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A recepção da nova imagem do universo na primeira metade do século XVni português

2.4. Os "vários mundos" de António Cordeiro

"Ocupa o centro estrutural do pensamento filosófico português do século XVII e primeiro quartel do século XVIII, como síntese de movimentos anteriores e gérmen de novos". Assim se pronuncia o jesuíta Manuel Moraes na análise que faz do trabalho do historiador e pensador, também jesuíta, o açoriano António Cordeiro (1640-1722), o que o leva a concluir que "o mestre de Coimbra se tinha adiantado meio século sobre as ideias filosóficas do seu tempo". Conquanto o religioso inaciano se haja colocado numa posição conflituosa junto dos seus superiores, ao ter de retratar-se após a proibição de uma trintena de proposições contra Descartes, aprovadas em reunião da Décima-Quinta Congregação Geral da Companhia, ainda assim a semente da "desobediência" não estiolou. Aliás, como se sabe, as interdições cingiam-se ao ensino em público, pelo que Cordeiro prosseguiu nos seus contactos preferenciais com os jesuítas franceses e italianos, que o colocaram na rota do conhecimento mais actualizado da época, entre eles, Honorato Fabri, Noel, professor de Descartes, Scheiner, o primeiro a observar as manchas solares, Pierre Gassendi, através de Inácio Der-Kennis, e o omnipresente Riccioli. 184

I82THOMAS, Antonius, Sinopsis Matthematica. Duaci, 1685, Pars I, pp.264-7, apud

MAURÍCIO, Domingos, "Os Jesuítas e o ensino das Matemáticas", Brotéria, vol. XX, fase. 3, Março, 1935, pp. 189-205.

MORAES, Manuel, Cartesianismo em Portugal: António Cordeiro. Braga, Livraria Cruz, 1966, p. 9. António Cordeiro nasceu em Angra do Heroísmo, fez o noviciado em Coimbra, estudou em Lisboa e em Coimbra, no Colégio das Artes, tendo ali ensinado Teologia e Filosofia entre 1676 até 1696. Como historiador, a sua obra mais emblemática é a História

Insulana, Lisboa, 1717.

184 ANDRADE, A.A., "Alguns aspectos da nossa cultura antes de Vernei", Brotéria, Vol.

XXXDC, fase. 4, Outubro, 1944, pp. 249-255. J. Silva Dias e Francisco Rodrigues têm opiniões opostas quanto à autêntica posição de António Cordeiro relativamente ao

António Cordeiro, transportou para livro o seu Cursus Philosophicus, escrito entre 1676 e 1670, fruto do seu magistério em Coimbra, e em cujo

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segundo tomo colhemos breves excertos para o nosso "corpus". Secundando os passos de outros conimbricenses (Telles, Soares Lusitano), o filósofo vibra repetidos golpes na tese da incorruptibilidade do céu empíreo, admitindo o aparecimento de novos astros. Nas aulas, afirma que "a matéria celeste tem a mesma natureza que a da Terra; que todos os elementos são pesados e não buscam por natureza os seus lugares e que a gravidade é simplesmente uma força instrínseca e o Sol não é sólido: está em ebulição, salvo no centro, segundo os recentes matemáticos". Tal como muitos dos seus coevos, o jesuita açoriano opta por ecletismo prudente, afirmando-se, no essencial, como aristotélico, mas não desprezando autores modernos, como vimos.

Nos tópicos que nos importa destacar, do seu olhar sobre o cosmos retemos uma curiosa concepção sobre a luz, definida como "substância material ou partículas pequeníssimas manado continuamente da fonte luminosa", ou ainda "fluxo contínuo de fogo, constituído por átomos finíssimos e inúmeros corpúsculos puríssimos e raríssimos". De igual modo, considera que a matéria que existe em todo o universo é uma só e a mesma.

As respostas do teólogo terceirense ao clássico interrogatório sobre a possibilidade de existirem vários mundos parecem decalcadas de Soares Lusitano, tal o modo como articula e desenvolve os argumentos que discute.

cartésianisme O primeiro afirma que "o jesuíta terceirense foi o primeiro a discutir as concepções metafísicas de inpiração gassendo-cartesiana. Cf. Portugal e a Cultura Europeia,

ob. cit., p. 261; o segundo, pensa que ele "nunca foi cartesiano, estando longe das conclusões

dos atomistas e das fantasias infudnadas de Descartes". Cf. História da Companhia de Jesus

na Assistência de Portugal. Porto, tomo IV, vol.1, pp. 343 e segs. Manuel Moraes descobre-

lhe "afinidades" com o pensador francês, embora o seu conhecimento dele seja indirecto, retiradas da leitura de Carleton Compton (Philosophia Universo. Antuérpia, 1649, Ia ed.).

Apud MORAES, Manuel, ob. cit., pp.130 e segs.

185 CORDEIRO, António, Cursus Philosophicus Conimbricensis, Pars Secunda in

P/iysícam.Ulyssipone, Ex Officina Regis Deslandesiana, MDCCXUI.

186 ANDRADE, A.A., "Alguns aspectos da nossa cultura antes de Vernei", Brotéria, vol.

XXXEX, fase. 1, Julho 1944, p.75.

Desde logo, cita o parecer do seu par jesuíta, garantindo que "nada parece repugnar a esta hipótese". Assim,

"a hipótese de mundos múltiplos e diversos entre si, não repugna. Depois, porque não repugna da parte de Deus. Este é infinito e infinitamente imitável. Da parte do lugar, também não repugna. Este não estaria para além do último espaço do empíreo celeste, porque este mundo não perderia o seu lugar, porque foi o primeiro a ser criado. Nada a

Da perspectiva de António Cordeiro, o único óbice é o limite do espaço até ao céu empíreo, território proibido, inacessível, às congeminações humanas, porque sede da corte inefável de Deus. Submisso às normas da unidade do mundo requerida pelo ideário peripatético-tomista, o pensador açoriano não estranha "a existência separada ou simultânea de vários mundos", readquirindo, subitamente - insistimos nesta surpreendente actualização cosmológica - um tempo mental plenamente hodierno, em termos de especulação científica.

Nem sequer, prossegue o pedagogo jesuíta,

"se pode negar que Deus possa aniquilar este mundo e criar um totalmente semelhante a este ou diferente deste. Pelo contrário, pode criar um segundo, conservando o primeiro, seja em tempo diferente ou em simultâneo e, porque não a existência de tantos ou vários mundos. Se no círculo da Lua existissem, de facto, outros homens, impérios, reinos, cidades - como sonharam alguns e cuja possibilidade não repugna, mas que, de facto, rejeitámos atrás - o povo diria, então, que existiriam vários mundos, o da Lua e o nosso, sublunar, embora no sentido que damos, quando chamamos vulgarmente Novo Mundo à região do Brasil, a toda a

CORDEIRO, António, Cursus Philosophicus, Tract. 3. de Phil. Natur. disp. 2. qu.3, § 3404, p. 636.

América, bem assim quando dizemos de todo o homem que morre, que foi para outro mundo".I

Cordeiro adiciona aqui uma nova versão sobre a multiplicidade de mundos, "no sentido comum do povo", como salienta: a alteridade espacial fundada no espaço vizinho ao da Terra, o da Lua, onde a vivência de "outros homens", sendo rejeitada pelo teólogo, todavia é encarada como "possível". Uma minudência que não encontramos em Francisco Soares Lusitano. Poderia inferir-se, por estas curtas linhas, que existiria já no inconsciente colectivo do último terço do século XVII português, um conceito "popular" de "outro mundo" planetário, de par com o lugar do pós-morte e, sobretudo, concorrendo com o da tradição cosmológica clássica e peripatética, já explicitada?

A introdução da "opinião comum", do vulgo, poderia sugerir que, nesta passagem, o jesuíta não se restringe a uma multiplicidade de "mundos", enquanto cosmos, totalidade ordenada, mas a uma real desmultiplicação de espaços habitáveis, com outros seres, fatalmente humanos. Na lógica da percepção humana do aristotélico-tomismo, ainda vigente, partindo do pressuposto da inter-relação e da fonte/origem única desses mesmos "mundos", que efeitos poderia ter a assunção dessa alteridade? Quando Cordeiro exemplifica o Novo Mundo como um equivalente a esses "outros mundos" revela o reconhecido - e aqui confirmado - distanciamento antropológico-teológico e eurocêntrico, face aos naturais dessas geografias distantes, derrogatório da sua condição igualitária.

Pensamos haver aqui lugar para uma ambiguidade de leituras, proporcionadas quer pelas condicionantes linguística e etimológica do texto quer pelos teoremas de base.

De qualquer modo, a referência à Lua e aos seus alegados habitantes atesta a boa informação que o açoriano tinha das conjecturas de autores

pitagóricos, de Plutarco, no De facie in orbe Lunae, de Luciano de Samosata ou de Nicolau de Cusa, todos adeptos da habitabilidade lunar, antes aqui apontados. 191

Numa derradeiro parágrafo, percebe-se que António Cordeiro conhecia bem as fontes da especulação antiga sobre o problema, como Demócrito e outros que admitiram a diversidade de mundos. Mas, fizeram-no porque, segundo o teólogo, "não conheceram uma Causa Primeira, ou seja um único Deus, mas vários, ou porque julgavam que todas as coisas vinham do acaso e não da sabedoria divina". Como a pluralidade dos deuses está completamente fora de questão, logo também por aqui é improvável a existência de vários mundos:

"E assim, Platão e Aristóteles, que conheceram o princípio filosófico da causa Primeira, admitiram também um único mundo e não a possibilidade de vários. A Fé é só uma, e uma Comunhão dos Santos, e

uma a Igreja, porque a um só Deus dizem respeito. Mas apenas um mundo diz respeito essencialmente a um único fim, sob uma única ordem: portanto, a existência de vários mundos não é de aceitar".192

Se António Cordeiro se mantém, pelos excertos aqui trazidos, relativamente às visões sobre o mundo e o cosmos, preso da sua cultura religiosa e filosófica de origem, incluindo a expressão de juízos à primeira vista contraditórios, não será desprezível o seu esforço de postular, na generalidade do Cursus, "uma inteligibilidade geométrico-matemática do universo, marcada pela atitude mecanicista", como sustenta A. Coxito. 193

Assinale-se, aliás, que algumas das suas inovações doutrinais, referidas por

Cf. McCOLLEY, "The Seventeenth Century Doctrine of a Plurality of Worlds, Annals of

Science, I, 1936, pp. 385-430, apud CROWE, Michael, ob. cit., p. 8. Cf. o Capítulo I, supra. Cursus Philosophicus, ibidem, §3409.

193 COXITO, A., "Antonio Cordeiro", Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, ob.

Manuel Moraes, vão conduzi-lo ao afastamento da cátedra, a partir de 1696.

194

2. 5. Os "parciais" lusitanos de Isaac Newton: experimentalistas e escolásticos ou dois mundos em trânsito.

Ao mesmo tempo, nos ambientes menos conformistas da Europa, assiste- se a uma redobrado fôlego ofensivo das publicações pró-racionalistas que procuram resolutamente apaziguar e combater os conceitos que os tratados escolásticos vinham sustentando e discutido nas suas disputado ao longo dos séculos:

"Que são os cometas senão as estrelas mais belas, ornamento do céu ? os cometas obedecem à lei da Natureza, criada por Deus. Ó superstição, que problemas, que tempestades tu excitas na alma dos que tu oprimiste!"

195

Uma palavra-chave assinala a progressiva passagem de um mundo de circuncolóquios restritos, elitista e escolar, para um universo dilatado de leigos implicados nessa reinterpretação e reaprendizagem do mundo. Por toda a Europa, a formação de sociedades científicas ilustra, para Rupert Hall, uma dupla tendência: "por um lado, a cristalização de uma organização específica e científica, porveniente de grupos informais, mais amplos e superficiais e, por outro, a preponderância dos experimentalistas dentro desses organismos". 1%

Nesse particular, a expansão de uma sociabilidade interclassista nas lojas maçónicas - do alto clero à nobreza, passando pelos estratos burgueses e

194 MORAES, Manuel, ob. cit., passim..

195 Excerto do Journal des Savants, de 1 de Janeiro de 1681, a propósito da agitação causada

pelo cometa de Dezembro do ano anterior. Pierre Bayle analisa o debate em cartas sucessivas aos seus correspondentes. Cf. Lettre à M.L.A.D.C, docteur de Sorbonne où il est prouvé par

plusiers raisons tirées de la Philosophie et de la Théologie que les Cornets ne sont point le présage d'aucun malleur..., Paris, 1682, apud HAZARD, Paul, ob. cit., p. 143.

liberais - não deixou de animar novas apetências em tomo das descobertas científicas, exponenciando novas atitudes mentais relativamente ao lugar da Humanidade no cosmos. 197

De facto, em Itália, França e Inglaterra assistira-se já, desde finais do século XVII, a uma transição da discussão de sistemas ou hipóteses natural- filosóficos para a verificação e acumulação de dados empíricos. "A Ciência, incluindo a matemática mais abstrusa, tornara-se respitável, e aparentemente interessante, mesmos nos níveis mais elevados da sociedade parisiense".198

Os trabalhos dos críticos e historiadores, mais empenhados em dirimir a questão do desfasamento científico e cultural português, revelam-nos razões e níveis diversos, nem sempre concordantes, do desfasamento e atraso do país científico e cultural, em relação à dinâmica europeia, bem como no crédito devido aos intérpretes e protagonistas, proto-inovadores para uns, retrógrados para outros. Sabe-se da controvérsia e da defesa contra tais acusações de ignorância e isolamento das vanguardas europeias, um processo seguido e anotado ao pormenor, particularmente por Banha de Andrade. Este historiador, tal como Domingos Maurício e João Pereira Gomes, recusam que os jesuítas tenham interpretado a defesa da estagnação versus novidade intelectual. Na raiz deste pretenso mal-entendido estariam informações do matemático portuense Gomes Teixeira que acusara os jesuítas portugueses de terem ficado "estonteados diante das novas ciências", reiterando o essencial das opiniões do oitocentista Garção-Stockler sobre o estado das Matemáticas

-* 200

no nosso pais.

HAMPSON, Norman, Histoire de la Pensée Européenne - Le Siècle des Lumières. Paris, Editions du Seuil, 1972, tomo TV, p. 119.

HARCOURT, Brown, Scientific Organizations in Seventeenth Century in France (1620-

80). Baltimore, William &Wilkins, 1934, p. 84, apudHALL, Rupert, ibidem.

199 ANDRADE, António Alberto Banha de, Bibliografia da Polémica Verneiana, separata da

Brotéria, vol. XLDC, fase. 2-3, Lisboa, 1949. Idem, "A polémica verneiana", in As Grandes

polémicas portuguesas. Lisboa, Editorial Verbo, 1968, vol. I, pp. 281-331..

200 Cf. TEDŒERA, Francisco Gomes, História das Matemáticas em Portugal. Lisboa, 1934;

Em tese, "os novos sistemas filosóficos eram ensinados nas aulas", mas a velha escolástica prevalecia, porque "os inacianos não encontravam superioridade de argumentos nas correntes modernas". Atestam que, "antes de Verney e mesmo antes dos Oratorianos, a filosofia moderna era conhecida em Portugal", como alegam os exemplos atrás anotados.201

Atribuídas a Soares Lusitano as primícias seiscentistas do contacto português com Descartes, o historiador Domingos Maurício procurou clarificar a dimensão do conhecimento do filósofo francês nas aulas dos inacianos. Descobre no Cursus Philosophicus, de 1739, do padre António Vieira (1703-1768), homónimo do pregador, uma completa anotação aos fundamentos cartesianos, como parte integrante das sua lições no Colégio de

101

Santo Antão. No que toca à estrutura do Universo, o docente expõe o conhecido modelo turbilhonar, descrevendo as funções mútuas das propriedades cartesianas na constituição das estrelas, planetas, particularmente no sistema solar, segundo as teorias de Copérnico e Galileu. O mestre de Santo Antão acabaria por invalidar, por razões teológicas, os princípios cosmológicos que o autor dos Principia Philosophia tomara como

Matemáticas em Portugal. Paris, 1819, apud MAURÍCIO, Domingos, "Os Jesuítas e o ensino

das Matemáticas", ob. cit..

Cf. ponto 2.1. supra. A revista Brotéria tem constituído um dos redutos mais consistentes e persistentes de defesa do magistério pedagógico e científico dos jesuítas em geral, e entre nós, em particular, durante os séculos XVII e XVIII. Típica dessa contestação é a resposta que o padre João Pereira Gomes deu, em 1941, a Hernâni Cidade, que na obra Lições de cultura e

literatura portuguesa acusara os jesuítas de omitirem referências aos criadores da física

moderna, nomeadamente a Copérnico, Descartes, Galileu e Kepler, ausência que se estenderia à Summa Universae Philosophiae, de Baltasar Teles, datada de 1652. Referindo 120 obras de autores, referidos em primeira mão por Francisco Soares Lusitano, no Cursus Philosophicus, de 1651, Pereira Gomes aponta, além dos citados, nomes como Tycho-Brahe, Clávio, Lansbérgio, Cysat, Kircher, Harvey, Campanella, Aselli, Snell, já nomeados no léxico inaciano da época. Cf. GOMES, J. Pereira, S. J., "Crise de cultura em Portugal no século XVII?", Brotéria, 33, 1941, pp. 284-301, apud MONTEIRO, Miguel Corrêa, "A Companhia de Jesus face ao espírito moderno", Ia e 2a partes, Millenium, Viseu, Instituto Politécnico de

Viseu, n° 25, Janeiro 2002; RICO, Hermínio; FRANCO, José Euardo (coord.), Fé, Ciência e

Cultura - Brotéria 100 anos. Lisboa, Gradiva, 2003.

202 António Vieira foi mestre de Artes nas escolas de Santo Antão, ensinando Gramática,

Humanidades, Retórica e Filosofia. O apreço dos seus superiores levaram-no ao ensino da Teologia na Universidade de Évora, chegando a ser convidado para uma projectada Academia Médica Portopolitana. Em 1759, naquela cidade, foi preso pela purga pombalina e exilado vindo a falecer em Castelgandolfo, Itália. Cf. MAURÍCIO, Domingos, "Para a história do Cartesianismo entre os jesuítas portugueses do século XVIII", Revista Portuguesa de

ponto de partida. "Ao mesmo tempo, não podendo sustentar o sistema de Copérnico, em que ele se baseava, Vieira vê nisso um argumento mais para o rejeitar". Admitindo embora que o sistema do polaco poderia explicar os fenómenos astronómicos, seguiria a decisão genérica dos jesuítas da época. "Em vista das dificuldades criadas pela questão de Galileu, optavam pela hipótese de Tycho Brahe" - justifica Domingos Maurício. Então, qual a medida e efeito da intrusão de Descartes na intelligentzia do tempo? Para este crítico, derrogado o sistema do mundo cartesiano, permanece a realidade da discussão do filósofo francês pelos filhos de Santo Inácio, "não para alardear levianamente novidades por novidades, mas com o fim de apurar a verdade, iluminando as abissais especulações da metafísica com as claridades da física, da química, da matemática e até da biologia ". Para o referido historiógrafo, o interesse pela filosofia "moderna" teria assim sido antecipado pelos pensadores jesuítas, à margem do eventual acicate do arcediago de Évora. 2 3

Nesta perspectiva, "em Portugal conhecia-se muito bem o que se publicava na Europa, mas não se quis aceitar tudo o que lá se escrevia". Em meados do século XVIII, "o cepticismo filosófico entrara já no país, de mãos dadas com o quase inevitável ateísmo". Os jornais científicos da época circulavam entre nós e "ficava-se, naturalmente, enamorado, pelas novas descobertas" - informa-nos aquele autor. 204

"O século XVIII amanheceu em Portugal com a guerra surda entre jesuítas e oratorianos", mostrando-se estes últimos "mais abertos às inovações

científicas e o debate dos problemas", tendo sido "os primeiros a repudiar a

De par com António Vieira, são referidas como atentas abordagens cartesianas na primeira metade do século XVIII, as obras do padre Silvestre Aranha, as Disputationes Metaphysicae, de 1740 e as Disputationes Physicae, de 1747. Cf. MAURÍCIO, Domingos, ob. cit., p. 28.

204 ANDRADE, António Banha de, ob. cit, pp. 30-1. De todo o modo, interessará esclarecer,

em nome das atitudes mentais, quais as ponderosas razões que levaram a "intelligentzia" portuguesa a "não aceitar tudo o que lá se escrevia". Uma triagem que não é específica do quadro temporal em análise, mas que decorre de uma capacidade ou não de agitar a compreensão e a inteligência para a exploração de novos problemas científicos. Banha de Andrade deixa subentendido, quanto a nós, uma compreensível supremacia dos "filtros" mais conservadores e atávicos da psicologia colectiva nacional sobre a vocação dos mais ousados. Sobre a necessidade científica das impossibilidades mais improváveis, cf. KHUN, Thomas, A

filosofia aristotélica no mundo lusíada "- refere, por seu turno, J. Silva Dias. Insiste este investigador em considerar que "foi moroso o desenvolvimento cultural nas primeiras décadas do século XVIII, apesar do Conde de Ericeira, de Alexandre de Gusmão, Azevedo Fortes", entre outros. Mas, "depois de

1737, tornou-se um facto a ruptura entre os padres oratorianos e a filosofia natural dos Conimbricenses e da segunda escolástica". Recorda ainda, por outro lado, que "a ciência matemática dos jesuítas só melhorara com a criação do Observatório Astronómico sob a égide de Carbone". 206 Ainda na raiz do

atraso da cultura matemática, Gomes Teixeira encontra o "descrédito em que dia a dia ia caindo a indústria astrológica, um dos amparos da Astronomia, pelo progresso crítico.científico que rapidamente crescia e pela justa reprovação, pela Igreja Católica, dos vaticínios que se referissem à alma".207

Nesta conjuntura, de acordo com o mesmo historiador, os inacianos teriam liderado uma "contra-ofensiva" contra os princípios "modernos", cartesianos. Pedro Serra, João de Andrade e Silvestre Aranha acusam os filósofos não-escolásticos de "subverterem a ordem natural das coisas com a sua tendência para separar a filosofia da teologia. O experimentalismo está

De acordo com este mesmo historiador, "o Oratório português nutriu-se, inicialmente, das orientações do seu congénere italiano, e só pelos finais do primeiro quartel do século XVIII

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