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O consumo é inevitável na sociedade contemporânea. Tudo o que é uma potencial necessidade ou desejo do indivíduo possivelmente pode ser adquirido no mercado de consumo. Consequentemente, todos os aspectos da vida cotidiana adquiriram certos aspectos de consumo.

De acordo com Giles Lipovetsky, o momento atual do consumo corresponde a sua “Terceira Fase”, iniciada no final dos anos 1980 na sociedade americana, um momento de profunda revolução dos comportamentos e do imaginário de consumo. Os limites de tempo e espaço que emolduravam o universo de consumo se esvaíram, e vive-se em um “cosmo consumista contínuo, dessincronizado e hiperindividualista, (...) no qual cada um pode construir seu emprego do tempo, remodelar sua aparência e moldar suas maneiras de vida” (LIPOVETSKY, 2006, p.14).

O consumo, e as simbologias a ele associadas, é o que permite a realização do indivíduo, em uma dinâmica que estimula a circulação permanente de bens. Segundo Guy Debord (1997) é pelo consumo que as necessidades e os desejos são satisfeitos, e sua efetivação gera novas necessidades e novos desejos, em um ciclo que se renova rapidamente, permitindo que o sistema se mantenha.

(...) a primeira fase da dominação da economia sobre a vida social levou, na definição de toda a realização humana, a uma evidente degradação do ser em ter. A fase presente da ocupação total da vida social em busca da acumulação de resultados econômicos conduz a uma busca generalizada do ter e do parecer (...) (DEBORD, 1997).

Segundo esses autores, adquirir por meio do consumo é a principal maneira dos indivíduos se tornarem indivíduos. O consumo, portanto, passa a pautar as decisões cotidianas para que por meio dele possamos expressar nossa própria individualidade (DEBORD, 1997; LIPOVESTSKY, 2006). Já Bauman (2001), faz uma importante amarração entre a relação do consumo individualista, da conquista da identidade e da liberdade:

Numa sociedade de consumo, compartilhar a dependência de consumidor - a dependência universal das compras - é a condição sine qua non de toda liberdade individual; acima de tudo da liberdade de ser diferente, de ter identidade (BAUMAN, 2001, p.98).

O consumo individualista é característica da chamada Modernidade Líquida de Bauman (2001) - a versão privatizada e individualizada da modernidade, na qual as instituições, quadros de referência, estilos de vida, crenças e convicções mudam antes que tenham tempo de se solidificar em costumes, hábitos e verdades “auto-evidentes”. Ela corresponde a tempos de desregulamentação, de descentralização, de individualização, nos quais os indivíduos são abandonados aos próprios recursos. Com o rompimento das bases estruturais de sua coletividade e de sua relação local de pertencimento, o indivíduo torna-se totalmente responsável pelo próprio destino, livre para

fazer suas próprias escolhas, sem parâmetros balizadores (BURKE, 2004). O rompimento do elo entre o social e o individual tem como efeito a falta de padrões de referência, de códigos sociais e culturais que permitam aos indivíduos conciliarem suas vidas particulares e coletivas, entendendo-se ao mesmo tempo como ser individual e coletivo. O poder não está mais legitimado no âmbito público, na administração pública institucionalizada, e sim no âmbito privado (BAUMAN, 2001). Conforme constata Bauman, cabe aos consumidores individuais a responsabilidade pelas consequências coletivas de seus atos. Com isso, ao pautar as escolhas individuais, essa lógica consumista e individualista reflete nas próprias transformações sociais, ou seja, as alterações sociais são também resultado da lógica consumista. Conciliar o individualismo aos interesses coletivos torna-se, assim, um dos grandes desafios de nosso tempo (BAUMAN, 2001).

Autores como Jamelson (2007), Harvey (2007) e Bauman (2001) entendem o atual contexto social como “fenômeno histórico e, fundamentalmente, atrelado a uma nova lógica do capitalismo contemporâneo” (Fontenelle, 2008, p.30), ou seja, evidenciam a interdependência entre as práticas político-econômicas, os aspectos culturais e sociais com o modo de produção capitalista e as práticas de consumo. Portanto, o consumo, mais do que apenas a maneira de satisfação e gozo individual, se torna o canal pelo qual o indivíduo expõe e patrocina suas causas coletivas, buscando no mercado os símbolos disponíveis para representar seus ideais e interesses coletivos, e os imbuindo da responsabilidade de exercer influências e alterações sociais. A própria política acaba sendo submetida às regras do comércio e da publicidade, sendo agora algo que se consome e não mais algo de que se participa (CANCLINI, 2006).

Essa complexidade envolvida no consumo atual é discutida por Canclini (2006), que comenta como as mudanças no consumo impactam o processo de formação de identidades e o exercício da cidadania. O autor entende o consumo como um espaço no qual parte da racionalidade econômica,

sociopolítica e psicológica das sociedades é organizada, pois ao escolhermos os bens que iremos consumir estamos definindo o que consideramos publicamente valioso e como vamos estabelecer nossa identidade. Assim, consumir não é apenas um gasto, mas um investimento afetivo que dá sentido ao fluxo simbólico da vida social; é participar de um cenário de disputas por aquilo que a sociedade produz e pelos modos de usá-lo; é tornar mais inteligível um mundo onde o sólido se evapora (CANCLINI, 2006). É nas simbologias adquiridas pelo ato de consumo que o indivíduo se identifica e se integra socialmente, criando o sentimento de pertencimento que leva a identificação com certos hábitos culturais e a nossa atuação como cidadãos. Para ser possível se pensar o consumo como cidadania, é importante a superação do entendimento do consumir como um ato irracional, afinal trata-se de uma escolha que evolve valores e formas de representação social, o que caracteriza as práticas de consumo também como um caminho para o exercício da cidadania (CANCLINI, 2006).

Em função da relevância dos aspectos simbólicos do consumo para as relações sociais, o capitalismo tornou-se especialista na fabricação de signos poderosos, dotados de significados cuidadosamente trabalhados. O consumo de sensações, emoções e da experiência relacionada ao produto é uma realidade que parece definir um caminho sem volta (HOLBROOK & HIRSCHMAN, 1982). As próprias idealizações do consumidor sobre o que ele entende ser uma sociedade mais adequada são representadas nestes símbolos, e se tornam capital simbólico do produto e do indivíduo que o consome.

Como consequência, o produto funcional torna-se impossível de ser entregue desprovido de seu capital simbólico. Como comenta Eugênio Bucci (2002), a necessidade objetiva não se dissocia nunca do desejo, pois “a mercadoria obrigatoriamente preenche uma função imaginária, por mais concreto e objetivo que seja o seu uso. Do mesmo modo, ela sempre terá um valor de troca, por mais imaterial e difuso que seja o seu uso objetivo” (BUCCI, 2002). Assim, é a

capacidade de capturar, fabricar e realizar desejos que permite que nosso modo de produção se mantenha em tal grau de consumo e em tal velocidade. Os produtos e as organizações que os produzem precisam, então, significar nos seus produtos os valores individuais adequados aos seus consumidores, mas também as relações sociais que pretende exercer.