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2. O CAMPO DO PATRIMÔNIO

2.2 O patrimônio urbano no século XIX

No século XIX, a procura pela modernidade apresentou-se de várias maneiras. No campo da arquitetura, buscou-se livrar de estilo ou ornamento. Na França o burguês esclarecido Haussmann64, no seu projeto de reforma de Paris, destruiu parte das construções medievais e conservou outras edificações que estavam fadadas à demolição, de maneira a atualizar a malha da cidade, já que muitos, embora defendessem a preservação do passado, concordavam em uma modernização das cidades antigas. Assim, foi realizado um inventário detalhista quanto aos monumentos que poderiam ser demolidos, visto que os antigos quarteirões eram “empecilhos” à salubridade, ao trânsito e ao trabalho, ficando alguns monumentos do passado como exemplo do que não seria necessário para uma sociedade futura.

Mesmo que os românticos tenham se traumatizado com as reformas modernizantes, para eles não se tratava de um patrimônio que pudesse ser preservado tal como um monumento, isto é, o valor gravado apresentava-se em um modelo muito específico de peça urbana que era o símbolo feito para o fim de referenciar datas, momentos

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LÖVY, Michael. SAYRE, Robert. Revolta e Melancolia: O romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis. RJ: Vozes, 1995, p. 261-280.

64 Georges-Eugène Haussmann foi o grande remodelador de Paris, cuidando do planejamento da cidade, durante 17 anos, com a colaboração de arquitetos e engenheiros renomados de Paris na época.

escolhidos.65 Essa atitude ainda está muito viva até os dias de hoje, não apenas na França, mas em diversos outros países. Mesmo assim, o conceito de Patrimônio, acompanhado de preservação, começou na Grã-Bretanha, com John Ruskin e, mais tarde, ampliou-se para outras modalidades.

A perspectiva de colocar a cidade como um objeto histórico teve seu reconhecimento demorado em virtude de uma rede complexa de relações que se estenderam durante quatro séculos, uma vez que a mentalidade de longa duração identificava a cidade a um nome restrito ou a uma história pessoal, além de ausência de documentação confiável. Os estudos que tratam dela, sempre eruditos apenas destacam os símbolos e monumentos, ficando a cidade apenas em um contexto jurídico, político ou religioso. A própria história da arquitetura no ocidente ignora a cidade. Dentro desse tipo de pesquisa no Brasil, ainda na década de 1980, são poucos os historiadores que se atêm a esse tipo de estudo.

O momento em que a cidade torna-se objeto de conhecimento passa a ser quando, transformada pelas consequências da revolução industrial, torna o “antigo” um contraste com o novo modelo. O urbanismo e a área de patrimônio histórico convivem nesse campo, e a constituição de noção de patrimônio aconteceu na oposição à urbanização dominante.

Segundo Choay, ela é o resultado de uma dialética entre história e historicidade que se apresenta em três figuras: memorial, historial e histórica. A figura memorial apresenta- se na Inglaterra de1860, onde Ruskin já dispara a favor da proteção da malha urbana com a proteção incondicional de determinados elementos que a formam.66

Para ele e outros preservacionistas, a cidade passa a ser considerada como um monumento histórico, revestido de valor de reverência. O presente é realizado a partir das cidades antigas, pré-industriais, deixando de lado a cidade historial que busca no devir, o progresso.

Uma visão completamente oposta a de Ruskin, bem como Haussmann, de que a cidade torna-se obsoleta na medida em que surge o desenvolvimento da sociedade industrial. Camillo Sitte (1843-1903) precisa sua afirmação de que a cidade contemporânea é feia e apresenta carência estética. Essa figura sustenta que a nova cidade é influenciada pela tomada de consciência das dimensões simbólicas, técnicas e econômicas da transformação da cidade industrial e do necessário progresso que acaba moldando a visão de mundo da sociedade. De certa forma, ele se une à proposta de Viollet Le Duc ao criticar o historicismo e

65CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: UNESP, 2001, p. 95-116.

o ecletismo dos arquitetos de sua época, condena todas as formas de cópia ou imitação do passado, porém embasa seu trabalho de forma histórica, descobrindo nos sistemas arquitetônicos do passado que seus princípios continuam os mesmos, apenas colocados sob condições históricas novas.

Não obstante, no século XIX, Viollet-Le-Duc tenha modificado sensivelmente sua opinião propagando da memória histórica ao esquecimento, não se atém ao historicismo do CIAM67, considerando a historiografia um papel fundador, mas sem mitificar ou dogmatizar a cidade. Quanto a Sitte, apenas manifestou preocupação em preservar alguns centros antigos, mas sem militar por sua conservação. Coube apenas pensar na função museal da cidade antiga, porém ainda sem desenvolver uma filosofia implícita de preservação.

O papel museal tratava de colocar a cidade fora da historicidade, tornando-a histórica. Essa nova concepção são modelos desenvolvidos por aqueles que pensavam a fatia urbana como um museu. As cidades antigas eram deixadas fora do circuito de relativo movimento, o que causou certa dificuldade para conservá-los. Esses fragmentos urbanos, geralmente, estavam ligados ao percurso normal das novas cidades.

A noção de figura historial vincula-se à superação das visões de Ruskin e Sitte, e serve de base para todo o movimento atual sobre preservação das cidades antigas, dos centros históricos e das cidades. Um dos importantes teóricos urbanistas do século XX, Giovannoni, situou a dimensão estética do estabelecimento humano na rede de organização espacial, isto é, articulou a concepção crítica da preservação dos conjuntos urbanos antigos na dinâmica do desenvolvimento. O patrimônio urbano, nomenclatura usada pelo teórico em 1931, adquiriu valor e sentido como elemento da doutrina original da urbanização. Seguindo alguns pontos levantados por Viollet Le Duc e Sitte, questionou sobre o fim da cidade densa e centralizada e, se esta, não estaria a caminho de uma fragmentação gerando uma urbanização generalizada e difusa, antevendo um pouco o pensamento da década de 60.

Observando o movimento frenético dos espaços, articula novas formas de considerar a morfologia urbana. Essas malhas urbanas antigas ganham dois novos privilégios: elas são, da mesma forma que os monumentos históricos, portadoras de valores artísticos e históricos, bem como de valor pedagógico e de estímulo imaginados anteriormente por

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No início do século XX os CIAM aplicam a ideia de tábula rasa aos centros históricos, em que rejeitam a noção de cidade histórica ou museal, e apenas a partir da década de 1960 deixa de ter força na Europa, permanecendo com suas proposições em outros continentes.

Viollet-Le-Duc e Sitte, verdadeiros catalisadores do procedimento de novas configurações espaciais.

Contudo, Giovannoni68 avança em uma nova concepção da mutação imposta ao espaço urbano pela era industrial, tirando de sua análise a compreensão de que a cidade deve ser pensada “como um organismo estético”. Sua doutrina resume-se em três grandes princípios. O primeiro deve integrar o fragmento urbano ao plano diretor local, regional, que simboliza a relação com a vida presente. Na continuação, o monumento não pode ser isolado, isto é, separado do contexto das construções nas quais está inserido, e, por último, respeitar a escala morfológica tomando os procedimentos adequados de preservação e restauro. Essas ideias tiveram grande resistência, mesmo que estivessem contempladas na Carta Italiana Del Restauro (1931). Diante desse patrimônio urbano a que se refere Giovannoni, está o campo de forças opostas, demonstrando a dialética da história e historicidade que recupera de certa maneira o valor dado por Ruskin e Morris às malhas antigas, com seus paradoxos e dificuldades.

Essas foram algumas bases importantes que consolidaram, no século XIX, dois modelos de política de preservação: o modelo anglo-saxônico, com apoio de associações civis, voltado para o culto ao passado e para a valorização ético-estética dos monumentos; e o modelo francês, estatal e centralizador, que se desenvolveu em torno de um patrimônio de forma planificada e regulamentada, visando aos interesses políticos de Estado. Este último influenciou na primeira metade do século XX países da América Latina, como o Brasil e a Argentina. Passado um século, os problemas ganharam escala ainda maior diante da aceleração abissal das mudanças das práticas culturais, políticas e econômicas, pairando sobre o espaço construído uma nova tarefa.