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3. Perspectivas metodológicas e eixos orientadores da investigação

2.3. O panteísmo de Espinosa: a Unidade entre Deus e o Mundo

Um dos filósofos sobre o qual impende, com maior clareza, a sombra de Giordano Bruno, é Baruch Espinosa (1632-1677), filho de judeus portugueses, nascido em Amesterdão e fundador de um sistema integrador do universo que absorve Natureza e Espírito numa única Substância: Deus. 181

"O nosso mundo físico, incluindo as estrelas, os sóis e os planetas, é apenas a couraça exterior, o véu, de um agregrado de causas interior, vital, inteligente, que na sua forma colectiva é a Vida Cósmica. Esta, não é uma entidade individual, mas infinita, sem começo nem fim, no interior do qual estão todos os seres", lê-se em PURUCKER, G. de, The Esoteric

Tradition, s/l, TUP, 2a ed., 1940.

180 Sinal evidente da repercussão do pensamento de Bruno é o montante bibliográfico saído

das prensas, no âmbito dos movimentos libertários oitocentistas que instituíram o monge como lenda inspiradora. Um dos seus biógrafos enumera a saída de 634 títulos inspirados no pensador, só no decurso do século XIX. Cf. SINGER, Dorothea, Waley, Giordano Bruno: his

life and thought. With annotated translation of his work On the Infinite Universe and Worlds.

New York, Henry Schuman, 1950, em especial o capítulo 8 acerca da influência de Bruno.

181 Excomungado da Sinagoga, Espinosa cedo refinou a sua preferência pela especulação

teológica, sobretudo depois de instalado em Haia, entre 1660 e 1677. Aí escreveu as suas principais obras, entre as quais o Tractatus Theologico-politicus, obra anónima datada de 1670, onde apresenta soluções racionais para problemas como profecias e milagres. O seu

Tractatus de Deo, homine, ejusque felicitate, desconhecido até 1852, contém as mais

flagrantes ressonâncias brunianas, segundo os seus biógrafos, Nicéon e F.H. Jacobi. Cf. SINGER, Dorothea Waley, ob. cit., cap. 8.

Na avaliação de Alfred Weber, "Deus não é a causa do mundo no sentido corrente do termo, uma causa actuante a partir do nada, mas o permanente substracto das coisas, a substância mais íntima, última, do universo". 182

Nesta perspectiva, Deus nem é o criador temporal do mundo, tal como o dualismo e o Cristianismo o concebem, nem o seu pai, como sugere a especulação cabalística e gnóstica. Ele é o Universo em si, considerado sub specie aeternitatis, o Universo eterno. As palavras Deus e Universo designam uma e a mesma coisa: Natureza, que a fonte de todos os seres ( natura naturans sive Deus ) e a totalidade desses seres considerados como seus efeitos ( natura naturata ). Em suma, no que mais nos importa, Espinosa pode ser definido como um cosmoteísta ou panteísta, no sentido estricto do termo; o seu Cosmos é o próprio Deus e o seu Deus é a substância cósmica. 183

Na esteira de Bruno, "mas com muito mais coerência, corrigindo-o, eliminando o último vestígio do primitivo hilozoísmo da Renascença", como pretende Collingwood, Espinosa reúne os dois "atributos" numa substância única a que chama, indiferentemente, Deus e Natureza, representando-a como "um imutável todo infinito". As consequências teológicas são imensas:

Observa Alfred Weber, que "aqui, a concepção espinozista de imanência implica, em simultâneo, permanência e, se o termo é viável, interioridade; ou seja, o Deus imanente é ao mesmo tempo a causa interior e permanente do universo. Cf. History of Philosophy. Modem

Philosophy, First Period. The Age of Independent Metaphysics (from Bruno to Locke and Kant). New York, Charles Scribner's Sons, 1908, # 55, Spinoza.

WEBER, Alfred, ibidem. Ou seja, usando o léxico cartesiano, o próprio Deus é res

cogitans e, simultaneamente, res extensa. Cf. SEVERINO, Emanuele, A Filosofia Moderna.

Lisboa, Edições 70, p.104.

COLLINGWOOD, R.G., oh. cit., p. 155. Esta questão é exposta por Espinosa, em detalhe, na sua Ética, I, Prop. 13, e consequente corolário: Ex his sequitur nullam substantiam et consequenter nullam substantiam corpoream, quatenus substantia est, esse divisibiliem. Apud WEBER, Alfred, ibidem. Nesta acepção, entende-se o panteísmo como uma modalidade do monismo ( do grego monas = um ), que designa, essencialmente, a teoria metafísica da realidade única, ou sejam um Monismo Espiritual, para o distinguir de um Monismo Neutro ou Materialista. Por certo, houve e há significados não coincidentes, desde o século XIX. Outras vozes propõem que estas teses são sinónimas do actual conceito de holismo (totalidade). De considerar, ainda, um outro conceito, o panenteísmo que, pela sua proximidade semântica, pode originar equívocos com o termo panteísmo. Se neste último, "tudo é Deus", naquele propõe-se que "tudo está em Deus", numa minudência que supõe novos sinónimos: teísmo bipolar, organicismo, teísmo neoclássico, entre outros. Uma destas "terceiras vias", o pantiteísmo foi avocado no último terço do nosso século XJX por José Maria Cunha Seixas. Dos clássicos, Platão e Heraclito, junto com Hegel, situam-se próximos deste sentido: nos modernos, destaque para Herbert Spencer, com o seu "evolucionism

como anota, por sua vez, Marianne Schaub, "o pensamento espinosista expulsa da ordem total da Natureza tudo o que seja heterogeneidade, finalidade, livre arbítrio". Abre-se caminho a um conhecimento positivo do homem, esvaziando-se a teologia. Esboça-se já uma "antropologia", no dealbar de uma era de novas descobertas e optimismos, que vai incorporar, também, a alteridade humana não-europeia. A legenda "Deuses sive nature" exprime o Deus de Espinosa, que exclui o Criador pessoal, ex nihilo, incompreensível. "O conceito de um Deus necessariamente produtivo arruina o conceito judaico-cristão de Criação". 185

Estamos perante uma evidente ruptura no quadro do teísmo e da mundividência das "religiões do Livro", comum aos cristianismo, judaísmo e islamismo: a ideia de um Deus, entidade sobrenatural separada, afim ao antropomorfismo, criador do universo e dos seres a partir do nada. O Deus vetero-testamentário, descrito pelas incidências do Génesis, projecta o seu carácter humano num contexto sobrenatural, que não difere muito da acção dos deuses homéricos.

Se, por um lado, o Deus de Espinosa tudo preenche, existindo em dimensões que não se esgotam nos limites do mundo visível; se das suas qualidades infinitas apenas nos são dadas a ver duas delas ( pensamento e extensão ), paradoxalmente, esse Absoluto Divino situa-se bem mais longe do ser humano, mais alheio à sua condição e finalidade no cosmos: onde havia uma relação estreita entre a Deus, homem e mundo, a centralidade da criatura humana no plano de Deus e a soteriologia cristã, passa a imperar um distanciamento e uma frieza que a Substância espinosista impõe: o Ser eterno não actua com vista a um fim em si, nem existe para a salvação de um fim; porque a sua existência não tem origem nem fim; depois, esse Deus/Natureza é indiferente aos indivíduos, destituído que é de paixão, de emoção e dor. Por

cósmico" e Henri Bergson, com o "elã vital" que conduz a evolução por saltos, em direcção ao futuro. Cf. GEISLER, Norman, artigo "Panentheism", in Baker Encyclopedia of Christian

Apologetics. Baker, 1999. Cf. também a nota 146 supra.

185 Cf. "Espinosa ou uma filosofia política galilaica", in CHATELÊT, François ( dir.) História

isso, este Deus não ama ninguém. Consonante com este é o tom da filosofia dos Vedanta, quando considera que, se o universo ( "o corpo do Ishvara" ) é determinado, não tem, por outro lado, propósito algum para lá de si mesmo. 187

Contrastando com o mundo criado, "efeito de um Criador Inteligente, livre e pessoal, que transporta uma quantidade positiva de informação e abriga um significado", 188 o Deus/Natureza de Espinosa estabelece uma ruptura

flagrante na ordem teleológica do cristianismo dominante, nos seus sustentáculos doutrinais nucleares, com destaque para o binómio Revelação/Incarnação. Por outro lado, estabelece um precedente inédito para interrogar o argumento finalista da concepção, corolário de um antropocentrismo extremo: os produtos da Natureza como ornamentos exclusivos para deleite da humanidade. Como destaca Errol E. Harris, tratava- se de investigar os motivos das preferências que "um corpo celestial tão diminuto como a Terra e, do mesmo modo, criaturas tão insignificantes e tão imperfeitas como os humanos, pudessem ser a finalidade e o objectivo, para aos quais a imensidão do universo e o seu conteúdo eram o meio". 189

Na poética síntese de Bernhard Mallenhauer, a natureza do Deus espinosista ( no sentido jónico de principium ) "é como uma sagrada escritura transcrita sem fim em muitas línguas ou uma sinfonia cósmica que é transcrita, Cf. Espinosa, Ética, iv, Prefácio, Parte I; vs. 17 e 19. Esta obra tem uma tradução portuguesa de Joaquim de Carvalho (1950), reeditada. Lisboa, Edições Relógio d'Agua, 1992, 501 pp. Sublinhe-se que o inventário da recepção de Espinosa em Portugal tem encontrado linhas de inevestigação histórica, mormente graças aos trabalhos de Luis Machado de Abreu, por exemplo sobre "O deismo ético de Uriel da Costa", Revista da Universidade de

Aveiro/Letras. Aveiro, n°l, 1984, pp. 119-130, além da coordenação de Sob o Olhar de Espinosa, Actas do Seminário Português e Hispânico sobre Espinosa. Universidade de

Aveiro, 13/14 de Novembro 1998. Outros trabalhos, como os de Diogo Pires Aurélio e Maria Luisa Ribeiro Ferreira, têm investido na busca de traços espinosistas na paisagem intelectual portuguesa, de que é exemplo o caso de António Sérgio.

1 RI

Cf. KRISHNANANDA, Swami, Studies in Comparative Philosophy. Sivananda Ashram, Rishikesh, The Divine Life Society, India, 2002.

188 TANZELLA-NITTI, Giuseppe, artigo "Creazione", ob. cit..

Cf. Cosmos e Anthropos, p. 269-270. Esta objecção fora já expressa, no século VI d. C , por Boécio, que escrevera: "Através de provas astronómicas, sabeis que a terra inteira, comparada com o universo, mais não é do que um ponto. E, segundo Ptolomeu, apenas uma quarta parte deste cantinho é habitado por coisas vivas. Retirem desse quarto os mares, os pântanos e outros locais desertos, e o espaço que resta ao homem dificilmente merece o nome de infinitesimal". Cf. BOÉCIO, The Consolations of Philosophy, II, Prosa vii, apud HARRIS, E. Errol, ob. cit.

sem cessar, para diferentes instrumentos e executantes". Daí que, "existam possivelmente incontáveis ordens de vidas, para além da nossa modesta fantasia, ainda que não consigamos adivinhar o que elas possam ser. Espinosa exaltava a razão, mas não considerava os limites dos nossos talentos os limites da verdade".190

O universo panteísta de Espinosa apela, irresistivelmente, a associações diversas, mormente com modalidades monistas, tais como o emanacionismo, o animismo e o panpsiquismo, reactivados em reflexões filosóficas e metafísicas contemporâneas que descentram o lugar do ser humano e, em simultâneo, exaltam a diversidade de biótipos e de consciências inscritos na infinitude. m

Um elemento que tem sido recentemente capitalizado em recentes reflexões, é o postulado espinosista da "dualidade mente-matéria, como atributos, entre muitos, da Substância eterna, infinita e única que ele identifica com o próprio Deus". Esclarece o filósofo que "não há nada na natureza que não tenha um aspecto mental. Ou seja, a própria concepção da matéria em si, revela ao mesmo tempo a outra face da moeda: "um círculo que exista na natureza e a ideia da existência desse círculo, que também é Deus, constituem uma e a mesma coisa" - proclama Espinosa. 192

Logo se deduz que o pensamento humano não seria excepção, mas, em consequência de uma lei universal, apenas mais uma entre as suas inumeráveis formas de expressão", sugere H.R.Opdenberg, citando o heterodoxo teólogo: "Relativamente à mente humana, creio que ela faz também parte da natureza;

"Spinoza and the bordelines of Science", in Sunrise Magazine, Outubro/Novembro, 1984, Calcutá, Theosophical University Press.

De acordo com John Macquarrie, "o emanacionismo surge associado ao panteísmo, não como uma "realização acabada" mas antes como um "fluxo contínuo" ("flows forth"), que mantém uma relação próxima com as suas origens e dela continua a participar. Aponta-se como exemplo a doutrrina de Lao Tzu: "O Tao engendra um, Um engendra dois...", e assim sucessivamente. Cf. Thinking about God. London, SCM, 1975, apud LEVINE, Michael, artigo "Panteism", Stanford Encyclopedia of Philosophy. Stanford University Press, 1966.

192 Cf. escólio da sétima proposição do Livro 2, da Ética ( 1677-1985), apud MORE, T., artigo

por isso, mantenho que existe na natureza um infinito poder de pensamento."

193

É por esta unidade essencial e continuidade de toda existência que, tal como em Bruno, se reafirmam e partilham ideias nos Upanishads, nos Vedanta, no Budismo, entre outros afluxos que desaguam nos nossos dias, plasmados no ideário cosmológico de um David Bohm e na formulação do espaço cósmico como um plenum, "um imenso oceano de energia e matéria", estando esse todo submetido a uma "ordem implicada". 194

Curioso que, pouco antes das intuições do judeu português, no longínquo Oriente, Wang Yang-ming (1472-1528), tido como o maior confucionista da dinastia Ming, ganhou celebridade na história da filosofia chinesa pela sua tese do Espírito cósmico, no qual "todas as coisas são redutíveis a uma consciência universal, cuja energia criativa invade e penetra todo o universo físico". I95

Indubitavelmente, a lucidez de Bento de Espinosa abriu a porta a percepções singulares. A inteligibilidade de uma plenitude autoriza um universo incontável, povoado de inúmeras "mónadas", diferenciadas no todo,

Espinosa, Carta a Henry Oldenburg, 1655, #32, van Vlotan ed. Apud Opdenberg, H.R.,

"Universe of Infinite Variety", in Sunrise Magazine, Fevereiro/Março, 1968. Calcutá, Theosophical University Press.

Cf. Wholeness and the Implicate Order. Boston/London, Routledge & Keagan, 1980, pp. 179 e segs. Atente-se, de igual modo, na reflexão de um outro físico maior do século XX, Bernard d'Espagnat, discípulo de Niels Bohr, e que procura interpretar a física quântica, e a tese da não-separabilidade que ela implica, no quadro espinosista da ontologização da substância. Resulta das obras capitais do autor a noção de um Deus profundamente escondido na realidade, antecâmara de um "Real velado". Cf. Un atome de sagesse, propos d'un

physician sur le réel voilé. Paris, Éditions du Seuil, s/d. Em português, pode ler-se com

proveito a obra Uma incerta Realidade. O Mundo quântico, o Conhecimento e a Duração. Lisboa, Instituto Piaget, 1998.

195 Cf. IZUTSU, Toshiko, " Matière et conscience dans les philosophies orientales", in

Science et Conscience, oh. cit., p. 353-366. O tema das afinidades entre os diversos monismos

em culturas e tempos distintos é exaustivo e excede os parâmetros que balizam a nossa temática. Basta referir, por exemplo, a primeira corrente do monismo existencial, desenvolvida no Islão hispânico pelo seu grande filósofo Ibn' Arabi ( 1165-1240 ). Na sua visão gnóstica, a realidade, que ele denomina "existência" ( wujud ), equivale a uma energia vital universal, geradora em continuidade, por um processo de automanifestações ontológicas ( tajalli ), de toda uma estrutura hierárquica de formas do Ser, desde as metafísicas até às do mundo material. Donde, a existência de uma miríade de bioformas, que reproduz o retrato de um mundo saturado de vida. Ibidem, pp. 363-4.

ou "a identidade fundamental de toda as almas na Supra-Alma Universal", na definição teosófica de H..P. Blavatsky. 1%

E se preciso fora invocar a actualidade e impacte da filosofia do autor da Ética na reanimação de actuais nexos epistemológicos e cosmológicos, bastaria a emotiva confissão de Albert Einstein para o certificar: "Acredito no Deus de Espinosa que se revela na ordeira harmonia do que existe, e não num Deus que se preocupa, ele mesmo, com o destino e as acções do seres humanos". 197

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