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O PAPEL DO NARRADOR

No documento michelepereirarodrigues (páginas 30-32)

2 NARRATIVAS MIGRATÓRIAS

2.1 O PAPEL DO NARRADOR

O capítulo “O narrador” de Walter Benjamin é uma das principais referências quando se busca um entendimento sobre o conceito de narrativa clássica. No texto, da década de 1930 e comumente citado em estudos sobre a narrativa, Benjamin defende que a narrativa tradicional está vinculada a dois aspectos básicos: deve ter caráter oral e deve ser experiência de vida daquele que narra. Para ele a autenticidade da experiência vivida concede autoridade à fala.

No que tange ao aspecto da oralidade, Benjamin afirma que sua importância se deve ao fato de demandar por inteiro existência e totalidade corporal dos interlocutores. Para o autor, são dois tipos de narradores: aqueles chamados de tipos fundamentais, que são viajantes que narram suas experiências de viagem e aqueles que conhecem as tradições e histórias de seu povo.11

Percebemos que as grandes narrativas tradicionais, de fato, são, por essência transmitidas oralmente. A Ilíada e a Odisseia, por exemplo, são narrativas que foram escritas após séculos de transmissão oral. Diversos autores registram também que Aristóteles, um dos grandes pensadores da Grécia antiga, não adotava a prática da escrita de seus pensamentos, função que coube a Platão, seu discípulo.

A morte da narrativa tradicional prevista por Benjamin ocorre na Modernidade, quando estes aspectos se perdem. Num esforço histórico, percebemos que, com o advento da escrita, esta se sobrepõe à comunicação oral12. A impressão do primeiro livro, a Bíblia, ocorre num momento em que Igreja Católica vê-se pressionada pelos avanços da Reforma Protestante, que se concretiza pouco tempo depois. A igreja vê nessa estratégia a possibilidade de congelar os ensinamentos religiosos, tolhendo as interpretações das escritas sagradas que emergiam naquele momento.

O estudo da narrativa impõe, outrossim, a discussão dos conceitos de enunciado e enunciação. O enunciado é o produto da ação verbal, visual ou audiovisual. Mas antes que se concretize, o enunciado pressupõe uma elaboração do sujeito social, isto é, inserido num tempo e em um espaço que emolduram suas visões de mundo e, portanto, sua enunciação. Segundo Sodré (2009) a visão benjaminiana evidencia que a elaboração de uma experiência é

11 Na literatura, um bom exemplo do tipo fundamental é o personagem Marco Polo criado por Ítalo Calvino em “Cidades Invisíveis”, que narra ao imperador Kublai Khan as cidades que conheceu ao longo de sua viagem ao Oriente.

12 Um exemplo disso é o uso frequente por historiadores de documentos como fonte primária de pesquisa, como se aquilo que estivesse escrito fosse a verdade.

parte fundamental na construção da narrativa, pois o objetivo de uma narração é, em suma, comunicar, ou seja, tornar comum aos demais um conhecimento adquirido.

A morte da narrativa, segundo Benjamin, se dá com a invenção do romance e da informação. Isso porque ambos não provêm da experiência. A informação tem caráter efêmero, isto é, só tem valor no momento em que é dada. E o romance, por sua vez, não tem como fim último transmitir um conselho.

A professora Lígia Chiappini Moraes Leite, em “O foco narrativo” (1985) ajuda a entender como o romance se constitui e, desse modo, contribui para um entendimento da crítica de Benjamin ao gênero. Para isso, ela se apoia nas proposições de diversos autores, entre os quais pretendemos destacar Hegel e Kayser.

O romance é um gênero que é precedido, segundo Hegel, pela lírica, a epopeia e o drama13. No romance, que é onde todos esses gêneros se fundem, há um processo de particularização que tira o foco dos antigos heróis universais, que representavam valores comunitários, em personagens. Na epopeia, por exemplo, o narrador tinha uma visão de conjunto e se distanciava do mundo narrado, que era um mundo solene, de musas, heróis e mitologias. Já o narrador do romance, que emerge quando a sociedade passa por um processo de individualização e os valores deixam de ser compartilhados, torna-se íntimo seja quando se dirige diretamente ao leitor ou quando toma como narrativas as histórias de pessoas comuns, aproximando os leitores dos personagens e dos fatos narrados.

Vera Lúcia Follain Figueiredo nota um aspecto interessante sobre a perda da experiência ao destacar que movimentos de vanguarda nas artes foram se esgotando no decorrer do século XX. Para ela, é como se a capacidade de criação fosse substituída pela reprodução. O mais interessante é que isso ocorre justamente ao mesmo tempo em que a narrativa clássica caracterizada pela elaboração das ideias se perde. (Figueiredo, 2005)

Um dos autores que trabalham sob a ótica do pensamento de Benjamin é Silviano Santiago. Em “O narrador pós-moderno” (2002), a principal ideia defendida é de que a narrativa ainda existe na pós-modernidade, embora com características distintas. Segundo Santiago, o narrador pós-moderno tenta extrair a si da ação narrada. Ou seja, para o autor há uma virada estética, onde emerge o interesse pelo outro.

Nesse sentido, Santiago acredita na possibilidade de autenticidade da narrativa que nasce fruto da observação de um fato. Sendo assim, valoriza a observação do outro,

13 De acordo com Leite, Hegel entende a epopeia como um gênero eminentemente objetivo, a lírica é subjetiva e o drama seria a síntese dos outros dois. (LEITE, 1985, p. 9).

ressaltando que essa é uma importante ferramenta que constitui a narrativa na pós- modernidade.

Para Barthes “[...] o ‘real’ tem a reputação de se bastar a si próprio, que é suficientemente forte para desmentir qualquer ideia de ‘função’ [...] e que o ter estado lá das coisas é um princípio suficiente da palavra” (BARTHES, 1984, p. 94). A professora Beatriz Jaguaribe diz algo próximo: para ela “[...] o retrato da favela verbalizado pelo favelado possui maior poder de barganha do que a visão da favela entrevista pelo fotógrafo classe média, pelo cineasta publicitário ou pelo escritor erudito.” (JAGUARIBE, 2007, p. 159). Portanto, entendemos que a questão da autenticidade hoje em dia está vinculada às obras que têm caráter biográfico seja o personagem protagonista ou testemunha. Podemos afirmar também que, de algum modo, a experiência vivida ainda está ligada à autoridade da fala.

Nesse contexto, as narrativas de si tornaram-se muito frequentes e os textos que conseguem se sobressair “possuem a intensidade artística que supera o meramente confessional, a tagarelice do personalismo e a banalidade da auto-expressão narcisista.” (JAGUARIBE, 2007, p. 180)

No documento michelepereirarodrigues (páginas 30-32)