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Enquanto Jaime, lá na audiência pública em Salgueiro, pensava que o Possível para a realidade do São Francisco era garantir água aos pobres da região, setores de ponta do governo articulavam possibilidades para a aceleração do crescimento econômico, o aumento do emprego, e a melhoria das condições de vida da população brasileira. As possibilidades eram exponenciais em um ambiente de

aquecimento do comércio internacional de commodities que redundou na melhora dos termos de troca dos países periféricos exportadores desses bens, como é o caso do Brasil. Mas havia um constrangimento do crescimento econômico, devido ao que um relatório especial do The Economist, de 12 de novembro de 200958, chamou de “patchy infraestructure” ou uma “infraestrutura de retalhos”.

Como forma de costurar esses retalhos, no começo de 2007, foi lançado o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) que propunha, em um período de 4 anos, a construção de 45 mil quilômetros de estradas, 2.518 quilômetros de ferrovias, ampliação e melhoria de 12 portos e 20 aeroportos, geração de mais de 12.386 MW de energia elétrica, construção de 13.826 quilômetros de linhas de transmissão, instalação de quatro novas unidades de refinos ou petroquímicas, construção de 4.526 quilômetros de gasodutos e instalação de 46 novas usinas de produção de biodiesel e de 77 usinas de etanol59.

A idéia da primeira etapa do Programa foi aproveitar o cenário macroeconômico favorável – especialmente devido à alta dos produtos agrícolas primários e de hidrocarbonetos – para estimular o crescimento econômico e assim diminuir a pobreza e promover a inclusão social. Preconizava como ações fundantes, além das obras de infra-estrutura listadas, a desoneração de tributos para incentivar mais investimentos e controle de gastos públicos diretos. Na segunda fase do Programa, que se inicia com o governo de Dilma60, o foco está nas ações de infraestutura social e urbana. A intenção é aliar ações de infra-estrutura urbana, como saneamento, água tratada, energia elétrica, e transportes, com a ampliação de serviços sociais, particularmente a urbanização de favelas, o saneamento ambiental, equipamentos sociais como creches e unidades básicas de saúde, além da assistência técnica. Esse foco, segundo o 11º Relatório do Programa61, beneficiará primordialmente os municípios, desde os bolsões de pobreza das grandes metrópoles às cidades com menos de 50 mil habitantes, que correspondem a 60 e 32% da população, respectivamente.

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Special Reports Economist Brazil. Getting it together at last, The Economist. 12 de Novembro de 2009.

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www.pac.gov.br, acesso em 11/05/2011.

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Dilma Vana Rouseff foi eleita Presidenta, em 2010, cumprindo uma trajetória de continuidade da governo do colega petista que a antecedeu, Luís Inácio Lula da Silva. É tida como a “mãe” do PAC, programa que coordenou na gestão Lula, como chefe da Casa Civil do governo.

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Ainda permanece entranhado no discurso do governo sobre o Programa a idéia de uma política industrial que se distancia tanto do desenvolvimentismo quanto do liberalismo, indicando retomada do papel do Estado, como dinamizador da economia. Olhando-se mais amiúde os cânones do PAC, no entanto, é possível pinçar elementos dos dois modelos de desenvolvimento mencionados, que não afastavam muito as soluções engendradas das experimentadas outrora. Leitão (2009), em tese de doutorado sobre a dimensão territorial do PAC, com base em estudo de caso sobre a implementação de projetos do Programa no estado do Pará, identifica na construção do Programa uma colagem de ações antes da constituição do PAC, previstas no Plano Plurianual 2004-2007 e no portofolio de projetos dos Eixos de Integração e Desenvolvimento (ENIDs) do governo de FHC.

Em infraestrutura, por exemplo, segundo documento do Ministério do Planejamento de 200762,

o foco estava na eliminação dos “gargalos”, redução das desigualdades regionais, por meio do aumento do investimento privado. A política macroeconômica também não sofreu variação significativa da dos governos liberalizantes, com a manutenção e até acirramento das metas de superávit primário, cortes orçamentários, e aumento da taxa de juros básica (Filgueiras, 2003). Leitão (2009) afirma que a colagem de projetos que representa o PAC carrega em si as contradições presentes nos projetos que o constituem, como “uma abordagem do território centrada na oferta de infra-estrutura para a criação de corredores para o escoamento da produção, sobretudo para exportação”, e “na reprodução de um modelo centrado no papel do País como um exportador de commodities” (Leitão, 2009: 229-230).

Isso tudo é verdade, mas é possível identificar efeitos positivos importantes da ação governamental relacionada ao desenvolvimento, para além do cenário macroeconômico favorável, como a combinação do crescimento econômico com políticas sociais consistentes e inovadoras, e a implementação de programas sociais prioritários, como o combate à fome e redução da pobreza. Nesse sentido, o governo buscou o Possível para a construção do que Vizentini (2005) chama de “modelo sócio- econômico alternativo”. Revalorizou o mercado doméstico e a capacidade de poupança interna, além de promover políticas sociais com significativos ganhos para a redução da desigualdade, do desemprego, e da pobreza.

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Isso tudo também é verdade. Porém, o que se argumenta no presente trabalho é que ainda se tem de dar passos largos para a concretização desse modelo socioeconômico alternativo, preconizado por Vizentini (2005). Uma das condicionantes principais dessa concretização está na inclusão de grandes parcelas da população historicamente excluídas, nos espaços de decisão das políticas públicas, inclusive as comunidades quilombolas.

Leitão (2009: 30-31) afirma, que “os projetos do PAC tendem a reiterar as contradições históricas da ação do Estado sobre o espaço nacional (...) corroborando a tradição a um desenvolvimento territorial seletivo, concentrado e desigual no País”. A referida colagem do PAC, representada por uma carteira de projetos estruturantes ao invés de planejamento compreensivo, reflete a dominância da lógica de grandes empresas e grandes projetos de investimento na estruturação de espaços regionais brasileiros, que remete à lógica desenvolvimentista de planejamento setorial. Partindo da análise de setores da economia e da identificação de gargalos, ao invés das demandas reais, emanadas do território, afirma a autora que

O PAC corrobora a tradição do Estado brasileiro em atuar no território: via projetos sem plano, recheado de discursos deslocados da prática a que efetivamente se propõem, e das motivações que de fato se baseiam. Esses mecanismos (...) corroboram a tendência à reprodução das desigualdades regionais e sociais e, em última instância, à fragmentação do espaço regional, via investimentos de caráter seletivo (Leitão, 2009: 229).

A autora ainda questiona a pertinência da adoção de um modelo de desenvolvimento que, em nome de um crescimento econômico que não incorpora os excluídos do sistema. Adotado à revelia de um debate nacional mais amplo, esse modelo privilegia uma estratégia de desenvolvimento territorial que “favorece ganhos privados, socializa custos socioespaciais e impactos ambientais”, resultando em “um desenvolvimento territorial espacialmente seletivo, ambientalmente predatório, e socialmente excludente” (Leitão, 2009: 268).

É nas práticas de construção das políticas publicas, na sua implementação e na avaliação de seus ganhos que essas contradições florescem, em meio à gama de demandas dos setores sociais excluídos, nomeadamente os sem terra e sem teto – a periferia, os agricultores familiares, os indígenas, as populações tradicionais e os quilombolas. É nessas práticas que são perpetuadas as barreiras à participação ativa dessas populações, calcadas no preconceito de classe, raça e econômico, mesmo em

meio à retórica, muitas vezes fundamentada, do crescimento com estabilidade e da priorização das demandas sociais.

Nesse diapasão, a transposição do Rio São Francisco, parte do PAC, em um microcosmo, reitera o apelo ao progresso técnico-científico como apanágio para todos os problemas de desenvolvimento, e a acepção de que por meio do desenvolvimento todos os anseios da sociedade serão alcançados. Que sociedade é essa e a que anseios correspondem os direcionamentos dessas políticas, ainda são questões que se interpõem aos resultados do projeto de transposição do rio, de forma multifacetada, e indicam as contradições do Programa, do qual faz parte.