e, principalmente, ao seu elenco, formado quase totalmente por famílias de camponeses, trabalhadores do campo organizados em torno da conquista da reforma agrária.

Esta interpretação encontra respaldo na própria narração que se dá em concomitância com a referida projeção, quando – aos seis minutos e trinta e nove segundos – a voz off do poeta Ferreira Gullar reforça a suspeita que as imagens levantam:

Trinta e cinco dias depois do início da filmagem, no dia primeiro de abril, o trabalho foi interrompido pelo movimento militar de sessenta e quatro. Apenas quarenta por cento do roteiro tinham sido rodados. Galileia foi invadida pelo exército e os principais líderes camponeses locais foram presos. Também foram presos alguns membros da equipe, mas a maioria conseguiu fugir para o Recife e depois chegaram ao Rio de Janeiro. Equipamento de filmagem e negativo virgem, copião, fita magnética, os exemplares do roteiro e as anotações de filmagem, tudo foi apreendido [...]

Fonte: Cabra marcado para morrer Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=noA1ex2HPRo

Deste modo, a introdução da referida sequência fílmica, no ponto no qual está e do modo como se apresenta, representa por esta leitura, o marco da crise, quando há a ruptura da unidade do grupo pelo cerco policial que ocasiona sua dispersão82.

Outra imagem, porém, é inserida depois desta, apontando, supostamente, na direção da ressignificação do trauma causado aos camponeses e suas famílias como consequência dos atos arbitrários do regime militar: a imagem da montagem do equipamento que, em 1981, apresentou ao elenco, o material gravado na primeira etapa do filme.

Figura 9 – Imagem da cena extraída do filme “Cabra marcado pra morrer” – preparação para projeção das

cenas do filme para o elenco formado em 1964

82 O que se realiza por diversos caminhos, em tentativas de fuga que, no decorrer do processo, culminam em

Fonte: “Cabra marcado para morrer”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=noA1ex2HPRo

Considerando-se que o documentário é iniciado por esta mesma cena – da equipe do filme instalando o equipamento em lugar semelhante àquele no qual ocorreu a violência militar contra os camponeses que faziam parte do elenco de Cabra marcado para morrer –, infere-se que esta tenha sido a forma escolhida pelo cineasta para marcar seu desejo de reparação com o elenco do filme. O meio que tornará este processo possível está ali, impondo-se por esta imagem, para ser considerado em primeira mão: o suporte para viabilizar a escuta dos oprimidos, o cinema, mais especificamente, o cinema feito por Eduardo Coutinho, sua escrita cinematográfica.

Deste modo, pela narração circular de Cabra marcado para morrer, a partir do mesmo suporte que justificou a intensificação da perseguição dos militares ao grupo, Coutinho oferece ao elenco da ficção interrompida, algo que faltara àqueles combatentes de guerra83, aos quais não se quis escutar: uma miríade de ávidos ouvintes.

Ademais, já que este texto aborda a construção de duas obras produzidas através de linguagens distintas, faz-se relevante dizer que o procedimento literário da retomada, que diz respeito à repetição de uma palavra ou imagem, no sentido de reforçar algo, ou de dar prosseguimento a uma ideia inicialmente já exposta, foi também usado no romance de Abreu, o que significa que uma das formas através das quais as duas linguagens se conectam, é pelo compartilhamento de métodos de escrita, com o que se coaduna o pensamento do crítico de cinema, Ismail Xavier: “[...] o conjunto de procedimentos usados para unir uma situação a outra, as elipses, a manipulação das fontes de informação, todas estas tarefas são comuns ao

83 Os combatentes de guerra já citados neste texto, aos quais Walter Benjamin faz referência em “O narrador:

escritor e ao cineasta.” (2014, p.32)

Em Onde andará Dulce Veiga?, quando, na primeira página do romance, reprimido pela realidade que experimenta, o protagonista diz sobre uma indicação de que deveria cantar, e, na última página, retoma a questão, não mais como um conselho que fosse dado a si mesmo, mas como um desejo realizado: “[...] E eu comecei a cantar.” (ABREU, 2012, p. 231), o autor está utilizando um artifício retórico, correlato ao que Coutinho usa ao situar a imagem da instalação da tela em branco na abertura do filme, e, depois ao retomá-la, inseri-la entre os registros da violência sofrida, apontando, como no romance de Abreu, para a oportunidade da ressignificação do trauma, de sua reinterpretação.