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3 AS RELAÇÕES ORGÂNICAS NAS PRIMEIRAS TENTATIVAS DE

3.4 O Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu – MIQCB

As articulações e as incitações para as primeiras lutas foram encabeçadas – ou abraçadas – pelas quebradeiras de coco babaçu, posteriormente seguidas pelos maridos. Esses homens passaram a ser designados como “Trabalhadores Agroextrativistas”. É dessa forma que a ASSEMA e a COPPALJ foram fundadas, isto é, como fruto das lutas comuns das famílias dos trabalhadores rurais agroextrativistas, onde se incluem as quebradeiras de coco babaçu.

A fundação de entidades como a ASSEMA – voltadas para todos os assentados da microrregião – deve-se ao formato da organização dos trabalhadores agroextrativistas no final dos conflitos: possui homens e mulheres defendendo um só objetivo e assessores discutindo conjuntamente e indicando possibilidades de estratégias econômicas a serem executadas nitidamente sob a luz da visão shayanoviana do mundo rural98.

A ASSEMA não apresentava espaço suficiente nos primeiros anos para a nova mentalidade das mulheres que lideraram ou participaram ativamente dos conflitos pela terra. Seu público-base eram os assentados do Médio Mearim, o que fazia com que ela se dedicasse às questões mais gerais do grupo e não a particularidades relativas apenas às mulheres. Entre as questões mais específicas das mulheres, havia a de congregar o maior número possível de quebradeiras de coco babaçu da área dos babaçuais, conhecendo suas realidades e demandas.

Algumas mulheres tiveram contato com quebradeiras de coco de outras áreas do Maranhão, do Pará, do Piauí e do Tocantins, participando de encontros sindicais, oportunidade em que perceberam que as demandas, necessidades e reivindicações eram comuns a todas elas.

Semelhanças sensivelmente mais visíveis, a princípio, nas escalas menores da sua organização dos clubes de mães e dos grupos de quebradeiras de coco contra a proibição do acesso aos babaçuais. Como fica bem claro abaixo:

98 Onde o trabalhador rural familiar possui lógica de existência diferente da lógica dos grandes produtores rurais, isto é, do lucro. Sua forma de sobrevivência seria superior àquela porque apenas eventualmente recorre ao mercado para escoar suas mercadorias excedentes produzidas num estabelecimento rural policultor e multi-tarefado.

Muito antes de 1990, em Lago do Junco, as mulheres já tinham experiência de fazer empates contra as derrubadas de palmeiras. Estas ações tinham dois eixos: um contra as devastações provocadas pelos fazendeiros; o outro no controle dos desbastes realizados pelos maridos para fazer as roças. Estas experiências eram repassadas para o grupo intermunicipal e todas acharam muito importante e daí todos os outros municípios começaram a discutir em suas comunidades. Não era muito aceito por parte dos homens pois eles queriam fazer derrubadas justificando que a escassez de terra para produzir já não permitia a manutenção do consórcio palmeiras e plantio de arroz, mandioca, milho e feijão (CHAGAS & SOUSA, 1998: 227).

O conhecimento da sua realidade e da sua condição social, associado à expectativa de superação dessa condição trouxe a tona o questionamento sobre as condições de vida das quebradeiras de coco em outros lugares, e se estariam dispondo das condições de seu desenvolvimento, como se vê abaixo:

Nesta discussão do grupo de estudos da ASSEMA, a companheira Rosa de Ludovico, fez uma proposta de buscarmos realizar uma grande reunião com quebradeiras de coco babaçu de outras regiões, para sabermos se a vida delas era a mesma vida sofrida que levávamos aqui no Médio Mearim. Decidimos trabalhar para organizar um encontro de quebradeiras de coco babaçu, pois já estava bem espalhada a discussão [e] a pessoa que nos

assessorava era a Noemi99 e ela já tinha feito contatos com outros grupos

nos outros estados (CHAGAS & SOUSA, 1998: 228).

Dessas especulações iniciais, mulheres de quatro estados da federação se reuniram no l Encontro Interestadual de Quebradeiras de Coco babaçu, na cidade de São Luís, de 25 a 27 de setembro de 1991 (EIQCB, 1991: 9). Nesse encontro, as mulheres optaram pela criação do movimento das quebradeiras de coco babaçu, como vemos abaixo:

A partir da década de 90, essas chamadas quebradeiras de coco babaçu iniciam processo de articulação entre essas diversas regiões, propiciando o avanço no nível das organizações de Associações de Mulheres, Cooperativas de Pequenos Produtores, Grupos de Estudos do babaçu e constituindo enfim o Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB). Nesse período, mobilizaram-se organizando encontros interestaduais; audiências públicas com governadores, parlamentares, Ministério Público instituições da sociedade civil; no plano organizativo promoveram também cursos de formação e capacitação para as coordenadoras do movimento, seminários, encontros, oficinas; propostas de políticas públicas, projetos de Lei [...] (EIQCB, 2005: 5).

99 Noemi Porro é engenheira agrônoma que juntamente com seu esposo, o também agrônomo Roberto Porro assessoraram os trabalhadores nas primeiras iniciativas de organização dos assentamentos e criação das associações e cooperativas do Médio Mearim.

Por sua maior extensão e preponderância na história do babaçu, o Maranhão necessitou organizar-se em seis regionais: no Mearim, uma na Baixada Maranhense, uma em Imperatriz; no Piauí, na cidade de Esperantina; no Pará, em São Domingos do Araguaia; e no Tocantins, em São Miguel do Tocantins.

Sua área de atuação engloba cerca de 300.000 famílias de trabalhadores e trabalhadoras agroextrativistas que têm o coco babaçu como eixo norteador, mas incorpora atividades terceiras que fazem parte da pauta produtiva desses trabalhadores, como a produção de mel, a criação de pequenos animais e de plantas medicamentosas. Incorpora também culturas que foram agregadas a esse rol, como a produção de frutas desidratadas e a extração de essências vegetais aromáticas para a utilização na fabricação de sabonetes.

Conseguir ampliar sua base de legitimação é uma das principais lutas que o MIQCB trava neste momento. Suas lideranças têm consciência de que com o quadro atual não poderão reivindicar políticas e executar ações além de um determinado limite. Assim, têm buscado projetos de financiamento para os seus objetivos políticos nas instituições nacionais e internacionais que possibilitem a consolidação da presença do MIQCB em locais em que essa presença já possui alguma ação ou naqueles locais em que o movimento ainda não penetrou.

Atualmente, essa associação conta com ações do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério da Reforma Agrária, das organizações internacionais, como a Comissão Européia (que atualmente financia o maior projeto já executado pelo MIQCB, no valor de R$ 3,5 milhões), do DFID100, da Pão Para o Mundo, da Misereor e da War on Want. Esses projetos têm viabilizado a manutenção da sede do MIQCB em São Luís, capital do Estado do Maranhão, especialmente no tocante ao quadro de funcionários, que inclui uma secretária, um contador, um administrador financeiro e sete assessorias, sendo que duas ficam na sede e as demais estão uma em cada regional.

Ficou evidente nas entrevistas efetuadas na região do Médio Mearim que há substancial diferenciação política de um grupo em relação ao outro, e as famílias

100 Department for International Development. Órgão do Governo Inglês voltado à promoção do desenvolvimento de regiões pobres nos países do terceiro mundo.

que não são integrantes do movimento tem ainda seu círculo de acesso à informação restrito a poucos canais, como televisão, rádio e círculo de convivência. Essa situação proporciona a esses indivíduos reduzida visão do mundo que os cerca, não conseguindo acompanhar o ritmo da informação em nosso tempo.

Como prova disso, verificamos que praticamente não há introdução de novos métodos produtivos, que a renda é basicamente formada pelos mesmos elementos de décadas a fio, que a cesta de bens produzidos e comercializados não se alterou sensivelmente nas últimas décadas, que a dependência de políticos e dos próprios fazendeiros é ainda determinante das escolhas políticas.

A própria visão de mundo não ultrapassa muito mais que o perímetro da fazenda, chegando até a sede do município, local que funciona como uma alternativa de lazer e de acesso a mercadorias da cesta de bens da ração mais baratos. Embora algumas famílias possuem uma televisão em suas residências, elas se interessam bem mais por programações para distração do que jornais, fato causado, em parte, por que muitas notícias são apresentadas com um formato nem sempre compreensível, especialmente a sessão de economia, tema que tem recebido bastante destaque das fontes jornalísticas e que para esses grupos em nada interfere diretamente em suas vidas.

As famílias têm, na verdade, conhecimento dos acontecimentos históricos que marcaram a vida dos povoamentos, entretanto, nem sempre conseguem transmiti- los de forma clara, ordenada e concisa. Em geral, são pessoas que não participaram dos conflitos dos anos 80, ou o fizeram de maneira superficial, abandonando a luta assim que a situação apresentava sinais de arrefecimento.

A realidade dos grupos que desencadearam o processo de lutas ou dele participaram de maneira ativa é outra. Para esses grupos, percebemos duas realidades próximas, mas também distintas. Aqueles que conclamaram os povoados a lutarem pelo que acreditavam ser os seus direitos tiveram desde cedo que se acostumar a viajar dias e dias para reuniões e encontros em locais muito variados, desde a capital do Estado à capital do país.

Essas lideranças "originais" se beneficiaram do suporte político e econômico da Igreja Católica, se integraram a sindicatos, se reuniram com representantes do INCRA, do Ministério do Meio Ambiente, dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais, da Sociedade dos Direitos Humanos, etc., e assim assimilaram uma vastidão de informações acerca de leis, direitos, questões fundiárias, etc.

Além disso, aprenderam a interagir nos fóruns de decisão em situação de igualdade com outros grupos que possuíam reivindicações diversas. Tornaram-se conhecidos muito além dos círculos locais, como é o caso de Manoel da Conceição, trabalhador agroextrativista da região de Imperatriz que foi exilado na França e que lá tornou conhecida a luta contra a grilagem de terras nessa porção do Brasil. Também é o caso de Dona Maria Adelina (Dada), de Dona Dijé, de Dona Cledineuza, e de Dona Nice, que frequentemente dão entrevistas a profissionais de periódicos especializados nacionais, de jornais e de revistas, além de serem personagens indispensáveis em qualquer trabalho de qualidade sobre a história das quebradeiras de coco babaçu, seja do Mearim, seja de qualquer um dos quatro estados onde esse movimento imprime sua marca.

Há também as famílias que constituem a base do movimento. São sócias de pelo menos umas das associações e cooperativas da região e participam com freqüência de assembléias e reuniões em que são informadas do andamento das atividades, discutindo e votando quando surgem questões importantes. Para esse grupo, não há diferença perceptível entre a ASSEMA e o MIQCB, conforme já afirmado anteriormente.

Essas pessoas estão em um nível de envolvimento tal que elas introduzem novas formas de produção e tecnologias à medida que os primeiros resultados produtivos e organizacionais vão surgindo e sendo divulgados, de forma que, com o tempo, esses fluxos de informação irrompem as "paredes" do movimento e atingem os grupos desarticulados mais próximos.

Assim está acontecendo com as roças cruas, e já se deu com a campanha pela não derrubada indiscriminada de palmeiras pelas famílias, pela preferência de

venda da produção de amêndoas para as cantinas do movimento, e não para os atravessadores, entre outras ações de sucesso.

Participando de reuniões, encontros, grupos de estudo e recebendo assessoria e assistência técnica pela ASSEMA, esses trabalhadores vão ampliando o rol de opções de escolha das práticas de vida e trabalho.

A esse respeito, ao me referir às opções de escolha, o objetivo é desobstruir a mente contra as visões estilizadas que julgam que a situação estacionária técnica, social e econômica das populações rurais maranhenses é provocada pela "preguiça" do povo desse Estado. Nada mais infundado.

A formação sócio-espacial do Maranhão criou um modelo no qual os posseiros foram "isolados" do mundo exterior e tiveram, de certa forma, como único canal de comunicação, a figura do fazendeiro.

Então isolados e sem perspectivas de verem suas condições de vida melhoradas pelo aumento da produção, eles preferiram garantir apenas o necessário ao seu sustento e ao pagamento das rendas ao fazendeiro. Contraditoriamente à idéia da preguiça, essa era a única forma de resistência de que dispunham para evitar o risco de represálias.

Com a liberdade da terra ocasionada pelos projetos de reforma agrária, as populações interessaram-se mais e mais por melhorarem as formas de trabalho, pois agora se apropriariam dos frutos do seu trabalho, não existindo a imposição da renda ou da sujeição.

Ao menos é o que se acreditava, pois, contraditoriamente, a produção agrícola se reduziu desde o período dos conflitos101, podendo indicar que, mesmo

101 As conquistas vão se ampliando de forma que os conflitos também. Do conflito pelo coco e pela terra, disseminou-se para o campo da política, economia, gênero, justiça. As demandas das famílias são ao mesmo tempo conflitos potenciais que se efetivam na ação de alcance dos objetivos.

Diferentemente de outros movimentos que se limitam ao ambiente de lutas institucionais, as quebradeiras de coco babaçu inserem-se em campos pouco usuais, minando a capacidade de reação dos oponentes. A eleição de vereadoras significa capacidade de interferir na gestão das leis que regem os municípios de ação; comercializar, industrializar e re-comercializar garante que maior de riqueza circule mais tempo dentro de suas estruturas; as mulheres encabeçaram as lutas e continuam ainda hoje a serem o canal atrator de recursos e de destaques na mídia; etc.

com a conquista da terra, os trabalhadores não aumentaram a quantidade produzida em proporção superior à intensificação da concentração fundiária da região, mascarando, portanto, quaisquer êxitos produtivos dos assentamentos.

A Lei Babaçu Livre102 parte da idéia de que a terra, embora apropriada por um dono (por vezes grileiro), este já a "recebeu" com os palmeirais, não tendo plantado uma única árvore. Os palmeirais são, portanto, "dádivas de Deus".

Além disso, essa lei determina que todas as pessoas podem entrar em qualquer propriedade para coletar cocos para as suas necessidades, não podendo interferir nas eventuais lavouras e nas criações possuídas pelo proprietário. Ela estabelece, também, a proibição da derrubada das palmeiras, bem como o uso de produtos químicos para limpar as áreas.

Ressalta-se que a Lei do Babaçu Livre encontra-se aprovada em diversos municípios, a saber: Lago do Junco, Lago dos Rodrigues, Esperantinópolis, São Luís Gonzaga e Imperatriz, no Maranhão; Axixá, Praia Norte e Buriti, no Estado do Tocantins; e São Domingos do Araguaia, no Estado do Pará.

Em tempo: está em tramitação no Congresso Federal uma lei com abrangência nacional que se assemelha a do Babaçu Livre.

102 Nos anexos (páginas ) encontram-se, respectivamente, a primeira e a mais recente versão desta lei. Na versão do ano de 2002 aprovada no município de Lago do Junco-MA, há a correção de algumas lacunas existentes no primeiro projeto, tais como, que a liberdade para a coleta livre do coco babaçu diz respeito às quebradeiras de coco babaçu e suas famílias que desenvolvem um regime de economia familiar e comunitária. Esta especificação veio defrontar-se com o surgimento dos “catadores de coco babaçu”, pessoas que coletam os cocos na mata para vendê-los integralmente às indústrias guseiras instaladas no estado, significando cerceamento do acesso a este recurso àqueles que dele dependem parte importante das estratégias de sobrevivência. A presente versão também versa sobre a proibição da aplicação de venenos e herbicidas nas palmeiras, prática bastante utilizada por fazendeiros para disfarçar a devastação dos babaçuais em suas terras.