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O pathos na tradição retórica e em outras abordagens da argumentação

3 O LUGAR DO PATHOS NA ARGUMENTAÇÃO

3.1 O pathos na tradição retórica e em outras abordagens da argumentação

Aristóteles (2000) diz que se persuade pela disposição dos ouvintes quando esses são levados a sentir emoção por meio do discurso. Para Meyer (2000), o pathos constitui-se,

3 As traduções e as significações do termo foram tema de estudos filosóficos e terminológicos como o de Leite (2012), no entanto, ainda que não adentremos na questão terminológica, optaremos pela utilização, preferencialmente, do termo grego pathos, e, em algumas circunstâncias, do termo emoção. A preferência pela nomenclatura grega se alinha à atitude do linguista Patrick Charaudeau (2010), na intenção de manter a filiação retórica e contribuir para uma dissociação de estudos psicológicos.

funcionalmente, em um teclado no qual o bom orador (locutor) toca para melhor convencer. No segundo tomo de sua Retórica, o filósofo define as emoções como:

sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos, e são seguidos de tristeza e prazer, como a cólera, a piedade, o temor, e todas as outras paixões análogas, assim como seus contrários (ARISTÓTELES, 2000, p. 5).

O filósofo organiza em pares 12 pathe4 (plural do termo pathos), estabelecendo-os

como emoções que se baseiam no prazer ou na dor, são elas: a cólera e a calma; a amizade e o ódio; o temor e a confiança; a vergonha e a impudência; a piedade e a indignação; a inveja e a emulação. A partir dessa compreensão acerca do pathos como prova de persuasão, pode-se perceber o locutor (orador, na tradição retórica) como responsável por dispor os ouvintes, ou seja, estimulá-los, de maneira que esses estejam suscetíveis a sentir determinadas emoções que favoreçam a persuasão por ele planejada, isto é, o locutor teria o objetivo de excitar ou neutralizar esses afetos de acordo com a situação argumentativa.

Faz-se necessário, neste ponto, diferenciar, à luz das reflexões de Meyer (2000), as emoções como estados de alma de uma pessoa, considerada individualmente, e o pathos retórico, no qual as emoções passam a ser resposta a outra pessoa, ou seja, são emoções- respostas. Essa perspectiva de “emoções-respostas” evidencia o papel do alocutário no jogo retórico-argumentativo e explicita por que o pathos está associado, em interpretações feitas sobre a retórica, ao auditório. Para Ruth Amossy, o pathos incide diretamente sobre o auditório e é, portanto, “o efeito produzido no alocutário” (AMOSSY, 2018a, p. 206). Mais à frente, será possível perceber que ora a figura do pathos é concebida como efeito produzido no alocutário de modo a alterar seus julgamentos; ora como efeito visado (Charaudeau, 2010) pelo interlocutor. Não trabalhamos nesta dissertação nem com a ideia de efeito visado, nem com a de efeito produzido, pois, como explanaremos na seção seguinte, tomamos como base um trabalho mais recente de Patrick Charaudeau (2015), no qual o autor explicita a noção de efeito possível, que pensamos ser mais adequada ao propósito de nosso estudo.

Se o pathos, aos olhos de Aristóteles, o qual dedicou um livro inteiro para tratar sobre esse conteúdo, tem importância basilar, nas teorias argumentativas posteriores essa dimensão não recebeu o mesmo espaço, na medida em que estas se centraram no raciocínio. Essa abordagem de uma “retórica sem emoções” (PLANTIN, 2008) evidenciou um receio dos estudiosos no tratamento do pathos, tendo em vista a sua compreensão como ameaça ao

4 Assim como as traduções do próprio termo pathos variam, a tradução dos nomes dados às emoções e a quantidade de emoções postuladas na retórica aristotélica também variam. Neste trabalho, nos alinharemos à tradução apresentada em Pinto & Cortez (2017).

empreendimento racional, isto é, nessa perspectiva, o pathos seria compreendido pelas vias da irracionalidade, ou do paralogismo e da manipulação.

A principal obra após a deslegitimação dos estudos retóricos foi escrita por Chaïm Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, o Tratado de Argumentação - A Nova Retórica ([1958] 2014). Nas suas mais de quinhentas páginas, os autores dedicam-se à explanação dos âmbitos da argumentação e de seus principais conceitos, como o de acordo prévio e auditório e, de modo mais extenso, das técnicas argumentativas. No que concerne à figura do pathos na nova retórica, não há uma retomada da questão das emoções, por isso se diz que a emoção não recebeu a relevância dada anteriormente por Aristóteles. A subestimação da importância das figuras do

pathos e do ethos nos é, à primeira vista, problemática, na medida em que “o logos, entendido

como discurso e razão, é, para Aristóteles, simplesmente [apenas] um dos polos do empreendimento de persuasão retórica” (AMOSSY, 2018a, p. 18).

Por esse predomínio do logos, as emoções “figuraram longo tempo como 'parentes pobres' das teorias da argumentação” (MICHELI; HEKMAT; RABATEL, 2013, p.11, tradução de Suzana Cortez), fossem elas retóricas ou não, e esse fato é visível quando se observa a interpretação valorativa dada a elas nessas teorias, dado que as emoções parecem perturbar as vias racionais, pois, para muitos estudiosos, “a argumentação é uma atividade da razão” (EEMEREN et al, 1996, p. 2, tradução de Ruth Amossy). Há, desse modo, em diversas perspectivas, uma cisão entre logos e pathos.

Christian Plantin, em sua revisão teórica sobre as teorias argumentativas no livro A

argumentação (2008), diz que as obras publicadas durante a década de 1950, que refundaram

os estudos da argumentação após o descrédito à retórica, não retomaram a questão dos afetos. Desse modo, o Modelo de Toulmin e a Nova Retórica de Perelman e Obrechts-Tyteca, bem como as obras orientadas para a argumentação na língua e a lógica natural, desenvolvidas, respectivamente, por Anscombre e Ducrot e Grize, não dão tratamento à figura do pathos. Não há, segundo Plantin (2008), por parte desses estudiosos, uma negação sobre a existência de uma questão das emoções, ainda que eles simplesmente as eliminem de suas obras.

Na nova retórica, Perelman e Olbrechts-Tyteca (1958, p. 630, tradução nossa5), inclusive insistem em uma espécie de camuflagem ao tratar do potencial das emoções no empreendimento argumentativo. Esquivando-se da carga pejorativa que as emoções carregam, os autores dizem que “[...] as paixões, como obstáculo, não devem ser confundidas com as

5 Essa tradução, de modo particular, foi feita a partir da citação que consta na obra Dictionnaire de l’argumentation, de Christian Plantin, por isso a menção de uma versão de 1958, diferentemente das outras, de 2014.

paixões que servem de suporte para argumentação positiva, que geralmente será qualificada por um termo menos pejorativo, como valor, por exemplo”. Para Plantin (2016), essa solução perspicaz nada mais faz que preservar o potencial dinâmico das emoções, transferindo-o para a noção de valores, e projetando, dessa forma, um fazer argumentativo “sem comover”. Cremos, no entanto, que “o tratamento da questão do destino das emoções através de seu controle individual, interacional, social e institucional requer o estabelecimento de problemas que, de outra forma, seriam mais complexos do que a mera censura” (PLANTIN, 2016, p. 442-443, tradução nossa6).