• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – O SENTIDO DO TRABALHO: CAMINHOS, CONCEPÇÕES

2.1 O MUNDO DO TRABALHO: O SENTIDO ONTOLÓGICO

Ao longo da história, a atividade humana, em sua incessante luta pela sobrevivência, o trabalho é, em si, uma atividade vital. Mas se, ainda em um contraponto, a via humana se resumisse exclusivamente ao trabalho, certamente ela seria também expressão de um mundo penoso, alienante, aprisionado e unilateralizado (ANTUNES, 2013).

A análise da atividade de trabalho que aqui se propõe busca entendê-la como parte do processo de constituição da sociabilidade humana, considerando suas dimensões positiva e negativa, uma vez que, em todos os modos de produção, estas duas dimensões sempre estiveram presentes. Porém, é no modo de produção capitalista que o trabalho reveste-se de uma intensa negatividade, a partir do momento que o trabalhador passa a vender a sua força de trabalho, tornando-se esta uma mercadoria, pois, de uma atividade de trabalho, a mesma se transforma em meio de produção, em mercadoria, que sofrerá divisão no interior do processo produtivo e na sociedade em geral.

A categoria trabalho, como nos tem evidenciado Nosella (1987), assume uma significação de tripalium, no plano das relações sociais da sociedade tribal, antiga e feudal (fundadas numa relação escravocrata e servil); de labor, na sociedade capitalista, que necessita, no plano das relações econômicas (compra de força de trabalho) e no plano ideológico (ideia de liberdade, igualdade e fraternidade); de trabalhadores duplamente “livres”, isto é, que não sejam propriedade de outrem (escravos) e não possuam propriedade e de poiesis, no contexto da utopia socialista e comunista.

Se, por um lado, então, necessitamos do trabalho humano e de seu potencial emancipador, devemos também recusar o trabalho que explora e aliena o ser social. Essa contraditoriedade processual do trabalho que emancipa e aliena, humaniza e sujeita, liberta e escraviza, ajuda-nos a entender os ramos produtivos e suas conformações com o processo de vivência humana.

Todas as sociedades empreenderam formas de organização da produção e distribuição do produzido. O trabalho e as relações sociais que se estabelecem em torno dele ocupam lugar significativo na compreensão dos ordenamentos societários. Karl Marx

foi, por certo, um dos autores que as elaborações em torno da categoria trabalho possibilitaram a construção de toda uma análise da forma capitalista de produção.

Em “Os manuscritos econômicos e filosóficos”, de 1844, Marx traz importantes apontamentos sobre o trabalho, sendo muitos deles retomados e desenvolvidos em obras posteriores. Marx faz uma análise da alienação do trabalho humano sob o estatuto do assalariamento, por meio de um permanente diálogo com as obras da economia política da época e a partir da crítica a filosofia hegeliana. As primeiras elaborações sobre os conceitos de trabalho, alienação, estranhamento estão presentes nesta obra. Os Manuscritos podem ser vistos, na opinião de Jesus Ranieri5, como uma “grande síntese”

tanto dos elementos que dão ao trabalho um caráter emancipador e de centralidade na sociabilidade humana quanto dos aspectos que carregam o trabalho de toda sorte de constrangimentos sob a égide do capital, da reprodução da apropriação privada do trabalho dos outros.

O eixo de partida sobre o conceito de trabalho para Marx é a constatação de que quanto mais o trabalhador produz riquezas, mais pobre ele se torna. Desta constatação paradoxal emana a contradição entre as potencialidades inerentes ao trabalho humano e a degradação gerada sob a forma do trabalho mercadoria. Se, de um lado, o trabalho, a vida produtiva é “vida engendradora de vida”, de outro lado, na sociabilidade capitalista ele se torna apenas um meio de vida, inibindo o desenvolvimento complexo da personalidade humana. No lugar de expressão de si e realização, o ser humano é depauperado, sua vida genérica é arrancada.

Compreende-se que, por meio do trabalho, o ser humano atua sobre o mundo externo, produz objetos, transforma a natureza e, ao fazê-lo, termina por modificar a si mesmo. Pelo trabalho a humanidade cria a si mesma e o mundo ao seu redor, faz sua própria história. “Toda a assim denominada história mundial nada mais é do que o engendramento do homem mediante o trabalho humano” (MARX, 2010, p. 114).

Já para Menezes Neto (2001, p. 33), “[...] o trabalho é a base do processo civilizatório, produzindo, quando considerado na totalidade social, as formas de sociabilidade humana”. Trabalhar é, então, criar, inventar, produzir, descobrir, pensar, fazer.

Existe uma unidade homem-natureza-homem que, no trabalho, como ação mediadora dessa relação, produz sentidos. Marx (1987, p. 206) diz que o homem é imediatamente ser natural e, como ser natural vivo, está em parte dotado de forças naturais, de forças vitais, sendo assim um ser natural ativo; sendo que estas forças existem, como disposição e capacidades, como instintos. Por ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, é um ser que padece, pois está condicionado e limitado ao que existe exteriormente. Os objetos de seus instintos existem exteriormente e independentes dele, mas são objetos dos quais o homem carece, são objetos imprescindíveis para as suas forças essenciais.

Assim, o homem depende da natureza para viver. Tal dependência não é apenas no que se refere à sobrevivência física, biológica, fisiológica, mas de sentido de vida, de realização pessoal, de humanização, ou seja, “[...] ser objetivo, natural, sensível e ao mesmo tempo ter fora de si objeto, natureza, sentido, ou inclusive ser objeto, natureza e sentido para um terceiro, se equivalem” (MARX, 1987, p. 206).

Para Marx, esta relação com o que está fora de si possibilita ao homem ser um ser natural, ou seja, “[...] um ser que não tem nenhum objeto fora de si não é um ser objetivo. Um ser que não é, por sua vez, objeto para um terceiro ser não tem nenhum ser como objeto seu, isto é, não se comporta objetivamente, seu ser não é objetivo. Um ser não objetivo é um não-ser” (MARX, 1987, p. 207). Nesse sentido, somos natureza e homens, objetos um do outro. Portanto:

Tão logo eu tenha um objeto, este objeto me tem a mim como objeto. Mas um ser não objetivo é um ser não afetivo, não sensível, somente pensado, isto é imaginado, um ser de abstração. Ser sensível, isto é, ser afetivo, é ser objeto dos sentidos, é ser objeto sensível e, portanto, ter objetos sensíveis fora de si, ter objetos de sua sensibilidade. Ser sensível é padecer (MARX, 1987, p. 207).

Para Marx, então, ser objetivo pressupõe ser efetivo, ser sensível, realizar-se para além da imaginação, para além da abstração e nesse processo padecemos. Mas qual seria o sentido desse padecimento?

Assim, o trabalho, como relação homem-natureza-homem, no qual o homem exterioriza criatividade, imaginação, desejos, acionando suas dimensões física, intelectual, psicológica, social, moral, sentimental, cultural, econômica, política, comporta e possibilita ao homem não apenas ser natural, mas ser natural humano, “[...] isto é, um ser que é para si próprio e, por isso, ser genérico, que enquanto tal deve atuar e confirmar-se tanto em seu ser como em seu saber” (MARX, 1987, p. 207), ou seja, o

homem na relação com a natureza humaniza-se e se põe para si e para os outros, atuando e confirmando enquanto ser e em seu saber, crenças, valores, desejos ou, segundo o próprio Marx (1987, p. 207):

Por conseguinte, nem os objetos humanos são os objetos naturais tais como se oferecem imediatamente, nem o sentido humano, tal como é imediata e objetivamente, é sensibilidade humana, objetividade humana. Nem objetiva nem subjetivamente está a natureza imediatamente presente ao ser humano de modo adequado. E como tudo o que é natural deve nascer, assim também o homem possui seu ato de nascimento: a história, que, no entanto, é para ele uma história consciente, e que, portanto, como ato de nascimento acompanhado de consciência é ato de nascimento que se supera. A história é a verdadeira história natural do homem.

Para Vasquez (2007, p. 407), “[...] o homem é um ser que produz socialmente, e nesse processo se produz a si mesmo. Este autoproduzir-se – como processo no tempo – faz dele um ser histórico”. Portanto, é um ser que produz, produz socialmente e produz no tempo e nas relações sociais com os outros homens, fazendo história, fazendo-se, ou seja, “a história humana nada mais é do que a história da práxis do homem”.

A história configura-se como o processo de nascer constante do homem, enquanto ser naturalmente social, pois, se o mundo natural e o mundo social não se apresentam inicialmente adequados ao homem, cabe a este, a partir da atividade do trabalho que, ao longo da história da humanidade, transforma natureza e homem, nascer dia a dia, tentando adequar a natureza e a sociedade a seus interesses, ou seja, a essência humana precisa ser reapropriada.

Em O Capital, no capítulo V do primeiro volume, Marx retoma esta concepção de trabalho, sobre processo de trabalho e processo de valorização. Enquanto criador de coisas úteis, de valores de uso, o trabalho, independente da forma de organização da sociedade, “é um processo entre o homem e a Natureza”, em que, por meio da ação humana, esta última é transformada e colocada sob o domínio do homem. O trabalho medeia a relação do homem com a natureza, coloca em movimento as forças naturais do homem com o objetivo de apropriar-se da “matéria natural” para utilizá-la em prol de sua própria vida. Ao atuar sobre a “Natureza externa” e transformá-la, o homem modifica também sua natureza.

Trata-se de uma atividade intencional que tem por objetivo criar valores de uso e apropriar dos elementos naturais. Esta é uma condição geral das trocas materiais, do intercâmbio de energias entre homem e natureza, independente de determinada formação

social, é condição natural permanente da vida humana, comum a todas as formas de organização social.

No capítulo I de “O Capital”, Marx (1988, p. 50) assim se expressa:

Como criador de valores de uso, como trabalho útil, é o trabalho, por isso, uma condição de existência do homem, independente de todas as formas de sociedade, eterna necessidade natural de mediação do metabolismo entre homem e natureza e, portanto, da vida humana.

O homem serve-se de meios para agir sobre a Natureza e dela obter os elementos que utilizará em proveito próprio. Estes meios são, antes de tudo, o homem mesmo com suas capacidades materiais e intelectuais de ação, a sua força de trabalho. Esta última não deve ser confundida com outras forças utilizadas na produção, sejam naturais ou construídas pelo homem. A força de trabalho combina elementos materiais e ideais, conhecimentos do pensamento e conhecimentos do corpo (saber fazer). “Como no sistema natural cabeça e mão estão interligadas, o processo de trabalho une o trabalho intelectual com o trabalho manual” (MARX, 1988, p. 101).

Marx também retoma, em uma célebre passagem, a comparação realizada nos Manuscritos entre a atividade produtiva animal e a humana.

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e portanto idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação da forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de sua atividade e ao qual tem de subordinar sua vontade (MARX, 1988, p. 142-143).

Enquanto o trabalho animal é instintivo, inato, o trabalho humano é consciente e proposital, ou seja, o poder do pensamento regula as trocas materiais entre o homem e a natureza. Giannotti (1984) chama a atenção para o significado dado por Marx a esta construção prévia do objeto a ser transformado. Para ele não se deve atribuir um caráter essencialmente psicológico a essa “antepresença da coisa”, pouco importa a imagem prévia na cabeça do indivíduo do produto a ser desenvolvido. O que interessa é a “anteposição” do objeto situado idealmente para que o processo de modificação efetuado esteja subordinado ao propósito estabelecido. A atividade de trabalho essencialmente humana é uma atividade teleológica, passa por uma antecipação do objetivo a ser alcançado na consciência do sujeito antes de realizá-lo. Sem essa experiência que permite ao homem prefigurar o “ponto onde quer chegar”, o sujeito humano, na visão de Konder

(1992, p. 106), “[...] não seria sujeito, ficaria sujeitado a uma força superior a sua”, preso a uma dinâmica objetiva.

O produto aparece como a explicitação de um objetivo, de um fim que se dá idealmente e se efetiva adequando o resultado ao que foi proposto, no interior de um movimento que opõe, de um lado, o trabalhador e sua vontade, de outro lado, as coisas. Ambos perdem autonomia para se tornarem partes de um processo mais geral. Mas em que medida se realiza esta condição ideal? Não parece paradoxal pensar o trabalho em termos tão abstratos quando Marx nos adverte sobre o equívoco de utilizar a noção abstrata de trabalho de um modo anti-histórico, especulativo?

O trabalho pensado fora de uma determinada forma social é abstração, pois, quando se trata da produção, trata-se da produção em um “grau determinado do desenvolvimento social, da produção dos indivíduos sociais” (MARX, 1978, p. 104). Apesar disso, o processo de trabalho, a relação direta do homem com a natureza, precisa de uma análise dos seus elementos essenciais, ainda que, por si só, eles não sejam capazes de explicitar as relações sociais mais complexas. Para Marx (1978), as determinações comuns que valem para a produção em geral, sem levar em conta as determinações históricas, são importantes para que não se esqueça da relação essencial entre sujeito (humanidade) e objeto (natureza).

2.2 TRABALHO PRODUTIVO E TRABALHO IMPRODUTIVO: UM OLHAR A