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CAPÍTULO 4: Implantação do Modelo Neoliberal: Crise Institucional e

4.2. O Neoliberalismo na Argentina: A Era Menem

No caso da Argentina, a ascensão de Carlos S. Menem à Presidência da República se explica dentro de um contexto peculiar e específico. A Argentina era tradicionalmente vista como a “terra das oportunidades” e um dos locais favoritos do turismo europeu (chegou a ser considerada a “pequena Europa sul- americana”). Graças à desvalorização cambial e uma política de amortização e renegociação da dívida externa favorável aos investimentos, por incluir a compra de títulos privados convertidos em dívida nacional, até a década de 1970 o país se apresentava promissor para os investidores estrangeiros. Na década de 1980, porém, o quadro se inverteu. A política desenvolvida pelo Presidente Raúl Alfonsín (1983/1989), advogado e político que fora eleito pela Frente formada pela Unión Cívica Radical-UCR e Partido Social-Democrata através do slogan “Democracia se cura, se estuda e se come”, resultou em um período de grande turbulência hiper-inflacionária. Nesse contexto, a ascensão do peronista Carlos Saúl Menem também se explica pela aceitação que tiveram, entre os eleitores argentinos, dos seus discursos críticos de sua campanha política, sobre as deficiências estruturais do estado argentino, suas instituições e empresas, acompanhado pela promessa de realizar “verdadera Revolución Productiva con Salariazos”.

Segundo Aldo Ferrer, Menem comprometeu-se realizar as principais consignas históricas do movimento peronista: “el salariazo” recuperaria o poder aquisitivo dos trabalhadores; “la revolución productiva”, retomaria o crescimento e a transformação econômica do país, atendendo à velha reivindicação de

soberania em todos os terrenos. (FERRER, Aldo. La economía Argentina. 2004: 317-8).80 Uma vez eleito, afirma Ferrer, Menem demarcou claramente as orientações de seu governo e os compromissos verdadeiros que assumira com as alianças que o sustentavam. Assim, nomeou para compor os principais cargos do governo, funcionários da Bung & Born, um dos maiores conglomerados econômicos do país. O economista ortodoxo Domingo Cavallo, formado pela Harvard University, era nomeado Ministro da Fazenda. “… los planteos convergieron con lo que después se llamaría el Consenso de Washington: la apertura de la economía, la privatización de las empresas públicas, la reforma del Estado, la desregulación de los mercados y, en particular, de la actividad financiera”. (Ferrer. Idem: 318).

A saída interna para a crise, proposta por Cavallo, foi a instauração de um Plano de Convertibilidade, que atendia aos interesses do capital internacional. Porém, o Plano apresentava algumas alterações no que dizia respeito ao regime cambial fixo de conversibilidade (currency board) que estipulava paridade fixa direta do peso ao dólar, obrigando a Argentina abrir mão da emissão de sua moeda. O objetivo do Plano de Convertibilidade (Plan Bonex), de Domingos Cavallo, era frear a inflação através da esterilização total da liquidez do sistema, atrelando por dez anos a moeda Argentina ao dólar.81 Entre novembro de 1989 e princípios de 1990, o governo recolheu 60% da base monetária nacional (deflação), mas a inflação não cedeu, apesar de provocar forte contração das atividades produtivas. Cavallo, então, apelou para medidas mais ortodoxas: redução dos gastos e investimentos públicos, aumento dos impostos, liberação de preços e do mercado cambial, redução dos salários reais. Esta política foi implementada sob aplausos do FMI e permitiu elevar a capacidade de pagamento dos serviços e juros da dívida externa e aumentar as reservas internacionais do Banco Central da Argentina, tornado autônomo. (Id. Id. pp.318-9).82

80 No final da „era Menem‟, a palavra „salariazo‟ passaria a ser reconhecida como sinônimo de flexibilização, demissão em massa, baixos salários, aumento do emprego informal, e „Revolución productiva‟ passaria a

significar „desestruturação do aparato produtivo e do Estado‟.

81 Por sua inconstitucionalidade, o Plano teve de obter prévia aprovação do Congresso Nacional, dando plena autonomia ao Banco Central.

82 A necessidade de autonomia irrestrita dos Bancos Centrais, imposta pelo FMI aos países devedores da América Latina, faz parte do “pacote” conhecido por “Consenso de Washington”, a que somente o México e a Argentina aderiram inicialmente. As conseqüências acarretadas perda de autonomia do forte Banco Central do México é analisada pelo economista HUERTA G., Arturo. “La autonomía del Banco Central y la perdida

Com a adoção das consignas do “Consenso de Washington” por Cavallo, a Argentina renegociou sua dívida externa com o FMI, assinando a pactuação do Plano Brady. 83 Paul Krugman, ao analisar este sistema, não hesita em afirmar ter sido anteriormente comum apenas nos regimes das possessões coloniais européias, como forma de garantia exigida de algumas colônias, para emitirem moeda própria. Descreve o sistema:

“[o valor das moedas emitidas] era atrelado de uma forma rígida ao da moeda da metrópole e sua solidez era garantida por lei, exigindo que as emissões de moeda local fossem integralmente lastreadas por reservas em moeda forte. Ou seja, o público tinha o direito de converter a moeda local em libras ou em francos, a taxa fixa legal, e o banco central tinha a obrigação de manter quantidades suficientes de moeda da metrópole para assegurar a conversão da moeda local”. (Idem. Idem: 50-1).

A esta política cambial se deve a situação de insolvência da Argentina, pois a idéia em si, afirma Krugman, já era deflagradora de crises e se em curto prazo a dolarização econômica provocou queda das taxas de inflação e restabeleceu a confiança dos investidores estrangeiros, foi mais em função da renegociação do Plano Brady do que em decorrência da adoção do current board. (Id. Ibid). Outra medida que contribuiu para a „atração‟ dos investidores se deveu às privatizações irrestritas, que garantiram o ingresso de capital estrangeiro no país, refletido na elevação de cerca de 20% do PIB, ao longo de três anos. (FERRER. Op.cit. pp.320-1).

de manejo soberano de política económica”. In: CORREA, E. & GIRÓN, A. Coord. Reforma Financiera en

América Latina. Buenos Aires: 2006: 259-78.

83 O Plano de Brady, elaborado pelo Secretário do Tesouro norte-americano Nicholas Brady, propunha medidas de reestruturação das dívidas externas de boa parte dos países emergentes, incluindo a Argentina (crise da década de oitenta) e do México. O Plano consistia na compra de parte da dívida das empresas estatais com títulos nacionais fixados a 15% do valor nominal, cujas dívidas ao final eram reconhecidas nos mercados especulativos a 100% de sobrevalorização do valor nominal inicial. Caso não se quitasse a dívida dentro do prazo estipulado, o valor excedente seria negociado e substituído no mercado por “bônus Brady”,

com valor nominal mais baixo (geração de novos títulos). Na prática este sistema de agiotagem financeira consistia no reconhecimento, pelo FMI, de que a dívida externa dos países emergentes era impagável, de uma só vez. Daí a necessidade de valorizar o valor nominal dos títulos, para negociar novos valores com abatimento, caso o país devedor pagasse a parte acordada, e gerar novos empréstimos que incluíam a parte faltante desses títulos, mais a renegociação total da dívida por um novo valor, nova taxa de juros etc. Na América Latina, somente o México e a Argentina firmaram este acordo draconiano. No México, diversas associações de poupança e empréstimo foram liquidadas. (KRUGMAN, P. A crise de 2008 e a economia da

De início, a queda das taxas de inflação trouxe apoio generalizado da população ao novo sistema, especialmente da parte de segmentos da classe média, sobretudo comerciantes ligados aos setores de turismo e trabalhadores assalariados. De fato, momentaneamente a paridade peso-dólar parecia vantajosa, por permitir depositar os pagamentos transformados diretamente em dólares (moeda forte), em suas contas correntes, na conversão direta do peso para a moeda norte-americana. Em contrapartida, os empréstimos bancários e as transações comerciais para os usuários comuns eram contraidos em pesos, com juros de mora em dólares. Também o valor das privatizações dos setores estratégicos, avaliado em peso, recebia pagamento em dólar. Porém, em termos práticos, informa Krugman, o que mais importa era que para cada transação feita para emissão de papel moeda (peso) pelo Governo argentino, este pagava ao Fundo do Tesouro norte-americano uma porcentagem do custo da moeda lastreada em dólar - “cada redução do crédito na bolsa de Nova York representava a cobrança de muitos pesos”, pois muitas divisas (em dólares) eram enviadas para pagamento dos juros. (KRUGMAN. Id. p.51).

Ao contrário da dívida brasileira (estimada em reais), com a dolarização da economia, a dívida pública Argentina foi convencionada em dólares, atrelando, com o currency board, todo crédito e volume de dinheiro circulante à entrada de dólar (lastro) no país. Assim, na Argentina, os ataques especulativos e a perda de financiamento externo (aumento da desconfiança dos investidores), somado à dolarização dos preços, empréstimos e financiamentos, foi gerador não só de desequilíbrios no balanço de pagamentos e queda do PIB, mas também fragilizou a economia, deixada a mercê de ataques especulativos externos.84

Quanto à política de privatização irrestrita, ela pode ser resumida, literalmente, pela seguinte frase do próprio Presidente Menem: “Nada de lo que deba ser estatal, permanecerá en las manos del Estado.” (Presidente Carlos S. Menem. In: SOLANAS, Pino. Memória del Saqueo. Tres décadas de vaciamiento.

84 Neste cenário, ensinam os economistas, em caso de “pânico dos investidores” e diante da desvalorização, o governo se vê incapaz de emitir papel-moeda de forma autônoma, sem conseguir salvar os bancos da fuga de capital dos investidores estrangeiros porque, via de regra, na economia, quando uma taxa de juros é maior que a taxa de crescimento econômico num país, os déficits produzem crescimento exponencial das dívidas públicas, num mecanismo de capitulação interna de governos que, como a Argentina, não conseguem impedir a fuga de divisas em dólares. (KRUGMAN. A crise de 2008... Id. pp.50-2; FERRER. La economía

Buenos Aires: 2004. Documentário). Solanas indica o resultado: 26 empresas privatizadas, ou seja, 13% das principais empresas nacionais que representavam 60% da renda nacional.

Aldo Ferrer constata: “En realidad, la ausencia de capacidad de bloqueo de la sociedad civil y del sistema político a semejantes decisiones fue uno de los indicadores más elocuentes de la crisis de la densidad nacional.” (FERRER. Id. pp.324-5). Segundo este autor, o governo Menem não só privatizou como alienou de forma irrestrita o domínio e o controle de todas atividades essenciais para a acumulação e a mudança de padrão tecnológico da economia nacional. França e Espanha foram os principais países beneficiados pelas privatizações do setor das telecomunicações e a Entel foi vendida por 1/5 de seu valor. A Companhia de Águas foi comprada pelo consórcio francês Suez & Vivendi, que deixou um milhão de pessoas sem esgoto. A invejável estrutura ferroviária foi desmontada, seus 36 mil kilometros de ferrovias se reduzindo a 8 mil kilometros apenas, o que provocou a demissão de 95 mil empregos. Em conseqüência, o governo teve de realizar empréstimos junto ao Banco Mundial, no valor de US$ 700 milhões de dólares, para pagamento das rescisões contratuais dos postos suprimidos. Estradas, correios, vários bancos, setor portuário e de infra-estrutura foram igualmente privatizados. (SOLANAS. Loc.cit).

Como efeito colateral das perdas dos benefícios de cobertura social, a era Menem (também chamada de „mafiacracia‟) deixou 20% da população argentina em condição de desemprego aberto, incluindo os dois principais pólos que representavam a espinha dorsal da economia Argentina: a Companhia de Petróleo Cultral Co. e a Cia. de Gás Natural Loma de la Lata, compradas pela REPSol por US$ 2,5 bilhões.

A privatização destas duas Companhias, situadas na região de Neuquém, acarretou a falência generalizada de todas as refinarias e distribuidoras que compunham os setores intermediários dependentes dos dois primeiros. Além do desemprego mássico, o resultado foi a desestruturação das pequenas e médias empresas da região, fenômeno que atingiu as economias de todas as cidades conectadas a estas atividades e que se converteram em pólos de pobrezas extremas. Cidades e povoados dormitórios do entorno, dependentes dos contratos de trabalho nas duas companhias, desapareceram. Segundo dados de

Luis Oviedo, Una Historia del Movimiento Piquetero (2004), a taxa de desocupação no início do Plano Cavallo era de 6,6%. Seis meses após a crise Tequila (1994), a taxa aumentara para 18,6%. Na Grande Buenos Aires (considerando os bairros de Florencio Varela e de La Matanza, apenas) a porcentagem da população desocupada atingiu 40% do PEA; nas regiões de Targal y Mosconi (Salta), Cultral Co e Plaza Huincul (Neuquén), a taxa chegou a 50% da população vivendo abaixo da linha de pobreza. (OVIEDO. Idem: 23). Este é o contexto explicativo do ressurgimento dos movimentos piqueteros na Argentina.

Segundo Oviedo, “El movimiento piquetero es la creación más genuina de la clase obrera y de las masas argentinas en los últimos veinticinco años”. (Id. Id. p.1). Os primeiros movimentos datam de 1909, “la Semana Roja”, 1919, “la Semana Trágica y de la Patagonía Rebelde”, passando pelos grandes piquetes de greve da chamada “Década Infame” e os combativos piquetes da época da ditadura “Libertadora” e do governo de Frondizi, com os “cordobazos” e “rosariazos”, “tucumanazos” e grandes “puebladas” de fins de 1960 e começo dos anos 70. (Id. Id. p.9). Assim, o piquete recupera e atualiza um século de lutas, de organização e tradição operárias. Porém, estes atores retornam com algumas especificidades que dizem respeito a duas questões centrais: a falta de trabalho e a capacidade organizativa dos desocupados unidos em uma luta comum contra a falta de trabalho, e a incorporação dos trabalhadores empregados, na batalha comum por emprego e salário.

O movimento iniciou na região de Neuquén, em 1995, sob a forma de Comissões. Em 1996 ocorreu o primeiro piquete (protesto de Cutral-Có e Plaza Huicul, ao sul), que reuniu uma multidão de desempregados da Companhia Petrolífera YPF, privatizada. Entre 5 a 7 mil pessoas ou 75% da população da região de Neuquén (estimativa da polícia), cercou o entorno de acesso à empresa durante um mês (Pueblada). A ação deu origem ao famoso Plano de Governo (Plan Trabajar), cujas insígnias de negociação e pactuação entre movimento e governo provincial se realizou através de assembléias, que dinamizaram o Movimento.

A partir deste momento, o Movimento começava a adquirir visibilidade e contorno sócio-territorial maior, envolvendo grupos de moradores e poder

administrativo local. A visibilidade do grupo passou a encampar segmentos do sindicato organizado (CTA), responsável pela organização de um novo piquete, desta vez reprimida de maneira violenta pela força policial repressiva do governo e que culminou com a morte da líder piquetera Tereza Rodrigues. Paulatinamente grupos de piqueteros se espalharam por toda a Grande Buenos Aires, com a criação de organizações barriais (La Mazanza, por exemplo), movimentos unidos pelo forte sindicalismo argentino (CGT) e que culminou em movimentos mais amplos, de caráter nacional, e oficialmente reconhecidos pela denominação de “Piqueteros”.

Já então podia ser visível, por toda a Argentina, os resultados dramáticos da “era menemista”: fuga de capitais, ataques especulativos, elevação de juros, incapacidade do governo em conter o consumo e impedir que poupadores realizassem uma corrida aos bancos, motivados pela insolvência bancária quase generalizada. “No es extraño que, en tales condiciones, la sociedad Argentina buscara nuevas alternativas y recomponer la densidad nacional”, escreve Ferrer. (Id. Id. p.326). A saída política alternativa foi lançada pela oposição governamental, unida em torno da União Radical, liderada pelo advogado Fernando de la Rúa, em aliança com a FREPASO (Frente del País Solidário), que formaram uma Alianza com o líder cordobez Carlos “Chacho” Alvarez e traçando uma proposta de governo contida na „Carta a los argentinos‟. A Carta propunha mudar os rumos do país, estabelecer a transparência e a decência no manejo dos assuntos públicos, reanimar a economia e defender a soberania popular. Todavía, afirma Ferrer, “La propuesta nació [...] herida de muerte porque proponía mantener el régimen de convertibilidad, al igual que el candidato peronista.” (Id. Id). Foi nesse clima tenso que, sob apoio da Alianza, os argentinos elegeram Fernando de la Rua Presidente da República.