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O papel da natureza nos objetivos dos estabelecimentos agroecológicos

5 OS PROCESSOS DE GESTÃO DAS UNIDADES DE PRODUÇÃO

5.1 OBJETIVO(S) DO ESTABELECIMENTO FAMILIAR AGROECOLÓGICO

5.1.1 Objetivo(s) dos estabelecimentos familiares agroecológicos

5.1.1.2 O papel da natureza nos objetivos dos estabelecimentos agroecológicos

É explícito e recorrente discursos que apontam para a relação recíproca entre agricultores e natureza e uma percepção diferenciada a seu respeito, como pode ser notado nos relatos a seguir:

[...] E a nossa casa não é aqui dentro aqui, a nossa casa é mais lá, né? [...] é mais fora [...] Então nóis não quer colocar lá, no cantinho, um negócio que nóis não.... não querer, não suporta ele [...] Tanto o veneno, quanto, como o... qualquer coisa assim, que a gente. Ó, Por exemplo, vou dar um exemplo para você assim. Nóis tirava o leite, e daí dava mamar para o bezerro. Aí a gente achou: ‘Meu Deus, mas ela é a mãe. Por que que nóis tem que dar mamá pro filho dela, sendo que ela não vai poder lamber o filho dela, não vai poder ...?’ Imagina eu sem pode lamber a minha filha. É ruim isso, né? Não, mas a gente não pode tirar o leite e dar para o bezerro. A gente tem que tirar um pouco do leite, e deixar ela dá mamá pro filho dela, que daí ela lambe, lambe, ele dá aquele soco nela, que é normal deles, né? ... Então, são coisas assim, que a gente vai notando. Que os bichos também sente, que a bezerra também sente. Aqui em casa, aqui dentro de casa, às vezes eu não gosto muito, mas daqui a pouco, eles vão carpir, sabe? Os passarinhos, eles vêm comer os restinhos, né? A gente, por enquanto, eles não tão subindo em cima, mas no chão eles vêm. Eles têm os ninho ali, tem aqui. Então, a gente não consegue pensar mais, de viver sem isso. Como é que a gente vai viver sem isso, né? ... Então, a gente não tem outro pensamento assim. De mudar mais para frente, e tal [...] Para nós. Porque, como é que você vai ser mandado? Como é que você vai tá cumprindo horário? [...] Não que nóis não cumpre horário aqui. Nóis cumpre horário da natureza. Nóis não cumpre horário de relógio. Claro, que tem muita coisa, que nóis tem que cumprir horário de relógio. Vamos buscar tal coisa... Tem que buscar horário. Vamo lá entregar tal coisa... Vamo entregar no horário. Mas isso é estranho [...] (Agricultora 5).

Daí, a gente se resolveu. Daí, ele disse, ah venha para cá, para vocês ... trabalhar a agroecologia. Que é uma coisa assim, que sempre chamou minha atenção, né? O cultivo orgânico, ver o que eu tô comendo, como que eu tô me alimentando. O que eu posso também produzir, né? Para tar levando... Eu levando indiretamente, mas diretamente também, né? Para a mesa de alguém lá de fora, para tá se alimentando do que eu falo, que nem, que é correto, né? [...] Que nem, a gente come muita porcaria, né? se for analisar. Eu acho um trabalho interessante. Eu vejo que não é... uma coisa que tenha muito retorno para mim. Mas é uma coisa que eu gosto de fazer, né? [...] É, é uma coisa que eu tenho prazer [...]Se você não tá agredindo, você ... sem você jogar nada. Sem você precisar gerar um gás metano, para você produzir. Então, eu acho que... Se fosse até dentro de uma floresta, dá para fazer isso ... Ah, eu acho que é um, é um complemento, né? Que você sabe que você tá vivendo com a natureza e complementa, né? Eu acho que, é um complemento assim, que satisfaz a pessoa, né? (Agricultor 12).

A agricultora 5, como também foi possível verificar na fala de outros cinco agricultores, relaciona a importância do estabelecimento familiar (casa) com a forma com que se relaciona com seus recursos naturais e quer seu sistema produtivo. Para ela é importante que o lugar de vida e trabalho da família seja livre de defensivos agrícolas e que a família observe e se adeque às necessidades e ciclos dos recursos naturais e vivos (aleitamento bezerros e necessidades alimentares dos pássaros, ritmo natureza) de seu estabelecimento. O

agricultor 12 fala de viver com a natureza e ter uma relação de complementação de forma a não agredi-la e gerar alimentos saudáveis não só para a família, mas também para a sociedade. O agricultor ainda indica que essa relação com a natureza é proporcionada pela agroecologia. E a companheira do agricultor 12, como também as agricultoras 7 e 8, relatam o prazer em torno do trabalho na terra, na natureza, gerando como efeito a diminuição do estresse.

O que se vê nesses relatos é uma relação de coprodução e de cuidado com a natureza presente em seus estabelecimentos familiares (PLOEG, 2008; 2015; TOLEDO, 1993). Os agricultores tem uma relação diferenciada do que se empreendessem o modelo empresarial de agricultora em que a natureza é vista como um mero recurso produtivo que deve gerar apenas produtividade e lucro. Ao contrário, os agricultores agroecológicos percebem a natureza como algo com quem se vive, convive, se inter-relaciona, se observa de forma a respeitar os ciclos, limites, pois como diz o agricultor 3 “Não tô explorando a terra. Antes [do Assentamento] ela era explorada agora a gente tá tentando dar tempo ao tempo, que Deus ajude na recomposição do solo.”. Assim, a sustentabilidade enquanto valor, representada pelo estabelecimento de uma relação recíproca com a natureza, se faz presente enquanto um meio e fim para o atendimento das necessidades familiares das famílias. Meio por estabelecer princípios e critérios ‘sustentáveis’ que orientam as formas de produção. Fim por almejar atender necessidades familiares, como a saúde, de forma sustentável ao longo dos anos, o que só é possível a partir de uma ótica de complementariedade com a natureza.

Essa relação diferenciada com a natureza é fortalecida pela agroecologia, como pode ser observado na fala anterior do agricultor 12, e nas entrevistas desse e mais cinco agricultores e três lideranças quando exaltam a produção de alimentos saudáveis não só para as famílias, mas para a sociedade também. Outra exemplo da relação diferenciada com a natureza reforçada pela agroecologia é apresentada pelo agricultor 3 quando relaciona como um de seus objetivos a disseminação do conhecimento gerado por ele em torno da produção agroecológica. O que se vê nessas duas falas é a reverberação de um aspecto do repertório cultural do grupo profissional dos agricultores e outros atores agroecológicos: o resgate dos saberes tradicionais fundamentados no que Toledo (1993) chama por racionalidade ecológica, mas associado à geração de novos conhecimentos, possibilitando a emergência da racionalidade ambiental postulada por Leff (2006).

Mas, também é possível verificar nessas falas a dimensão sociopolítica da agroecologia, conforme indicado por Sevilla-Guzmán (2006), e a atuação política dos agricultores familiares na conteporaneidade, segundo observado por Wanderley (2009; 2014)

e Ploeg (2008). É uma atuação em que os agricultores buscam também incidir de forma reflexiva na sociedade por meio do sentimento de compromisso em dar a ela um retorno sobre os conhecimentos por eles gerados e pela oferta de alimentos saudáveis. Ela é incentivada pelas organizações substantivas do Assentamento, como visto no capítulo 4, uma vez que estimulam a organização dos agricultores e, com isso, a construção de discursos e entendimentos que procuram disputar modelos de agricultura e de desenvolvimento rural.

A reflexividade torno da agroecologia também pode ser percebida na fala da agricultora 5, ao comparar o modelo adotado pelos agricultores familiares convencionais com o modelo agroecológico:

E esse outro pessoal, que não é orgânico, eles tem uma cabeça assim, de empresário. Aquelas coisas sabe, ah é, você não conseguiu? Não consegue fazer esse pedaço aqui? Eu vou fazer, vou ponhar veneno ali e vou por tanto... e vou querer você como empregado. Sabe, é aquela coisa muito de, sabe de, loucura... de loucura de querer passar a perna ali, sabe? ... Então, às vezes, os pequeno que tem cabeça de grande. Vai sair com uma mente assim, então, eu não consigo fazer as minhas terra. Eu não consigo comprar um maquinário, que ele tá comprando... Eu não consigo gastar veneno que nem ele tá passando, mas eu preciso passar. Eu tenho que ficar bem apertado. Então, já que eu não uso, então eu arrendo [...] Não sabe assim, não entende que a pessoa tem que começar devagar. Que a pessoa tem que começar a fazer a conta. Que não é aquele negócio, vou pegar 400 litro de leite, que nem a gente hoje em dia, vender a um real e tirar 400 real por dia. Meu Deus, trabalhando na roça, acha que vai ganhar 400 reais por dia? É muito dinheiro. Só que daí, você vai fazer a conta, de um litro de ração, mais três litro de leite, mais... Quando você ve, não dá (Agricultora 5).

A agricultora explica a maneira como os agricultores familiares convencionais pensam e agem como se fossem grandes proprietários de terras capitalistas, em que é adotado um modelo de agricultura em que há grande dependência externa. A fala da agricultora se alinha com o apontamento de Ploeg (2008) sobre a mercantilização e externalização típicas do modelo empresarial de se fazer agricultura, como também dos valores empresariais em torno da competição, em que o agricultor seguidor desse modelo entende que só alguns podem vencer e esses devem ser vistos como melhores e superiores moralmente. A agricultora 5, ao contrário, avalia que esse modelo causa dívidas que deprimem o atendimento das necessidades dos agricultores, levando-a a valorizar a agroecologia. Tal valorização reside em diferentes fatores, como no resgate e ressignificação do modo camponês de fazer agricultura, no aprendizado de novos conhecimentos em torno de uma produção considerada saudável e sustentável tanto para a família quanto para o estabelecimento e na redução dos gastos proporcionando melhores condições para o atendimento das necessidades familiares.

outros objetivos se somam ao atendimento às necessidades familiares, como a produção de alimentação saudável e disseminação do conhecimento agroecológico para a sociedade. Esses objetivos remetem à racionalidade ambiental ligada à agroecologia, que é compromisso ou responsabilidade socioambiental dos agricultores em que se percebe uma atuação política no meio da sociedade na busca por um outro modelo de agricultura e desenvolvimento. A partir da fala da agricultora 5, é possível dizer a agroecologia reforça e adiciona meios (produção sustentável, redução dos gastos externos) e valores (resgate conhecimento tradicional baseado na racionalidade ecológica, relação recíproca com natureza, construção de novos conhecimentos) ao modo camponês de fazer agricultura para o atendimento das necessidades familiares. São ações tomadas de maneira reflexiva, pois são conscientes na fala dos agricultores as suas descrições e aproximação à valores agroecológicos para atender as necessidades dos estabelecimentos familiares, remetendo, com isso, à racionalidade ambiental.

A manifestação da agroecologia dentre os agricultores estudados reforça a reprodução socioambiental dos mesmos, tida por Corona e Almeida (2014) como a busca por relações mais sustentáveis a partir da relação dinâmica entre sociedade e natureza. Os agricultores, nesse sentido, compreendem que a sua reprodução (atendimento das suas necessidades) depende da consideração e respeito aos ritmos, ciclos e limites do meio natural em que se inserem. Com isso em vista, agem no presente, bem como estabelecem as suas estratégias futuras. Ou seja, a partir de uma análise sobre suas possibilidades reais no contexto em que se inserem no presente – sendo a natureza um dos elementos dessa análise -, os agricultores agroecológicos formulam e avaliam as possibilidades de suas estratégias futuras. O tópico a seguir tratará desse assunto.