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II. G UERRA DE INDEPENDÊNCIA E GUERRA CIVIL D OIS MOMENTOS LITERÁRIOS

2. O momento das representações das diferenças

Se a ficção procura fixar os contornos de uma identidade coletiva, a unificação absoluta certamente não passará nunca de um sonho, não só pela peculiaridade africana marcada pela diversidade étnica, mas pelas próprias características das sociedades, onde projetos e objetivos conflitantes se defrontam constantemente. Um dos muitos teóricos do nacionalismo, Benedict Anderson afirma que a idéia de nação é um artefato cultural (1999: 12), inscrito numa ordem simbólica de significados.

O que proponho é que o nacionalismo deve ser compreendido pondo-o lado a lado, não com ideologias políticas abraçadas conscientemente, mas com os sistemas culturais mais amplos que o precederam, a partir dos quais – bem como contra os quais – passaram a existir. (ANDERSON, 1999: 20)

Anderson atribui à nação o conceito de “comunidade imaginada”, segundo o qual a nação é imaginada por ser constituída de membros que jamais estão em contato, embora na mente de cada um esteja viva a sua comunhão (1999: 14); é imaginada como limitada porque a maioria delas possui fronteiras finitas – nenhum nacionalista sonha que todos os membros da raça humana juntem-se à sua nação. É imaginada como soberana porque surgiram no ápice do iluminismo, momento em que se sonhava a possibilidade de plena autonomia dos indivíduos, constituídos cidadãos livres; é imaginada como comunidade,

pois é concebida como um companheirismo e uma fraternidade horizontal (a despeito das diferenças) o que explica que milhares matem e morram em nome dessa nação. (1999: 14- 16)

Para Anderson o nacionalismo se constituiria um sistema cultural, isto é, um conjunto de valores e crenças incorporados pelo senso comum. A concepção do autor é a que mais se adapta as representações que vêm sendo construídas sobre nação, admitindo um comportamento hegemônico em face dessa força simbólica que faz com que indivíduos matem e morram em seu nome. Nas declarações sobre a sociedade moçambicana, realizadas por políticos ou intelectuais, quando se faz referência a uma “nação em construção”, a expectativa é a de se chegar a essa forma de convivência com os elementos simbólicos do nacionalismo, o que supostamente ocorreria em diversos países europeus.

Bhabha12 analisa o nacionalismo como um discurso e reconhece que as narrativas sociais e literárias sobre a nação são importantes fontes simbólica e afetiva de identidade cultural. A narração da nação pode transformar fragmentos e retalhos culturais em tradições inventadas, em signos da cultura nacional que foi constituída no passado e tem seu discurso de autoridade baseado no pré-estabelecido. Podemos afirmar que a produção poética das décadas anteriores e imediatamente posteriores à independência de Moçambique perseguia esse objetivo, realizando o que Bhabha denominou de a pedagogia nacionalista que funda sua autoridade narrativa na tradição de um povo, “momento de vir a ser designado de si próprio, encapsulado numa sucessão de momentos históricos que representa uma eternidade reproduzida por autogeração”. (2001: 209) Entretanto, para o autor, as experiências cotidianas introduzem o presente e produzem o que o autor denomina a performance narrativa do nacionalismo, lançando uma sombra entre “povo como imagem e sua significação como signo diferenciador do Eu” (BHABHA, 2001: 209). Portanto, os signos diferenciadores do Eu, ou mesmo do grupo, estão sempre presentes, submersos no discurso pedagógico da nação, mas sempre passíveis de emergir a qualquer momento, indicando que o discurso homogêneo é truncado pelas histórias heterogêneas de povos em disputa.

Neste ensaio, o interesse do autor é questionar o historicismo que marca a produção discursiva sobre nação, argumentando que é preciso um outro tempo de escrita que se contraponha ao tempo homogêneo da sociedade horizontal e sua lógica causal. Questiona,

assim, a classificação feita por Anderson de “comunidade imaginada” por considerar que esse conceito conduz a uma concepção essencializada da identidade coletiva.

As contra-narrativas da nação que continuamente evocam e rasuram suas fronteiras totalizadoras – tanto reais quanto conceituais – perturbam aquelas manobras ideológicas através das quais “comunidades imaginadas” recebem identidades essencialistas. (BHABHA, 2001: 211)

Recorrendo aos estudos sobre colonialismo e feminismo Bhabha indica a existência de tempos múltiplos ausentes no discurso historicista (BHABHA, 2001: 214); e identifica um movimento contrário, promovido por vozes marginais, que questiona a temporalidade homogênea e horizontal criada por narrativas que produzem um discurso teleológico de progresso, de horizontalidade espacial da comunidade, de tempo homogêneo, que pressupõe a continuidade naturalista da Comunidade e da Tradição. (BHABHA, 2001: 213/214) Esta outra temporalidade representaria a nação performática, isto é, ao invés de uma nação prefigurativa autogeradora “em si mesma” em oposição a outras nações, introduz-se a temporalidade do entre-lugar, desestabiliza o significado do povo como homogêneo e apresenta uma nação dividida no interior dela própria, articulando a heterogeneidade de sua população. (BHABHA, 2001: 209)

Bhabha exemplifica essa situação com o comentário de Fanon sobre a apropriação intelectual da “cultura do povo” e o risco de reificação por meio de simplificações sobre os costumes ou outras características (2001: 215); contra isso Fanon elabora o conceito de instabilidade oculta, afirmando que esse momento cultural é a expressão de um tempo presente, é um movimento performativo, “o movimento flutuante que o povo está moldandonaquele momento” (BHABHA, 2001: 215).

Para Bhabha uma nova representação da cultura nacional, construída a partir dessa zona de instabilidade, vem a ser articulada como uma dialética de temporalidades diversas – moderna, colonial, pós-colonial, “nativa” –; não pode ser um conhecimento que se estabiliza nas formas fixas da narrativa nacionalista; “o tempo pós-colonial questiona as tradições teleológicas de passado e presente e a sensibilidade polarizada historicista do arcaico e do moderno.” (BHABHA, 2001: 217)

A narrativa libertadora da FRELIMO, marco fundamental de constituição da moçambicanidade, mantém-se como “fonte simbólica e afetiva da identidade cultural” (BHABHA, 2001: 201), mas passa a se articular com outras formas de identidade que

emergem dentro de contextos de incerteza e transformações que marcam as última décadas do século XX.

Os romances de Paulina Chiziane e Mia Couto apontam para outras temporalidades que não estão contempladas nos princípios homogeneizadores que relatam a história da nação. Ana Mafalda Leite chama a atenção para essas temporalidades divergentes adotadas pelos dois autores que, em suas histórias, relatam as relações entre os homens e o mundo mágico-espiritual, presentificam crenças e valores cujas origens estão em imemoriais tempos pré-coloniais, introduzem a temporalidade dos mitos e das fábulas na atualidade (2003: 78), confrontam o tempo dos velhos e das aldeias com o tempo da cidade, o tempo do antes e do agora. (2003: 60)

A contra-narrativa produzida pelos romances dos dois autores tem em comum a denúncia de um corpo político-partidário de representantes que se distanciou de seus representados. A crítica ou a ironia marcam as personagens que representam a administração ou as “estruturas” do Estado, assim como a nova burguesia que rapidamente se enriquece com a corrupção e o processo de privatização decorrente do final do regime socialista, revelando a presença de novos projetos que se distanciam da utopia de superação da miséria e da desigualdade que levou a FRELIMO ao poder e mobilizou os sonhos e expectativas da população moçambicana.

Os romances revelam as novas relações de forças presentes na sociedade ao representar a nação dividida não só em decorrência da guerra, mas pelas expressivas diferenças culturais que ainda persistem na sociedade e pela existência de amplos setores cujas vozes não se sentiram contempladas pelos discursos hegemônicos. Mia Couto antes mesmo de seu primeiro romance já buscava se contrapor ao silenciamento destes setores em seu livro de contos Vozes Anoitecidas, de 1986; segundo o autor, vozes anoitecidas pela ausência de tudo, vozes de homens que mergulhados na miséria e na ignorância se desarmam do desejo de serem outros; mas o autor consegue escutar “na travessia dessa fronteira de sombra (...) vozes que vazaram o sol”. (COUTO, 1986: 11)

Nestes contos, escritos em um difícil momento da guerra civil, Mia Couto cria uma galeria de personagens que expressam o impacto das dificuldades vividas pela sociedade, dificuldades que ao invés de minimizarem com a Independência recrudesceram. Nos contos, como posteriormente nos romances, são os acontecimentos do cotidiano da sociedade que fazem “desadormecer” no autor as narrativas.

As histórias desadormecem em mim sempre a partir de qualquer coisa acontecida de verdade mas que me foi contada como se tivesse ocorrido na outra margem do mundo. (COUTO, 1986: 11)

Na construção das personagens, o fantástico, uma das características da prosa de Mia Couto, entra como forma de representar o imaginário específico de uma sociedade que procura dentro das crenças e tradições que lhes são próprias compreender e enfrentar os problemas vivenciados, onde ecos de crenças míticas misturam-se com tais eventos, como a explosão de Mabata-Bata, atribuída pelo pequeno pastor Azarias à ndlati, a ave do relâmpago:

De repente, o boi explodiu. Rebentou sem um múúú. No capim em volta choveram pedaços e fatias, grãos e folhas de boi. A carne eram já borboletas vermelhas. Os ossos eram moedas espalhadas. Os chifres ficaram num ramo, balouçando a imitar a vida, no invisível pescoço do vento. (COUTO, 1986: 27)

A mesma imagem de uma explosão, agora sem restos, reaparece no seu romance O Último Vôo do Flamingo, mas aqui as explosões atingem os soldados da ONU, acometidos de mortes estranhas que os fazem desaparecer deixando intacto apenas o pênis.

Seis soldados das Nações Unidas tinham-se eclipsados, não deixando traço senão um rio de delirantes boatos. Como podiam soldados estrangeiros dissolver-se assim, despoeirdos no meio das Áfricas, que é como quem não diz, no meio de nada? (UVF, 32).

No conto, a guerra atingindo populações indefesas e ignorantes de sua própria sorte, no romance, os desdobramentos dessa guerra que “desadormece” histórias de explosões provocadas por campos minados, repovoados pelos mesmos agentes que fazem a desminagem, como forma de obtenção de mais verbas das organizações internacionais.

Em ambas as narrativas, o desdobramento dos enredos passa por situações permeadas pelo fantástico: no final do conto, Azarias corre para abraçar o ndlati, antes que este venha a alcançar sua avó ou seu tio. Em O Último Voo do Flamingo, não se trata do relâmpago, mas de feitiços, “uns pós tratados” encomendados pelos homens da cidade, segundo a opinião da prostituta da cidade, Ana Deusqueira (UVF, 87), ou da declaração de feiticeiro Andorinho, fabricante de um likaho de lagarto e também das drogas que imunizaram o italiano Massimo Risi. (UVF, 151)

Com estas narrativas do tempo mágico, da coexistência de vivos e mortos, dos feitiços e demais sortilégios, Mia Couto rompe com a horizontalidade da narrativa historicista e reintroduz na história o homem comum e as suas experiências e constrói uma

representação de identidade onde se encontra contemplada a diferença que marca a sociedade moçambicana.