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O ORDENAMENTO ALEMÃO

CAPÍTULO III – NOTAS SOBRE ORDENAMENTOS ESTRANGEIROS

8. O ORDENAMENTO ALEMÃO

I. Além Reno, como é sabido, o Direito societário positivo consta,

maioritariamente, da AktG, de 1965. A matéria da renovação (?) das deliberações dos sócios surge tratada neste diploma, concretamente no seu § 244, que, sob a epígrafe “Confirmação de deliberações impugnáveis”, dispõe:

“A acção de impugnação não poderá ser admitida caso a assembleia geral tenha

confirmado a deliberação impugnada mediante uma nova deliberação que não tenha sido contestada em prazo ou cuja impugnação tenha sido recusada com trânsito em julgado. Caso o requerente tenha um interesse jurídico em que a deliberação impugnável seja declarada inválida durante o período que mediou até ao momento em que a deliberação de confirmação foi adoptada, poderá ainda requerer o prosseguimento dos termos da acção de impugnação para que a deliberação seja declarada inválida quanto a esse período”96.

A disposição legal agora em apreço levanta algumas questões nas quais vale a pena atentar, começando pelo facto de o preceito nunca se referir a “nulidade” ou a “anulabilidade”: com efeito, aí usam-se os termos “anfechtbaren” e “anfechtung”. E, como é sabido, a Anfechtung significa “colocar em causa”, “desafiar”, o que, em termos técnico-jurídicos, se traduz em impugnar97.

Como já se frisou, no modelo germânico dispensa-se, para que a anulabilidade opere, que a mesma seja judicialmente invocada. No entanto, e como também se sabe, o termo impugnar só é utilizado com propriedade quando se trate do vício da

96Tradução livre do original, em alemão: “Die Anfechtung kann nicht mehr geltend gemacht werden,

wenn die Hauptversammlung den anfechtbaren Beschluß durch einen neuen Beschluß bestätigt hat und dieser Beschluß innerhalb der Anfechtungsfrist nicht angefochten oder die Anfechtung rechtskräftig zurückgewiesen worden ist. Hat der Kläger ein rechtliches Interesse, daß der anfechtbare Beschluß für die Zeit bis zum Bestätigungsbeschluß für nichtig erklärt wird, so kann er die Anfechtung weiterhin mit dem Ziel geltend machen, den anfechtbaren Beschluß für diese Zeit für nichtig zu erklären”.

97No direito falimentar, sublinha justamente este aspecto MENEZES LEITÃO, a propósito do instituto da

resolução em benefício da massa insolvente, que “se inspirou o legislador no § 129, II, da

Insolvenzordnung, mas esta norma nunca fala em resolução, mas antes em Anfechtung, que significa

contestação ou impugnação” – cfr. MENEZES LEITÃO, Código da Insolvência e da Recuperação de

Empresas Anotado, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2006, anotação ao artigo 120.º, p. 147. Veja-se também

MENEZES CORDEIRO que afirma que, “na linguagem jurídica alemã, anulabilidade diz-se «impugnabilidade»” – cfr. MENEZES CORDEIRO, Tratado… Tomo I, cit., p. 861, nota 2418.

anulabilidade, não da nulidade. Assim, parece que o preceito respeita à anulabilidade e não à nulidade.

O facto de este dispositivo aparentar referir-se à anulabilidade complica sobremaneira a questão de descortinar se, in casu, nos encontramos verdadeiramente perante um caso de renovação ou se, como indicia a letra do preceito, se trata de confirmação98.

Desde logo, o preceito refere-se a confirmação (bestätigt), não a renovação: já tivemos a oportunidade de delimitar as figuras. Facto é, no entanto, que alguma da nossa doutrina vê neste facto a consagração, no § 244 da AktG, não da renovação, mas de uma “confirmação corporativa”99.

Não nos parece o caminho correcto: a confirmação é um instituto de contornos bens definidos, atribuindo a legitimidade confirmatória àquele a quem compete o direito de anulação, não à assembleia geral. E se assim fosse, pouco sentido haveria no regime legal: a confirmação tem sempre eficácia retroactiva. Isto, porque ela implica sempre, é sabido, uma renúncia ao direito de arguir o vício. Ora, sendo a confirmação dotada de eficácia ex tunc, não faria sentido aquele excerto normativo segundo o qual o interessado pode requerer a impugnação da deliberação para o período que medeia entre a adopção da primeira deliberação e a tomada da segunda100.

Dir-se-á que semelhante regra existe no nosso artigo 62.º, n.º 2, mas este mero enunciado não basta para resolver a questão. O sentido útil da parte final do n.º 2 do artigo 62.º, como se verá adiante, só é apreensível em face da renovação e não da confirmação, uma vez que este último instituto, como referimos em detalhe, se configura como um “acto de segundo grau”, reportando-se os efeitos jurídicos ao acto original, o que, também já sabido, não sucede com a renovação. E o que a lei permite impugnar, durante o período intermédio, é a primitiva deliberação, não a segunda.

II. Noutro ponto, e em formulação que diverge substancialmente do teor literal do

artigo 62.º, n.º 2, do CSC, o inciso do § 244 refere que “[c]aso o requerente tenha um

interesse jurídico em que a deliberação impugnável seja declarada inválida durante o

98Embora o BGB reconheça, contrariamente ao que sucede com o CC, a confirmação tanto de negócios

anuláveis (cfr. o respectivo § 144) como de negócios nulos (cfr. o respectivo § 141).

99Neste sentido, CARNEIRO DA FRADA, «Renovação de Deliberações Sociais», cit., p. 297, nota 28, e

PINTO FURTADO, Deliberações…, cit., p. 880.

período que mediou até ao momento em que a deliberação de confirmação foi adoptada, poderá ainda requerer o prosseguimento dos termos da acção de impugnação para que a deliberação seja declarada inválida quanto a esse período”

(negrito nosso).

Como aprofundaremos, pelo menos o teor literal do n.º 2 do artigo 62.º parece restringir idêntica faculdade às hipóteses em que a renovação da deliberação tem lugar em momento anterior ao da propositura da acção de impugnação da deliberação primitiva. Ora, o preceito alemão refere-se especificamente à impugnação da deliberação primitiva para o “período intermédio” quando a “confirmação” teve lugar já

na pendência da acção.

III. Cumpre ainda atentar em três aspectos adicionais. Desde logo, no facto de não

parecer que o preceito diga respeito a uma qualquer forma de sanação da invalidade da deliberação. Contrariamente ao que sucede no CSC, o legislador alemão foi particularmente expresso na consagração de um regime, sob o § 242 do mesmo diploma, que, com a epígrafe “Heilung der Nichtigkeit”, se dedica expressamente à sanação das invalidades que inquinam as deliberações dos sócios.

Teria sido, afigura-se-nos, tremendo lapso consagrar um regime de sanação de invalidades das deliberações e não incluir nele, mas dois preceitos abaixo, o regime da

bestätigt se o legislador o tivesse configurado como tal.

Um segundo aspecto respeita ao facto de, como referimos, serem utilizadas, inúmeras vezes, expressões que se traduzem na impugnabilidade da deliberação primitiva, ao invés de se dispor que o instituto tem aplicação perante determinados vícios (nulidade e anulabilidade), enaltecendo-se o cariz marcadamente processual do preceito. Também este facto se revelará de importância.

Finalmente, cumpre salientar que o inciso do § 244 não contempla, pelo menos directamente, qualquer requisito de legalidade ou de validade para que a nova deliberação “confirme” a anterior.