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O Movimento Associativo Surdo como Analisador Interpretativo das

Capítulo III Enquadramento metodológico

4. Procedimentos de Análise e Interpretação

4.2. Análise Interpretativa dos Dados: Descodificando Saberes e Olhares

4.2.2. O Movimento Associativo Surdo como Analisador Interpretativo das

Considerando os saberes produzidos em torno das questões das lideranças em geral entendemos que as lideranças Surdas nos trazem algumas singularidades ainda que possam ser contextualizadas às dimensões comuns das questões burocrática-legal e de poder. Na conceptualização das suas práticas, figuramos o Gesto das Lideranças Surdas tendo em conta a importância do Compromisso Social e da Decisão dos entrevistados ao Movimento Associativo Surdo. Os/as Surdos/as, enquanto herdeiros de uma cultura e identidade, quando afirmam “Tenho direitos... Se a sociedade me dá ou não, eu luto por eles, claro” [S2], vinculam-se ao compromisso de luta em prol dos seus direitos, traçando decisões e gerindo os seus objetivos tendo em vista o poder da reivindicação e a valorização de uma liderança feita por Surdos.

O surdo como membro de uma sociedade vive relações de poderes que, muitas vezes, os subjugam, como grupo cultural, a uma subalternidade. E, nem sempre,

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nesses lugares, ele consegue sentir-se como surdo e ver os seus companheiros como modelos surdos. (Perlin, 1998:37)

Pela História, os/as Surdos/as, escolarizados ou não, fundaram Associações de Surdos para nela criarem espaços de confraternização, reunião e organização dos seus manifestos. A importância da implementação de um espaço cultural, onde o manifesto da língua e da cultura se revelasse, iniciou-se com os Banquetes de Surdos, realizados no século XVIII e, hoje em dia, mantém-se vivo.

Algumas formas de resistências, como a criação da associação de surdos, fundadas após a imposição do ensino oralistas nas escolas, a luta pelo direito de adquirirem a Língua de Sinais como primeira língua, os matrimônios entre os/as surdos/as, são expressões genuínas dessas resistências. (LUNARDI, 1998:161)

Os Surdos, ao longo da sua vida e nos mais diversos contextos, começaram a perceber as representações que os ouvintes tinham acerca da “(...) condição de ser surdo, do modo incorreto como [...] denominavam os surdos, surdos-mudos, definiam a nossa língua como uma linguagem e mais ideias erradas” [S1]. Assim, o Movimento (Associativo) Surdo confere a resistência e configura-se em relações de poder e de reivindicação dos direitos.

A importância de modelos Surdos que apresentassem as possibilidades de vida, a conquista dos objetivos e a forma como viviam perante as barreiras sociais, foram essenciais para a mudança e construção da auto-estima pessoal dos nossos entrevistados. Exemplo disso é-nos apresentado pelo entrevistado [S2] que, adquirindo a surdez tardiamente, confessou ser no:

“Dia a dia fui percebendo que o meu colega nasceu surdo, tem a vida normal, tem filhos, é casado, tem filhos, trabalha e conseguiu uma vida … Então, se ele conseguiu, eu posso conseguir igual ou melhor e, a partir daí, quebrei todas as barreiras internas que tinha. Coloquei de lado os problemas de me sentir surdo, de não ouvir, de ficar assim de um dia para o outro e abri portas para uma vida. Observar aquele meu colega surdo deu-me… deu-me… como se diz… observá- lo deu-me, deu-me, cá por dentro… confiança, fez-me ganhar confiança, abrir- me e aceitar-me como pessoa e ver a surdez sem qualquer limitação. A partir

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daí, andei com a minha vida para a frente. É como eu te disse, eu tenho orgulho em ser surdo, muito orgulho.” [S2]

Para a formação da identidade e aceitação da condição de Ser Surdo, é crucial que haja o contato e a convivência com adultos Surdos de várias faixas etárias pois, no silencia, os Surdos acabam por pensar que são únicos, que estão sós no Mundo, em redor de um silêncio tão abafado pelo som, onde o Gesto deixa de ter razão de Ser. A escola, a família devem preocupar-se em levar as crianças e jovens Surdos para o Mundo dos Surdos e reconhecer que isso faz parte do desenvolvimento da Pessoa Surda.

“O modelo de transição nestes momentos, foi o Baltazar [denomina pelo seu nome gestual] assim como tem sido agora... [sorri] Nunca pensei que estaria, hoje, dentro do movimento, nunca pensei...”, conta-nos o entrevistado [S3], quando referencia aos momentos em que Se descobriu enquanto Surdo, no contexto escolar e a importância que isso figurou no seu crescimento e adesão no Movimento Associativo Surdo.

Há um conjunto de costumes, ideias, desejos e experiências reunidos num conjunto de imagens reais, comportamentos e atitudes que marcam o que é Ser Surdo. Nesse sentido, na comunidade Surda, os/as Surdos/as sentem uma forte necessidade de ser semelhantes para nela pertencerem e, consequentemente, assumirem o compromisso social de participação e liderança.

“Eu, realmente, não queria fazer parte do movimento associativo... [bufa] Não queria... Deve ter acontecido alguma coisa que pegou em mim e me enfiou lá dentro... [sorri e encolhe os ombros]” [S3]

Quando questionamos acerca do primeiro momento em que entraram numa Associação, os nossos entrevistados demonstram ter sido o marco mais importante na sua vida, enquanto Surdos.

Tal como aconteceu com os nossos entrevistados, contamos que, de modo semelhante, uns entraram na Associação de Surdos na terna idade... “Foi aos meus quinze anos que, entrei pela primeira vez na Rua do Almada, na Associação” [S1], outros por via de um Surdo adulto que “(...) levou-me para a

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Associação de Surdos, Clube Desportivo de Surdos Mudos do Porto.” [S2] e outros já a conhecem desde que a nascença: “Não me lembro que idade tinha quando entrei pela primeira vez numa associação assim como não me lembro quando comecei a exprimir os meus primeiros gestos em Língua Gestual”, diz- nos, sorridente, o entrevistado [S4].

Gil (2011:49), neste sentido, evidencia “Naturalmente que a absorção no movimento associativo tem contornos ligeiramente diferentes e é usual acontecer em indivíduos adultos. Normalmente só filhos Surdos e ouvintes de pais Surdos são habituados a frequentar a associação de Surdos desde o berço”

De uma forma ou de outra, quando aderiram e presenciaram a força do Gesto, (re)criaram a sua identidade e afirmaram o Ser/Sentir Surdo. Para eles, a Associação é uma família onde todos se identificam nela e fazem parte dela.

“Parecia que estava em família! Todos com as mãos no ar, a gesticular… Vi os surdos idosos, cumprimentei-os, vi outros surdos, e sentei-me logo ao lado deles e começamos a falar, falar, falar, falar, horas sem fim porquê? As nossas mãos… [aponta para as mãos] As nossas mãos são a principal chama para tudo e fazem-nos querer sempre mais…” [S1]

“Eu gosto de comparar a Associação de Surdos do Porto com uma família porquê? Porque, por exemplo, quando uma coisa ataca a um, ataca a todos é por isso que é importante, numa associação, as pessoas se unirem até porque os objetivos são os mesmos, as lutas são as mesmas... [faz uma breve pausa] Os direitos são os mesmos, os deveres são os mesmos e devemos respeitá- los… As defesas, as defesas, a defesa, a defesa em campo, a defesa é uma só. Eu, sou um defendo-me, eu sou um; tu és uma, tu sozinha defendes-te? E se for o coletivo? O coletivo, o grupo defende-se mais facilmente (abre os braços). Ora pensa bem um ou mil, um ou quinhentos, qual é mais fácil se defender? Ahh Fazem isso? [expressão de espasmo, como quem não esperava que isso acontecesse] Eu lembro-me… Eu acho que, há uns tempos atrás, escrevi qualquer coisa … Eu posso procurar e depois mandar-te, lembra-me… a falar disso. A Associação comparada com uma família. Quando alguma coisa que me cometem a mim, cometem a um, cometem a todos.” [S2]

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O relacionamento com os mais velhos, o escutar histórias e as perspetivas sociais que, naturalmente, fluíam das mãos dos frequentadores assíduos daquele espaço, representavam o sentido da instituição e das Pessoas Surdas. Os nossos entrevistados afirmam, de forma generalizada, que

“Dessas conversas trocávamos experiências, trocávamos história, conhecíamos gestos antigos, gestos novos e, acredita que, se não houvesse a Língua Gestual, se não existisse essa língua, era impossível que o nosso cérebro acendesse tantas lâmpadas, as nossas ideias fossem transmitidas e partilhadas por todos…” [S1]

“Eles falavam, sobretudo, das famílias, de política... Eram esses os temas mais falados: a família e a política... Abordavam esses temas por causa das notícias que davam na televisão e eles, aproveitando isso, falavam no assunto... Via muito disso...” [S3]

Começando

“(...) a habituar e a tornar-me um deles… Por sua vez, comecei também a estar mais afastado dos ouvintes, mas atenção… Eu não afastei os ouvintes, eu é que me comecei a afastar deles, a afastar-me dos ouvintes, aos bocadinhos por iniciativa própria e comecei a interessar-me e a tornar-me mais ativo dentro da comunidade surda. Fui uma mudança, uma “transformação” interior natural.” [S2]

As Associações de Surdos traduziram-se em espaços de aprendizagens não só ao nível das organizações mas a nível social e comunitário que os faz assumir- se enquanto participantes ativos na construção da cidadania.

“(...) quando comecei com a AFOMOS [denomina pelo seu nome gestual], comecei a motivar-me e a trabalhar mais e isso fez-me compreender certas realidades que, caso assuma algo na Associação de Surdos do Porto, será mais fácil e com maior flexibilidade pois já aprendi com a AFOMOS [denomina pelo seu nome gestual] e compreendi as suas diferenças [...] desenvolvi-me enquanto pessoa, aprendi muitas coisas.” [S1]

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“Com a Associação daqui, a ASP, aprendi mais a importância e força do valor histórico, que ajuda a traçar o perfil e desenvolver sempre mais, mais e mais...” [S3]

O gosto e “vício” em ir à Associação, em fazer parte daquele grupo, pertencer onde os outros pertencem, faz com que, progressivamente, os/as Surdos/as façam disso uma rotina, ganhando gosto e assumindo o compromisso em fazer algo para a comunidade. Num primeiro instante, pegando nos mais novos, proporcionavam atividades para associados, pelo que “(...) juntos, fazíamos teatro em vários pontos do país; em outras atividades que ocorriam na Associação também prestava a minha colaboração e, foi assim, que eu fui desenvolvendo, aprendendo e ganhando motivação…” [S1]

“(...) eu cheguei à Associação e eles perguntaram-me “Queres trabalhar na área dos jovens?” E eu, duvidoso: “Jovens?” Para mim era-me indiferente... Eu trabalhava em tudo na Associação... Enfeitava o espaço, colocava fitas no teto, realizava programas culturais e fazia de tudo um pouco... Eles, ao perguntar isso, queriam que eu me focalizasse só na faixa mais jovem... “Ok. É-me indiferente... Aceito.”” [S4]

A função principal era, através dos afetos, da confiança, da partilha, transmitir o gosto e dar o feeling aos mais novos para que estes sentissem o compromisso e a responsabilidade de dar seguimento ao que foi construído para os Surdos e pelos Surdos. É “(...) na associação, que a pessoa Surda vê as suas oportunidades, começa a crer nele mesmo, começa a sentir-se contagiado e inspirado por outros e traça o seu próprio caminho” (Gil, 2011:50)

Nessa linha de pensamento, ainda que burocraticamente, as estruturas da Associação de Surdos fossem/sejam compostas por cargos de chefia e gestão, as responsabilidades eram partilhadas por todos tendo em vista dois objetivos comuns: o convívio dos associados e a luta contra as representações sociais que os ouvintes tinham acerca da Comunidade Surda, num espírito de abertura por parte de ambos.

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Os/As Surdos/as lutam pela sua afirmação e valorização enquanto comunidade por via das Associações, mostrando a importância do seu papel de liderança e negociação numa perspetiva down top. No seio da Comunidade Surda, o que tinha mais valor perante os ouvintes era conseguir conquistar a mudança social e negociar uma forma de mostrar o quanto os Surdos marcam presença. Assim, as práticas em torno dos Movimentos (Associativos) Surdos, ao longo do tempo, foram-se moldando e o que inicialmente era um ghetto (Grupos Desportivos de Surdos-Mudos) passou a ter mais visibilidade social (formação de Associações de Surdos).

“Se trabalharmos com a sociedade, dentro da sociedade, todas as pessoas beneficiam, os surdos de fora beneficiam e, por sua vez, os surdos que são nossos sócios, também beneficiam. Assim, é mais fácil arranjarmos apoios do que se estivermos focalizados única e exclusivamente, aos sócios. Se assim for, como vamos exigir o poder político, governamental e por aí fora? [encolhe os ombros] É importante abrir a associação à sociedade ouvinte. [abre os braços e encolhe os ombros] Estabelecer relações com os ouvintes, acho bom, isso.” (ibidem)

Por vezes, tendo em vista essa mudança, os Surdos prevaleciam o modo como as práticas dos seus líderes poderiam transformar e dar a mudança social necessária para a comunidade Surda. Não concordando, também a nível interno, reivindicavam por novos representantes, elegendo aquele que melhor representava os seus ideais.

“Eu não queria... Não via futuro naquele ambiente e sempre me mantive fora disso... A Federação continuou sempre com o mesmo presidente, durante vários mandatos até, no seu último mandato, eu passei-me e fiz uma manifestação... Não foi bem manifestação... Foi mais confrontar-lhes e chamar-lhes a atenção para o que estavam a fazer... Entretanto, ainda que tenham ganho as eleições, a Direção, um ano e meio depois, caiu e tentaram fazer uma nova lista, à qual fui convidado e que já fazia sentido para mim...” [S4]

Ao questionarmos as principais decisões que os nossos entrevistados tomaram tendo em vista as práticas para a mudança social, o entrevistado [S2],

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conta-nos que, vivendo numa época facista e olhando para o modo como os Surdos se fechavam na Associação, teve como principal decisão o

“ (...) abrir as portas, abrir à sociedade porque eu percebi que dentro da associação, do antigo grupo, o grupo de surdos dentro da associação tinham como objetivo único os sócios. [faz uma breve pausa] Eu pensei que uma… uma instituição específica, uma associação como a associação de surdos, não pode, principalmente quando tem uma política forte, uma política ativa, não pode estar única e exclusivamente ligada às pessoas que estão nela inseridas porque… percebes? Estar ligada só às pessoas que estão lá dentro é impossível. Se abrir à sociedade, se abre, abre a todos porque trabalhar diretamente com objetivos ligados aos sócios, os sócios poderão usufruir e aproveitar para desenvolver atividades, sim, sim… Isso é importante, mas para fora? É zero. Arranjar apoios? Zero. Conhecimento? Zero. Agora se pusermos isso de parte, sem nunca esquecermo-nos dos sócios, abrirmos à sociedade, trabalharmos em conjunto com a sociedade, porque se trabalharmos somente com os sócios, quantos outros surdos estarão lá fora?” [S2]

Os entrevistados [S1] e [S3], cada um nos seus contextos, relatam decisões mais ao nível interno, face a situações em que o seu papel e cargo seriam imprescindíveis para o funcionamento da instituição. Perante controvérsias quanto ao seu modo de trabalho, a entrevistada [S1], partilha connosco um momento em que teve de pôr a razão de lado e escutar o coração: “depois de pensar melhor, de refletir acerca do meu percurso na associação, do grande apoio que prestei às atividades, do facto da maior parte dos surdos já me conhecerem (...)”, decidiu dar continuidade à sua participação no Movimento Associativo. Por sua vez, o entrevistado [S3], sendo mais burocrático e formal, quando “(...) a Direção estava a exercer funções, havia situações de grande conflito e eu dei duas oportunidades para que resolvessem esses conflitos internos... Quando vi que as coisas não tomavam outro rumo, decidi, de imediato, convocar novas eleições... Esta foi uma situação... Convoquei logo eleições, quando ainda estavam em exercício de funções...”

O entrevistado [S4], tendo uma participação ativa não só a nível nacional mas também internacional, vendo a importância de Portugal se assumir como um país cujo Movimento (Associativo) Surdo tem valor e prestígio.

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“Quando fui a França, a um Acampamento Europeu, durante a Assembleia eles questionaram quem seria o próximo país a assumir a organização do Acampamento e eu, do nada, levantei o braço... Não tinha combinado nada com os meus colegas mas, ainda assim, levantei o braço... Eu só pensava... “Será que dá para organizar em Portugal? Ou não dá...? Teremos dinheiro ou não...?” Mas, não quis saber e arrisquei.” [S4]

Todas as decisões dos nossos entrevistados, quer a nível interno e externo figuraram a sua pertença e compromisso em trazer o melhor para a Associação/Federação e para a comunidade Surda. Representações ao nível da sociedade, ao nível da comunidade quer nacional como internacionalmente, traçam as práticas de liderança e consequentemente definem a ação coletiva do grupo numa organização.

Os Surdos que contribuíram para este estudo, acreditam na importância do storytelling na afirmação dos movimentos e na reivindicação das causas da comunidade Surda manifestando a forma como “a estrutura de interação que embasa os movimentos políticos que tentam articular elementos antagônicos e de oposição sem a racionalidade redentora da superação dialética ou da transcendência” (Bhabha, 1998: 52), quer no campo da educação, quer no campo da sociologia.

O Surdo que vive na comunidade Surda, pelo storytelling transmitido pelos “Surdos adultos, mais velhos [...] que assumiam responsabilidades, eram líderes...” [S4] e que vai sendo passado de geração em geração, conhece as suas lutas e cria figuras/heróis de referência sob as quais se reflete e assume posições de liderança, na conquista de melhores condições de vida para a comunidade.

“O exemplo de pessoa que eu queria ser igual em termos de trabalho e ativismo era [...] Yeker Anderson [...] sociólogo, foi Presidente da WFD e viajou pelo mundo fora dando formação, gestão, avaliação e implementação daquilo que hoje são as instituições de Surdos no Mundo.” [S4]

Os Movimentos (Associativos) Surdos estão articulados com as necessidades pontuais e temporais em que estão inseridos, sendo as práticas sociais, culturais

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e linguísticas um manifesto contemporâneo que esboçam as reivindicações da Comunidade Surda. Com a sua própria política, as suas formas de preparar e organizar as reuniões e as manifestações, o Movimento (Associativo) Surdo tem em conta a negociação com a sociedade mainstream em prol da afirmação, sendo todos os/as Surdos/as responsáveis por essa mudança.