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O pensamento econômico-fi losófi co

No documento OLIVEIRA; GENNARI (páginas 141-148)

9. A Escola Marxista: Karl Marx

9.2 O pensamento econômico-fi losófi co

O pensamento original de Karl Marx causa assombro até os dias de hoje, tanto para os liberais e os defensores do capitalismo quanto para os intelec- tuais e trabalhadores que se opõem ao status quo. Desde o século XIX sua infl uência vem se estendendo a todos os campos das ciências humanas. Na sociologia, na economia, na psicanálise, na teoria da administração, na antro- pologia, entre outras, podemos encontrar adeptos da escola marxista. Talvez o principal motivo esteja na profundidade e agudeza da crítica empreendida e desenvolvida ao longo de toda a obra. Nenhum trabalho de fi losofi a, de ciência natural, literatura ou pensamento social escapou aos estudos e à ava- liação crítica de Karl Marx.

Karl Marx não se limitou a estudar e entender a realidade histórica com os olhos de seus contemporâneos. Foi além e criou seu próprio método de abordagem: o materialismo histórico e dialético. Por sua originalidade e con- tundência, o método criado por Marx é considerado revolucionário até nossos dias, sendo estudado e utilizado por todos os intelectuais que se consideram pertencentes à Escola Marxista.

O termo “materialismo” empregado por Marx nada tem a ver com a co- notação vulgarmente conhecida, relacionada com a ética, cujo fi m é a busca desenfreada por bens materiais. No campo da fi losofi a, o materialismo é a mais contundente contraposição à corrente fi losófi ca identifi cada como idealismo, principalmente a corrente alemã representada pelo pensamento do fi lósofo Hegel. Posteriormente, Marx dedicou-se (na obra A ideologia alemã) à critica radical do pensamento do também fi lósofo alemão Ludwig Feuerbach. No idealismo, o real é uma espécie de realização do “espírito; já no materialismo, o

real é o resultado de múltiplas determinações1 e é o resultado da ação real, de

homens reais “de carne e osso” no processo humano de fazer história. O real ou o processo histórico é sempre entendido como uma unidade contraditória em permanente mutação.

O método materialista histórico e dialético é sempre pensado como uma unidade. Entretanto, fazendo um exercício arriscadíssimo, pois, penetrando os labirínticos terrenos geralmente percorridos sem grandes acidentes somente pelos fi lósofos, e correndo o risco de uma análise reducionista, é possível pen- sar que o termo materialismo esteja relacionado à produção real da vida por homens reais, como determinantes da história, do devir e das representações ideológicas, como o direito, a religião, e as idéias em geral.

O real precede no sentido em que a existência concreta, de homens con- cretos, determina as representações ideológicas, e não o contrário, como no pensamento idealista. Nas palavras do próprio Marx:

[...] totalmente ao contrário do que ocorre na fi losofi a alemã, que desce do céu à terra, aqui se ascende da terra ao céu. Ou, em outras palavras: não se parte daquilo que os ho- mens dizem, imaginam ou representam, e tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvi- mento dos refl exos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. E mesmo as formações nebulosas no cérebro dos homens são sublimações necessárias do seu processo de vida material, empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, assim como as formas de consciência que a elas correspondem, perdem toda a aparência de autonomia. Não têm história, nem desenvolvi- mento; mas os homens, ao desenvolverem sua produção material e seu intercâmbio mate- rial, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.2

Já o termo “histórico” é de fundamental importância no sentido de que o real, o que existe, existe como história, e somente a história pode ser o critério

1 Para Marx, “o concreto é concreto porque é síntese de múltiplas determinações, isto é, unidade do

diverso”. Para a crítica da economia política. São Paulo: Abril Cultural, 1982, p. 14. Essa passagem é signifi cativa porque exclui toda a possibilidade de uma determinação sempre dada a priori, como a idéia disseminada e equivocada de que a análise de Marx é determinista econômica, ou seja, a idéia de que sempre o econômico é a parte determinante de todos os fenômenos. Na verdade, para Marx, o determinante por excelência é a própria história, sendo que o econômico pode ser o determinante em certo momento, mas pode ser que o político (ou o estético, ou o ético) seja o determinante, ou seja, o processo histórico real é o que realmente informa qual foi o determinante, pois o real é síntese de múltiplas determinações.

de verdade. Signifi ca principalmente que as coisas existentes só fazem senti- do se pensadas na sua existência imersa na história humana. Signifi ca que o indivíduo, a classe social, o artefato, um documento etc. só fazem sentido se devidamente referidos ao seu contexto histórico. Nesse aspecto do método, iniciando sua refl exão crítica à ideologia alemã, Marx afi rmou que,

[...] em relação aos alemães, situados à margem de qualquer pressuposto, somos for- çados a começar constatando que o primeiro pressuposto de toda a existência humana e, portanto, de toda história, é que os homens devem estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para viver, é preciso antes de tudo comer, beber, ter habi- tação, vestir-se e algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, portanto, a produção dos meios que permitam a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e de fato esse é um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história, que ainda hoje, como há milhares de anos, deve ser cumprido todos os dias e todas as horas, simplesmente para manter os homens vivos.3

Como segunda condição, Marx apontou a criação de novas necessidades pelos homens; como terceira condição, a constituição de família (procriar); depois, ele apresenta o quarto momento representado pela consciência.

Por fi m, o termo “dialético” refere-se, entre outras coisas, a uma forma de refl e- xão que vê a existência, ou as coisas existentes, no seu devir. E esse devir é deter- minado por uma força fundamental existente: a contradição. Dito de outro modo, todas as coisas carregam em si o seu contrário, o que lhes garante que não sejam estáticas, mas estejam em perpétuo movimento e transformação. Desse modo, as coisas nunca “são”, mas “estão sendo”. Assim, o fundamental é ver as coisas no seu devir, já que os fenômenos, por sua própria natureza, estão em permanente muta- ção. Por exemplo, uma criança é uma criança, mas carrega dentro dela sua própria negação, ou seja, o adulto. E este, por sua vez, carrega no seu interior o velho. Em perspectiva histórica, um modo de produção, representado por um momento es- pecífi co do desenvolvimento das forças produtivas (técnica, ciência, conhecimento etc.) e de relações sociais específi cas (classe trabalhadora, classe burguesa, pequena burguesia etc.), traz no bojo sua própria destruição e, em determinado estágio do seu desenvolvimento, pode adquirir um aspecto de crise geral e, dependendo da ação concreta dos homens no fazer a história, uma revolução.

Um dos aspectos mais marcantes da fi losofi a marxista, que deriva de suas in- vestigações históricas, fi losófi cas e metodológicas, está na idéia da contradição

fundamental representada pela luta de classes. Segundo Marx, “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história das lutas

de classes”.4 Fundamental a tal ponto que a luta entre as classes é que move

a própria história humana. O eixo da sociedade onde impera a produção de mercadorias é a propriedade privada e a conseqüente divisão dos homens em classes sociais. De início, os homens são divididos de acordo com sua posição em relação aos meios de produção, ou seja, os que nada detêm além da pró- pria força de trabalho constituem-se como classe trabalhadora, e os que são os proprietários dos meios de produção, a burguesia. Essas duas classes não são as únicas, mas certamente as principais. A divisão de classe não se dá apenas objetivamente, como se viu, mas também subjetivamente, ou seja, os aspectos culturais e ideológicos igualmente interferem na determinação e alocação dos indivíduos nesta ou naquela classe social. Entretanto, a consciência de classe sofre um processo de “reifi cação” e “coisifi cação”, advindo principalmente dos processos relacionados ao fetichismo da mercadoria. Assim, a ideologia que predomina na sociedade é sempre a da classe dominante. Por fi m, uma vez que a sociedade é assim dividida, a luta de classes determina o curso da história, dado que os integrantes de cada uma, ou de frações de cada uma, ao agir em defesa de seus interesses antagônicos, promovem pressões que criam mudan- ças, transformações e até revoluções, ou, de outro lado, tais pressões podem manter a estrutura vigente ou o status quo. A classe trabalhadora é considerada a classe revolucionária, subjugada e explorada, e, por isso, traz consigo os ger- mes da transformação revolucionária da sociedade capitalista.

Concluindo, Marx entende que, com o desenvolvimento do capitalismo, as forças produtivas podem se transformar em

[...] forças destrutivas (maquinaria e dinheiro); e, ligada a isso, surge uma classe que tem de suportar todos os encargos da sociedade sem usufruir de suas vantagens; que, expulsa da sociedade, é forçada à mais decidida oposição a todas as outras classes; uma classe que engloba a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciência da necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista.5

4 MARX, Karl. O manifesto comunista, p. 8. 5 MARX, Karl. A ideologia alemã, p. 107-108.

9.3 A teoria do valor-trabalho

Os estudos relacionados à teoria do valor, à acumulação de capital, à produção do excedente econômico ou mais-valia, à concentração e centralização do capital, à superpopulação relativa ou exército industrial de reserva, ao capital fi nanceiro ou capital fi ctício e, fi nalmente, à renda da terra foram abordados sistematica- mente na obra monumental representada pelos três livros de O capital.

Para Marx, a riqueza das sociedades regida pela produção capitalista con- fi gura-se em “imensa acumulação de mercadorias”. A mercadoria é algo que satisfaz as necessidades humanas materiais e espirituais, e pode ser considerada sob duplo aspecto: segundo a qualidade e a quantidade. A utilidade de uma coisa faz dela valor de uso.

As relações entre valores de troca signifi cam que existe algo comum com a mesma grandeza em coisas diferentes: as duas são iguais a uma terceira que, por sua vez, delas difere. Segundo Marx, o que há de comum é o valor das mercadorias.

Como valores de uso, as mercadorias são de qualidades diferentes; já como valores de troca, diferem na quantidade. Pondo de lado seu valor de uso, a uti- lidade e a qualidade, as mercadorias não mais se distinguem umas das outras, todas se reduzem a trabalho abstrato (abstraindo-se também a qualidade do trabalho que as produziu). O trabalho abstrato é, por sua vez, uma massa de trabalho humano em geral.

Como medir a grandeza do valor de uma mercadoria? Por meio da quan- tidade da substância criadora de valor nela contida: o trabalho. Mas não o tra- balho concreto, como, por exemplo, o trabalho de um alfaiate, e sim o trabalho abstrato, ou seja, aquele trabalho destituído de qualidade, de modo que tenha- mos apenas trabalho em geral, que pode ser medido por tempo. A quantidade de trabalho abstrato, por sua vez, mede-se pelo tempo de sua duração. O valor, então, é determinado pelo tempo de trabalho abstrato, socialmente necessário para a produção e reprodução de uma mercadoria. É preciso considerar o grau social médio de destreza e intensidade do trabalho e também o grau médio do processo de desenvolvimento das forças produtivas materiais.

Assim, para Marx, quanto maior a produtividade do trabalho, tanto menor o tempo requerido para produzir uma mercadoria, e, quanto menor a quanti- dade de trabalho que nela se cristaliza, tanto menor é seu valor. A grandeza do

valor de uma mercadoria, portanto, varia na razão direta da quantidade, e na inversa da produtividade do trabalho que nele se aplica.

Uma coisa pode ser valor de uso sem ser valor, como o ar, a terra virgem, a madeira etc. Para ser mercadoria, é necessário produzir valor de uso e produzi-lo para outros, além de ser transferida para outro (o mercado, a esfera da circula- ção) como valor de troca.

A teoria marxista do valor-trabalho possui uma singularidade. Partindo da idéia de que há algo em comum em todas as mercadorias, e esse “algo” é o traba- lho social abstrato, a teoria caminhou para uma refl exão acerca do fetichismo da mercadoria, pois, para Marx, na sociedade produtora de mercadorias, “a igualda- de dos trabalhos humanos fi ca disfarçada sob a forma da igualdade dos produtos

do trabalho como valores”6, ou como mercadorias que possuem valor.

Religião não se discute, certo? Errado. Para compreender o signifi cado do fetiche da mercadoria de Marx, é preciso fazer uma incursão ao complexo ter- reno da religião. Para Marx, a história da humanidade tem como uma de suas características a criação das religiões. Uma característica comum às religiões é o fato de que os homens criam entidades metafísicas, deuses e santos e, em seguida, submetem-se a eles. Dito de outro modo, os homens criam os mitos e as entidades míticas e logo em seguida se curvam ou se submetem às suas próprias criaturas. Invertem, assim, a relação entre criador e criatura, à medi- da que a criatura passa a ter poderes sobre os homens em vida, inclusive no desconhecido mundo dos mortos. Aos homens (criadores verdadeiros) cabem apenas a obediência e a submissão às regras sagradas. Assim, nas religiões, a submissão, via de regra, vem acompanhada de temor e adoração. No capita- lismo, onde, segundo Marx, o dinheiro é o deus todo-poderoso, aconteceria a mesma relação invertida entre criador e criatura, ou seja, os homens criam suas mercadorias, o mercado, as indústrias, a bolsa de valores etc. e, logo em seguida, se submetem e perdem o controle sobre toda a sua criação. É o enigma do feti- chismo da mercadoria. Uma vez criadas, elas assumiriam o controle sobre seus criadores, que passariam a personifi car as mercadorias ou, mais precisamente, as relações materiais de produção. Prova disso, sempre seguindo as pegadas de Marx, seria o fato de os trabalhadores, agora personifi cadores da mercado- ria força-de-trabalho, não terem o menor controle sobre o chamado mercado

de trabalho, perdendo seus empregos e sua condição de sobrevivência assim que uma crise econômica atingisse a sociedade. Os capitalistas, por sua vez, não escapam também da fantasmagoria das mercadorias e só podem existir como personifi cadores do capital, ou seja, devem agir na condição de persona do capital e fazê-lo crescer e acumular, caso contrário viria a ruína diante dos concorrentes, do mercado, enfi m, da sociedade.

A origem do fetichismo da mercadoria é a própria forma de produção no modo de produção capitalista. No capitalismo, cuja base é a propriedade pri- vada dos meios de produção, os produtores diretos – os trabalhadores – produ- zem, na condição de mercadorias, força-de-trabalho, e o fruto do seu trabalho não lhes pertence, é estranho a eles. Ao produzir, transferem sua essência ao produto de seu trabalho, e esse produto não se identifi ca com o produtor quan- do a mercadoria é produzida com trabalho abstrato. Os trabalhadores produ- zem as mercadorias e, nas relações de trabalho, produzem a si mesmos como mercadoria (força-de-trabalho), e só podem sobreviver por meio dessa relação alienada, na qual eles não têm o menor controle, na medida em que vendem seu tempo como condição de sobrevivência.

Os homens são vistos como personifi cações das relações materiais, ou na con- dição de persona do capital (a classe dos capitalistas ou burgueses) ou na condição de personifi cador da mercadoria força-de-trabalho (os membros da classe traba- lhadora). As coisas passariam a agir como pessoas (nos jornais diários podemos ler com freqüência a seguinte frase: “O mercado entende que [...]” e outras frases do mesmo quilate), e as pessoas, como coisas (como trabalhadores desempregados ou

que se tornam desnecessários diante da constante revolução tecnológica7 e acabam

engrossando o exército industrial de reserva). Em suma, os homens não controlam a sociedade que criaram. Não controlam a produção de seus víveres, pelo contrário, são controlados por eles. Nas crises cíclicas do capitalismo, essa falta de controle fi ca evidente, já que os trabalhadores perdem seus empregos e alguns capitalistas eventualmente vão à falência.

Para Marx, uma relação social defi nida, estabelecida entre homens, assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. “O que interessa aos que trocam os produtos é saber quanto de outras mercadorias podem receber pela

7 “Essa subversão contínua da produção, esse abalo constante de todo o sistema social, essa agitação

permanente e essa falta de segurança distinguem a época burguesa de todas as precedentes.” MARX, Karl. O manifesto comunista, p. 12.

sua. À medida que o costume fi xa essas proporções, parecem elas derivar da

natureza dos produtos do trabalho.”8

O fetiche da mercadoria quer dizer que “a determinação da quantidade do valor pelo tempo de trabalho é, por isso, um segredo oculto sob os movimentos

visíveis dos valores relativos das mercadorias”.9

A crítica da economia política de Smith e Ricardo aparece com nitidez quando Marx avança em sua análise da determinação do valor e do fetiche da mercadoria. Segundo Marx, “só a análise dos preços das mercadorias levava à determinação da magnitude do valor, só a expressão comum, em dinheiro, das

mercadorias induzia a estabelecer-se sua condição de valor”.10 O dinheiro, por

sua vez, é o equivalente geral, em valor, de todas as mercadorias, por isso “essa forma acabada do mundo das mercadorias, a forma dinheiro, que realmente dissimula o caráter social dos trabalhos privados e, em conseqüência, as relações

sociais entre os produtores particulares, ao invés de pô-las em evidência”.11

No documento OLIVEIRA; GENNARI (páginas 141-148)

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