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II. G UERRA DE INDEPENDÊNCIA E GUERRA CIVIL D OIS MOMENTOS LITERÁRIOS

1. O romance e o pós-colonialismo

As reflexões até aqui produzidas sobre os romances de Mia Couto e Paulina Chiziane possibilitaram o exame das representações desses autores sobre a pluralidade da sociedade moçambicana. Os discursos hegemônicos produzidos durante e depois da luta de libertação foram esfacelados pela guerra civil, acontecimento que irá potencializar e tornar visível a multiplicidade de interesses presentes na sociedade, recolocando a questão “quem somos nós” que, aparentemente, teria sido respondida na luta pela independência. Resta, agora, tentar estabelecer o sentido que as narrativas irão fornecer à pergunta refeita, visando a compreensão de uma moçambicanidade refigurada.

Os acontecimentos em Moçambique fazem parte da complexidade dos processos que se instalam no mundo contemporâneo e, particularmente, nas ex-colônias africanas, o que originou um novo campo teórico para sua reflexão: o pós-colonialismo, conceito a respeito do qual se tem produzido uma infinidade de interpretações, tanto de natureza cronológica, como epistemológica. Apesar de estar obviamente relacionado com o período posterior ao colonialismo, os significados atribuídos ao conceito buscam fugir de um sentido puramente cronológico, de encerramento de uma época, em que as antigas relações desaparecem e surgem outras, novas. Por outro lado, um tratamento universalizado para o conceito poderia originar questões como: EUA, Canadá, Jamaica e Nigéria são igualmente pós-coloniais? E a Grã-Bretanha? Estas são algumas das questões apresentadas por Stuart Hall em seu ensaio Quando foi o pós-colonial?Pensando no Limite, no qual afirma que o conceito não deve ser considerado nem em termos puramente cronológicos e nem como eventos específicos às sociedade não-ocidentais, mas como o processo geral de descolonização que afetou tanto colonizados como colonizadores (2006:100). Por outro lado, é um conceito que pode ajudar a caracterizar e descrever as relações globais que

marcam a transição da era dos impérios para o momento pós-independência. (2006:101) Entre os aspectos positivos indicados por esse autor para o conceito está o de ultrapassar a noção de descolonização e pressupor que, paralelamente a independência do controle colonial direto, ocorre a persistência de muitos efeitos da colonização, num processo que atinge tanto a colônia como a metrópole. Com a perspectiva de considerar as mudanças, mas também as permanências, Hall afirma que o conceito dirige a atenção do estudioso para o fato que a colonização nunca foi algo externo às metrópoles imperiais e sempre esteve inscrita em suas culturas, como esteve inscrita nas culturas coloniais. (2006:102)

Essa dupla inscrição faz com que os esforços pelo estabelecimento de um programa cultural fundado numa retomada de um conjunto de elementos não contaminados pela experiência colonial, e que foi considerado um resgate das tradições, apesar de ter sido um importante fator de mobilização política durante a luta anti-colonial, configurou-se como um projeto inalcançável o que obrigou a uma releitura dos binarismos culturais.

Tomás Tadeu Silva procura analisar os espaços de relações e as disputas representados no pós-colonial.

A teoria pós-colonial evita formas de análise que concebam o processo de dominação cultural como uma via de mão única. A crítica pós-colonial enfatiza, ao invés disso, conceitos como hibridismo, tradução, mestiçagem, que permitem conceber as culturas dos espaços coloniais ou pós-coloniais como resultado de uma complexa relação de poder em que tanto a cultura dominante quanto a dominada se vêem profundamente modificadas. (SILVA, 2000: 129)

Entendidas como hibridismo, tradução, mestiçagem, as relações culturais presentes nas ex-colônias passam a ser relidas não apenas como dominação verticalizada entre colonizadores e colonizados, mas também em suas “ligações transversais ou que cruzam as fronteiras do Estado-nação e os inter-relacionamentos global/local que não podem ser inferidos nos moldes de um Estado-nação.” (HALL, 2006: 107) A cultura passa a representar um dos muitos espaços de confronto de poder entre as forças sociais das ex- colônias.

A compreensão dessa abordagem desenvolvida por Hall quanto ao momento pós- colonial pode ser iluminada por suas reflexões relacionadas às lutas políticas nas formações sociais. Partindo de uma leitura de Gramsci e de seu conceito de hegemonia, Hall considera que em uma disputa o que se busca não é a vitória absoluta de um lado sobre o outro, nem a total incorporação de um conjunto de forças em outro e, ainda, que no

confronto político, as forças sociais suplantadas não desaparecem do terreno da luta. (2006: 291) Assim, pode-se compreender que os projetos e políticas culturais adotados representam o momento de hegemonia, uma articulação temporária das forças sociais.

A mesma dinâmica na análise das disputas entre forças políticas será desenvolvida em relação às posições culturais, partindo do conceito de hibridismo ou transculturalismo pelos quais a análise da identidade cultural ou das relações culturais recusa-se a considerar oposições rígidas entre o Eu e o Outro, ou entre o colonizado e o colonizador, numa concepção binária da diferença. As relações culturais, assim como a identificação dos indivíduos, constituem processos de interação e contínuas traduções culturais e reapropriações dos sentidos. (HALL, 2006: 33)

O conceito de pós-colonialismo favorece a análise dessas forças em movimento, o que possibilitaria a “proliferação de histórias e temporalidades”, introduzindo a diferença nas grandes narrativas generalizadoras do pós-iluminismo eurocêntrico (HALL, 2006: 104). Assim, as lutas de libertação constituíram uma contra-narrativa às grandes narrativas da constituição dos impérios coloniais, entre eles o Império Lusitano, enquanto que os acontecimentos das décadas recentes do pós-independência já possibilitaram o surgimento de novas contra-narrativas.

Ao abrigo desse conceito pós-colonial busca-se a releitura do aspecto político- cultural de um tempo marcado pela crise dos Estados “pós-independência” e, conforme Hall, pela luta inconclusa pela “descolonização”, onde se renovam os conflitos entre grupos dominantes e subalternos. (2006: 99) A presença de uma força política como a RENAMO, reivindicando a representação das autoridades tradicionais ao mesmo tempo em que recebe apoios da África do Sul e de outros interesses Ocidentais, é o exemplo mais determinante dessa luta inconclusa pela descolonização e da permanência de forças políticas que se apresentam como outra possibilidade, outra forma de independência e de constituição do Estado Nacional. A guerra civil irá propiciar o realinhamento de grupos sociais que projetavam outro tipo de independência e de composição do Estado e que vão buscar rearticular apoios sociais disputando o comando com a FRELIMO.