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3. Nacionalismo e nacionalismos

3.1. O nacionalismo europeu

3.1.2. O nacionalismo no século XX

As questões observadas por Benedict Anderson referem-se à fase do nacionalismo que inicia-se com o século XIX e que segue até a Primeira Guerra Mundial. Segundo o autor, o final da Primeira Guerra Mundial marca o fim da era das grandes dinastias e marca o triunfo do “princípio de nacionalidade” e do Estado-nação, como resultado do colapso dos grandes impérios multinacionais e da Revolução Russa.

Para Resina (2004), o nacionalismo introduzido em 1918 pelos impérios coloniais europeus ingleses e franceses, após o colapso de seus rivais do centro e leste da Europa, foi uma forma de consolidar a sua posição hegemônica e refrear as ambições russas e alemãs. O Tratado de Versalhes, por sua vez, marca a difusão geográfica dos movimentos nacionalistas de libertação colonial e semi-colonial, cujos ideólogos falavam a linguagem do nacionalismo europeu, adaptada, como aponta Hobsbawm (1990), em sentido antiimperialista.

Um aspecto importante na disseminação do nacionalismo pós-1918, principalmente nas sociedades modernas, foi o progresso na tecnologia das comunicações de massa: imprensa, cinema e rádio. Comunicando-se com várias camadas da população e em várias línguas, esses meios formavam aliados que não estavam disponíveis no século anterior. Por esses meios, as ideologias populistas podiam ser tanto padronizadas, homogeneizadas e transformadas quanto, obviamente, podiam ser exploradas com propósitos deliberados de propaganda por Estados ou interesses privados. Os esportes também têm papel relevante neste sentido, ao serem transformados em espetáculo de massa e ao representarem os Estados-nações.

Mas a propaganda deliberada quase certamente era menos significativa do que a habilidade de a comunicação de massa transformar o que, de fato, eram símbolos nacionais em parte da vida de qualquer indivíduo e, a partir daí, romper as divisões entre as esferas privada e local, nas quais a maioria dos cidadãos normalmente vivia, para as esferas pública e nacional (Hobsbawm, 1990:170).

Já no período pós-Segunda Guerra Mundial, segundo Anderson (1989), os nacionalismos que o caracterizam serão os surgidos nos movimentos de emancipação das colônias européias africanas e asiáticas, os quais possuíam um caráter profundamente modular, podendo recorrer a mais de um século e meio de experiência e a três tipos de modelos de emancipação nacional (europeu, americano e russo). Assim o fizeram porque os americanos e europeus haviam atravessado experiências históricas complexas que por toda a parte eram imaginadas como módulos, e porque as línguas de Estado européias que utilizavam eram a herança do nacionalismo oficial imperialista. (Anderson, 1989: 124-125)

Nas últimas décadas do século XX, o “nacionalismo”, diferentemente das “nações” do século XIX e início do século XX, já não se apresentava como o principal vetor do desenvolvimento histórico, devido a uma redução da relevância da “nação” e do “Estado-nação” para a estrutura econômica e política do planeta. Desde a Segunda Guerra mundial, mas especialmente desde os anos 60, o papel das “economias nacionais” tem diminuído, ou mesmo tem sido colocado em questão pelas transformações na divisão internacional do trabalho, cujas unidades são organizações multinacionais ou transnacionais, fora do controle dos governos dos Estados.

Nada disso significa que, hoje, o nacionalismo não seja muito proeminente na política, ou que haja menos nacionalismo do que havia antes. O que eu argumento, mais propriamente, é que apesar de sua evidente proeminência, o nacionalismo é, historicamente, menos importante. Não é mais, como antes, um programa político global, como se poderia dizer que foi nos séculos XIX e início do XX. É, na maior parte, um fator complicador, ou um catalisador para outros desenvolvimentos (Hobsbawm, 1990:214).

Para Hobsbawm (1990), os movimentos nacionalistas característicos dos anos finais do século XX seriam essencialmente negativos, ou melhor, separatistas. Daí a insistência colocada nas diferenças étnicas ou lingüísticas, que aparecem, às vezes, de

forma individual ou combinada com a religião49. Isso significa que, apesar do fenômeno da globalização e da conseqüente abertura de fronteiras ao comércio e organizações internacionais50, o “princípio de nacionalidade” parece vigorar em todo o mundo, já que todos os Estados são oficialmente “nações” e todos os movimentos de libertação dentro desses Estados tendem a ser movimentos de libertação “nacional”.

A globalização, gerada no seio dessas transformações e no desenvolvimento das tecnologias eletrônicas e digitais, tem sua eclosão enquanto ideologia no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, quando a recessão econômica mundial impulsiona um esforço multinacional coordenado para ressuscitar a economia mundial. Na mesma época, estava em jogo a Guerra Fria e a corrida dos impérios tecnológicos, EUA e URSS, além de uma reviravolta nas relações de poder entre e dentro dos Estados-nação. Nesse contexto de confronto entre blocos econômicos e militares, ergueu-se uma nova ênfase na legitimação democrática, o fundamento chamado por George W. Bush de “a nova ordem mundial” (Resina, 2004: 191).

Resina (2004) trata da discussão levada a cabo por cientistas políticos, historiadores e críticos culturais sobre o conceito de “pós-nacionalismo”51, à luz da convergência econômica, monetária, militar e judicial dos países que compõem a União Européia. Entretanto, o autor constata que a formação de um Estado europeu pós- nacional é enfraquecida pela idéia de nação e de autonomia nacional como elemento fundador e enraizado na construção das democracias modernas. E mostra a persistência das identidades e instituições nacionais e sub-nacionais, com as quais o discurso político guarda uma relação complexa e intensa em seu contexto nacional.

O fato de que certos Estados (como a França no caso da Carta Européia das Línguas Minoritárias) colocam suas constituições nacionais de encontro à da integração européia, ou de que eleições para o Parlamento Europeu sejam, para muitos eleitores, ocasiões para penalizar seus governos nacionais, indica que a estrutura política

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No caso dos movimentos fundamentalistas, qualquer que seja a sua versão religiosa, provêm um programa concreto e detalhado tanto para os indivíduos como para a sociedade, mesmo que esse programa seja uma seleção de textos ou tradições cuja adequação com o final do século XX não é muito tranqüila. Mas, diversamente do nacionalismo, o fundamentalismo retira a sua energia da demanda pela verdade universal teoricamente aplicável a todos (Hobsbawm, 1990:200-201).

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Como a Comunidade Econômica Européia e o Fundo Monetário Internacional (Hobsbawm, 1990: 206).

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Esse “pós-nacionalismo” seria definido pela dependência das identidades coletivas em torno de uma idéia puramente política, a qual estariam subordinadas as tradições culturais nacionais (Resina, 2004: 176).

européia emergente não emana da vontade de um povo europeu absoluto (Resina, 2004: 177).

Assim, a globalização pode reestruturar a realidade política de certo modo, mas não leva à obsolescência da idéia de nação. As identidades nacionais podem ter se tornado mais facilmente cambiáveis ao serem dispostas ao lado de outros tipos de identidade, mas não se pode desprezar as suas pressuposições sociais fortemente arraigadas. Além disso, a globalização pressupõe a existência da solidez da nação por excelência apesar do intercâmbio econômico, nesse sentido, podemos destacar os Estados Unidos como motor da globalização capitalista e, ao mesmo tempo, mantenedor de suas prerrogativas nacionais, enquanto conserva uma influência quase hegemônica fora de suas fronteiras.

Para Resina (2004), as nações continuariam a serem mantidas pelas chamadas “etno-histórias”: memórias, mitos, símbolos e tradições, que sustentariam muitas nações modernas e exerceriam uma influência poderosa apesar dos processos de modernização. A linguagem, por sua vez, embora não seja fator ativo, continua a ser elemento significativo em todos os movimentos nacionais e a fundação mais promissora para uma comunidade nacional, constituindo a principal via de socialização em uma comunidade.

Assim, podemos concluir, de acordo com Anderson (1989), que o nacionalismo continua a constituir o valor mais universalmente legítimo na vida política de nossa era, permanecendo como algo que emana sobretudo do Estado e que, antes de tudo, serve aos seus interesses, emitido pelos apelos oficiais quanto a uma solidariedade entre membros de uma “pátria”, metaforizada sobretudo nos símbolos nacionais e na língua. Claro que existem dúvidas se a nacionalidade e o nacionalismo oferecerão uma resistência à integração multinacional, mas, apesar de seu legado de desigualdade e dominação, ainda vigoram como fatores importantes de coesão da comunidade imaginada que é a nação.

Podemos enfatizar que esse nacionalismo subsiste também no Brasil do século XXI. Como pudemos ver nas Comemorações dos 500 anos, foi feito um esforço estatal para arregimentar a população brasileira em torno da idéia de nação. Neste momento, foram manipulados mitos e símbolos que, como vimos, foram importantes na construção dos estados nações europeus, e que aqui giravam em torno do elo entre

Brasil e Portugal, dos indígenas tal como imaginados na época do descobrimento, da Igreja Católica e da história da nação, entre outros.

Outro fator que se manifestou nesse momento foi a capacidade dos meios de comunicação de massa de servirem como aliados importantes para a construção de uma “comunidade imaginada nacionalmente”. A Rede Globo de Televisão procurou, como vimos, veicular a imagem de comunhão entre os brasileiros, convidando-os para uma contagem regressiva para o grande momento de celebração da nacionalidade, afinada com os temas estatais de celebração do passado e do desenvolvimento do país. Da celebração dessa “nação histórica”, como vimos, ficaram encarregadas sobretudo as telenarrativas históricas, dentre as quais destacamos A Muralha, que elege o bandeirante como mito e símbolo de nacionalidade, consoante ao tom de celebração estatal.

No entanto, como pudemos observar, esse construto ideológico do Brasil e do seu passado não conseguiu vincular-se ao dos “excluídos”, representantes das classes populares, ao veicular um patriotismo estatal que desconsiderava a realidade de sua população, de pobreza e desigualdade social. E veiculou uma versão do passado da nação que mascarou os embates entre dominadores e dominados, ocultando o legado de miséria desse passado, apresentado como algo “superado”, além de desvinculado das dificuldades econômico-sociais presentes.

Essa falta de vínculo com o presente também ocorreu pela retomada de temas passados do nacionalismo brasileiro, desvinculados da realidade atual do país, sendo relidos pelo discurso governamental, por exemplo, temas do nacionalismo romântico do século XIX. Na verdade, o “alvorecer” do Estado-nação brasileiro já foi marcado por um desacordo entre idéias e lugar, dada a importação de motivos europeus que eram pouco compatíveis com a situação no país quando de sua independência, em 1822. Esse “desacerto” foi de certa forma uma constante no percurso da produção das ideologias do caráter nacional brasileiro, como veremos a seguir, e tem íntima vinculação com a literatura romântica52 que aqui se desenvolveu.

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De acordo com Leite (1992), o Romantismo, iniciado na Alemanha de fins do século XVIII, pode ser entendido como uma visão de mundo, pertencente a um determinado período histórico, no caso a primeira metade do século XIX, e tendo como raízes sociais o nacionalismo e a modernização decorrente das revoluções burguesas. O nacionalismo gerou a valorização feita pelos românticos das peculiaridades regionais, nacionais e individuais, princípio que leva a valorizar a originalidade de cada povo e a estimular o desenvolvimento e as peculiaridades de cada um, voltando o romântico para o passado coletivo e para a integração em uma “alma popular”. Por outro lado, o romântico expressa a modernidade pela individuação dos dramas pessoais e pelo sentimento de inadequação social, daí a busca de evasão da realidade e o anseio de unidade que marcam a “alma romântica”.