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O período pós-guerra: consolidação de um repertório citadino

CAPÍTULO 1 MÚSICA FOLK NOS ESTADOS UNIDOS: (DES) CAMINHOS

1.4 O período pós-guerra: consolidação de um repertório citadino

No início dos anos 1940, havia muitos folcloristas fazendo pesquisa de campo nos Estados Unidos como Carl Sandburg, John e Alan Lomax e Pete Seeger; folcloristas que estavam ampliando sua área de atuação para outras partes do Sul e do Oeste do país, redefinindo o folclore americano e tornando a música folk cada vez mais conhecida nos centros urbanos. Neste período, também haviam rádios dedicadas à música folk em grandes centros urbanos como Nova Iorque. Os artistas apareciam em revistas com grande vendagem como Life ou New York Times e alguns se tornaram atores de filmes de Hollywood, como Burl Ives.

Foi nestes anos que o termo country realmente ganhou uso geral e a popularidade do estilo aumentou, com intérpretes como Hank Williams, que é considerado o pai do country moderno. Os temas das canções de Hank incluíam o cotidiano das pessoas. De acordo com Paul Friedlander, “seus relatos diretos sobre amores perdidos, infidelidade sexual e bebedeiras eram temas atípicos para o público branco” que ele conseguiu atrair. 96

Marco da difusão do repertório folk foi a criação do grupo The Almanac Singers97 em 1941, formado por intérpretes de música folk que, posteriormente, tornar-se-iam muito conhecidos como Pete Seeger, Lee Hays, Millard Lampell, John Peter Hawes e Woody Guthrie. Neste ano o grupo gravou seu primeiro disco nomeado Songs for John Doe, no qual se posicionavam contra a guerra e denunciavam diversos pontos da política de Roosevelt, entretanto, depois do ataque alemão à União Soviética em junho de 1941, com a mudança da posição anti-guerra do Partido Comunista, o grupo também passou a apoiar a guerra.

Nos anos da Segunda Grande Guerra, os intérpretes e compositores folk apoiaram ativamente a causa democrática, denunciando o Fascismo e, como afirma Ronald Cohen, amparando diversos programas culturais. A guerra possibilitou uma plataforma nacional para canções de resistência. 98

Outros grupos que gravaram canções folk de cunho social durante os anos da guerra foram Priority Ramblers e The Union Boys, formado por Burl Ives, Josh White, Pete Seeger,

95 KILLMEIER, 2012.

96 FRIEDLANDER, 2008, p. 36.

97 A atuação do grupo será detalhadamente analisada em nosso capitulo 4. 98 COHEN, 2006, p. 75.

Tom Glazer, Brownie McGhee e Sonny Terry. Em 1944, The Union Boys gravou o disco

Songs for Victory, um apelo à causa democrática.

Todavia, apesar de individualmente os artistas intensificarem seu posicionamento de luta às causas sociais, The Almanac Singers dispersou-se no ano de 1942, pois os artistas envolveram-se no cenário da guerra – Pete Seeger foi servir ao Exército e Woody Guthrie serviu à Marinha.

Após o término da guerra, em 1945, iniciou-se um período conturbado para a divulgação de canções folk devido às novas configurações nacionais. Vencida a luta contra o Fascismo, os comunistas voltaram a ser uma ameaça à democracia estadunidense, dificultando a possibilidade de crítica ao governo americano. Mesmo antes de 1945 o governo já havia realizado diversas ações no sentido de conter críticas contrárias, em nome da luta democrática, qualquer oposição à guerra deveria ser silenciada.

Apesar da censura às ações contrárias ao governo que a campanha pela guerra provocou, a geração de emprego, renda e bem-estar fez com que grupos sociais intensamente afetados pela Depressão dos anos 1930 tivessem algumas melhorias, o que gerou confiança e aspiração por igualdade social.

Após 1945, houve uma participação mais efetiva nas lutas pelos direitos civis dos afro- americanos. Sobre o assunto recorremos às palavras do especialista em Estudos Americanos, William T. Martin Riches, em seu livro The Civil Rights Movement, publicado em 2004:

Ironicamente, temendo o poder dos democratas sulistas, FDR relutava em integrar as forças do exército, assim, os Estados Unidos lutaram para destruir um regime racista com um exército segregado. Quinhentos mil afro- americanos lutaram na Europa e no Pacífico nestas unidades segregadas comandadas por oficiais brancos. Furiosos com seu tratamento, os afro- americanos usaram seu patriotismo como uma forma de protestar pela campanha da “Double Victory”, que pregava a vitória sobre os inimigos da democracia, tanto no ultramar, quanto nos Estados Unidos. 99

Assim, com o retorno das tropas da guerra, a grande migração afro-americana do Sul para as cidades do Norte continuou e forçou os políticos a reverem suas proposições sobre essa parcela da população, que residia em crescentes guetos urbanos e pressionava cada vez

99 RICHES, William T. Martin. The Civil Rights Movement: strugle and resistance. New York: Palgrave

Macmillan, 2004. p. 10. Original: “Ironically, fearing the power of southern Democrats, FDR was reluctant to integrate the forces and the United States fought to destroy a racist regime with a segregated military. Five hundred thousand African Americans fought in Europe and the Pacific in these segregated units with white commanding officers. Angry with their treatment, African Americans used their patriotism as a means of protest with the ‘Double Victory’ campaign, which sought victory over the enemies of democracy overseas and in the United States”.

mais por participação na cidadania e direitos iguais. Os partidos políticos e seus líderes foram forçados a agir.

Em 1946 o presidente Truman, em uma mensagem ao Congresso Nacional, assegurou que recomendaria leis anti-linchações, aboliria os impostos de votação, protegeria a população nos dias de eleição nos locais onde já existia o direito de voto, integraria as forças armadas, negaria verbas federais a segregacionistas, bem como acabaria com a segregação no transporte interestadual. Ou seja, em seu governo a luta pelos direitos civis conseguiu algumas vitórias, pelo menos em termos legais.

Entretanto, apesar de alguns avanços na questão dos direitos civis, os Estados Unidos viveram, internamente, a chamada “caça às bruxas” ou “macarthismo”100, caracterizado por um anticomunismo, em nome dos valores democráticos. Havia juramentos de lealdade para professores, censura de livros e lista negra de artistas, com um grande retrocesso na luta democrática pelas “quatro liberdades”.

Não apenas intelectuais foram perseguidos, mas também muitos sindicalistas.

Sobre a atuação dos sindicalistas no período, ressaltamos que, no ano de 1946, foi eleita uma maioria republicana para o Congresso Nacional, o que levou a aprovações de leis anti-sindicalistas, como a Lei Taft-Hartley, que proibiu táticas específicas dos sindicatos, bem como permitiu ao presidente evitar greves. Ao mesmo tempo, ocorreu uma onda de descontentamento trabalhista devido à subida dos preços das mercadorias. Isso ocorreu por causa da escassez de mercadorias em tempo de mudança de foco da indústria de produtos de guerra para carros e eletroeletrônicos. Junto a isso, os trabalhadores almejavam continuar com os altos salários do tempo de guerra, o que não ocorreu.

A despeito da repressão imposta por leis conservadoras, grupos de trabalhadores reagiram ao desemprego e aos baixos salários com um surto de grandes greves em 1946, demonstrando seu descontentamento frente à situação econômica do país. Tal descontentamento foi sendo modificado ao longo dos anos devido às significativas transformações sociais e econômicas que o país sofreu, sendo uma das mais importantes a crescente prosperidade, acompanhada por sua hegemonia política no Ocidente, conquistada nos anos posteriores ao final da Segunda Grande Guerra.

100 O termo macarthismo refere-se ao Senador Joseph McCarthy, figura atuante no Comitê de Atividades

Antiamericanas, que perseguia intelectuais, artistas, e outros, acusados de exercerem atividades “nocivas” à sociedade estadunidense. O Senador foi obrigado a encerrar sua carreira política em 1954, após uma repreensão pública do Senado e a consequente perda do apoio popular.

Avançados os anos 1950, a sociedade estadunidense passou a gozar de um bem-estar e conforto material proporcionado pela economia em progresso. Uma das áreas de maior crescimento foi a de eletroeletrônicos, como o rádio e a televisão.

No campo específico da produção musical, a prosperidade econômica e novas tecnologias como novos suportes de gravação, facilitaram a circulação do material musical. Deste modo, a comercialização e popularização do repertório folk intensificaram-se ainda mais. O historiador Ronald D. Cohen afirma que, na metade da década de 50, existia uma variedade de estilos musicais populares disponíveis em apresentações, gravações e programas de rádio. 101

Podemos afirmar que as transformações econômicas que redundaram em novas tecnologias acarretaram uma mudança cultural manifestada explicitamente no campo do entretenimento. O disco, por exemplo, passou a ser um produto de grande consumo que atingia variadas faixas etárias. A indústria fonográfica beneficiou-se dessa criação de uma demanda por discos.

Com a difusão do disco como meio de entretenimento, seu barateamento e o surgimento de uma demanda de consumo, as canções folclóricas tornaram-se acessíveis a um público mais amplo, com uma consequente inserção de intérpretes e compositores nos distintos circuitos comerciais da canção, fato que acabou levando a modificações nos gêneros rurais tradicionais como o blues e as baladas dos habitantes do Sul do país.

Paul Friedlander afirma que o blues tradicional do Sul foi perdendo popularidade e sendo substituído pelo blues urbano do Norte e Oeste, principalmente no Sul de Chicago - tenha-se em mente que em 1945 havia um grande número de comunidades afro-americanas nos centros urbanos do Norte devido às migrações durante a Depressão e nos anos da guerra. Os temas das letras de blues foram expandidos a fim de incluir a paisagem urbana do Norte: “as novidades e a alienação da existência urbana, a ausência do lar rural e da família- e de seu apoio emocional e material- ajudaram a criar o cenário no qual o blues urbano floresceu.” 102 As guitarras foram sendo cada vez mais incorporadas nas performances, bem como ocorreu uma aceleração no andamento de diversas canções. O compositor Muddy Waters é representativo desta tendência.

Neste período, as gravadoras cunharam um novo termo para nomear o repertório interpretado por intérpretes afro americanos, o Rhythm & Blues que, segundo Friedlander, era

101 COHEN, 2006, p. 87.

um estilo musical conformado pela formação básica das bandas de blues com sua emoção e sustentação das notas, acrescido de um solista de sax tenor do jazz, mais o ritmo do gospel. 103 Ou seja, o novo gênero foi influenciado pelo jazz, pelo gospel e pelo ritmo e condução do jump blues, que era um blues com o andamento acelerado.

Eram utilizados acordes da estrutura básica do blues, mas sem grandes improvisos, seguindo padrões previsíveis de acordes e estrutura, com os arranjos sendo intensamente ensaiados, gerando performances relaxadas e controladas. O novo estilo foi consolidado no circuito musical do país, sofrendo algumas mudanças ao longo das décadas. Entre as décadas de 1950 e 1970, as bandas de R&B geralmente consistiam de um piano, uma ou duas guitarras, baixo, bateria, saxofone e vocais de apoio. Os trajes utilizados eram ternos e, em alguns casos, uniformes.

Os temas das canções são mais otimistas do que os blues, mas mantém a temática da “liberdade e experiências da vida real”. Também se trata nas canções de R&B do “amor e dos relacionamentos sexuais”, como no disco de Ray Charles, “I Got a Woman”, de 1954. 104

Como afirma Ronald Cohen, o estilo obteve sucesso junto aos consumidores urbanos e incorporou as últimas tendências na língua e na dança, tendo sido gravado por intérpretes como Charles Brown, Joe Turner e Louis Jordan. 105

O Rhythm and Blues foi gravado por diversos selos discográficos em Chicago, Memphis, Nova Iorque, Nova Jersey e Indiana. As gravadoras objetivavam um público afro americano, mas acabaram encontrando um crescente público branco para o R&B. Os intérpretes de R&B, como Muddy Waters, conseguiram captar os anseios da época falando de automóveis, roupas, bebidas populares e dos heróis jovens.

Outro novo estilo que começou a dominar a cena musical citadina foi o bluegrass, popularizado pelo cantor Bill Monroe quando este desenvolveu uma forma dinâmica de cantar baseada no blues. O autor do livro Worlds of sound, Richard Carlin, afirma que demorou um pouco para o chamado folk revival reconhecer o bluegrass porque muitos sentiam que este era um estilo demasiadamente moderno; 106 apesar disso, o estilo foi propagado das cidades do Sul para todo o território nacional.

De acordo com Bill Mallone, o bluegrass foi inovador no som, mas manteve-se atado à tradição ao aderir uma instrumentação acústica e basear-se em canções e uma forma de cantar

103 FRIEDLANDER, 2008, p. 34-35. 104 Ibid., p. 34-35.

105 COHEN, 2006.

antigas. Muitos identificaram o estilo com as antigas canções dos habitantes das montanhas do Sul. O bluegrass tornou-se um “refúgio para os fãs de country e músicos que olhavam com desprezo a homogeneização do mainstream da música country. Na cabeça de muitas pessoas, o bluegrass tornou-se a lógica extensão ou moderna personificação da música da montanha.”

107

As tradicionais bandas de bluegrass interpretavam as canções com o acompanhamento de instrumentos acústicos como o banjo, violão, baixo acústico, bandolim, dobro e violino.

Podem-se perceber referências do jazz no revezamento dos instrumentos em solos e improvisos, diferente do que ocorria no repertório anteriormente denominado de hillbilly ou canções da montanha, nas quais todos os instrumentos tocavam a melodia juntos ou os solos eram realizados em apenas um instrumento. Uma característica marcante do estilo são as harmonias vocais realizadas em duos, trios ou quartetos, geralmente com dissonâncias ou mudanças modais no registro mais agudo. São utilizados ritmos e estruturas melódicas simples, características dos folks tradicionais, com progressões tradicionais dos acordes, como o padrão de I- IV-V, que pode ser visto como uma das referências do blues. Outras referências incluem canções espirituais, como os hinos religiosos das igrejas afro americanas e brancas do Sul do país.

As transformações econômicas e tecnológicas e a intensa urbanização do período pós- guerra tiveram grande impacto na expansão e modificação do repertório folk que se desdobrou em novos estilos, como o R&B e o bluegrass. Este novo repertório dividia o mercado com o rock and roll (principalmente depois da aparição de Elvis Presley) que estava captando a atenção do público jovem nos anos 50, e com um repertório mais antigo de blues e country.

Não podemos perder de vista que essas canções nomeadas pelo mercado musical como blues, country, gospel, R&B ou bluegrass, muitas vezes compunham o repertório de vários artistas, que não selecionavam seus repertórios pautados nestas classificações. Muitos intérpretes de R&B, por exemplo, afirmam que este termo foi criado pelas gravadoras em substutição ao termo race dos anos 1920, que no pós-guerra foi considerado pejorativo, para nomear todo o repertório interpretado por afro americanos, incluindo blues, gospel e tendências mais populares e modernas.

Portanto, por mais que a censura do período de “caça às bruxas” dificultasse a atuação e divulgação dos intérpretes e canções de música folk, sua popularidade aumentou devido à

107 MALONE, 1993, p. 103.

inserção em distintos circuitos comerciais da canção. Um exemplo dessa popularidade é a experiência vivida pelo conjunto The Weavers, formado no final dos anos 1940 por ex- integrantes do Almanac Singers.

Os The Weavers tornaram-se o grupo de maior sucesso comercial de música folclórica. Apesar da interrupção da carreira do grupo pelas forças anticomunistas em 1953, o The Weavers voltou às suas atividades em 1955, após o afastamento do senador McCarthy do governo. O repertório integrava canções afro-americanas que insinuavam um compromisso e cooperação com a luta pelos direitos civis, e sua atuação foi marcada por um engajamento político significativo no período. 108 Este posicionamento dos The Weavers frente à luta pelos direitos civis foi uma característica de grande parte dos intérpretes e compositores de música folk no período pós-guerra.

No final dos anos 1950, os intérpretes de música folk conseguiram alargar consideravelmente seu público. Como afirma Ronald Cohen em sua obra Rainbow Quest, durante os anos da guerra muitos soldados brancos que estiveram ativos no Sul do país tomaram conhecimento deste repertório tradicional sulino e, quando retornaram aos seus lares no Norte, levaram consigo as canções; ao mesmo tempo muitos migraram do Sul para o Norte também difundiram as canções. E a atividade de coleta, preservação e distribuição do repertório folk continuou centralizada na Biblioteca do Congresso Nacional na cidade de Washington, na qual Duncan Emrich dirigia a Seção de Folclore, continuando o trabalho iniciado por John Lomax. 109

E havia, ainda, diversas gravadoras dedicados ao folk como as antigas três companhias que dominavam o mercado: Columbia (criada em 1888), RCA (criada em 1901) e Decca (atuante desde 1929); a Stinson que se dedicava ao folclore desde os anos de 1930 e as mais recentes Capitol (criada em 1942), MGM (atuante desde 1946) e Mercury (criada em 1945). Ao longo da década de 1950 surgiram novos selos que ajudaram a suprir o público com uma diversidade de discos de música folk como o Folkways (1948), Riverside (1953), Elektra (1950), Vanguard (1950) e Tradition (1955).

Em nosso próximo capítulo, nos deteremos especificamente no desenvolvimento deste mercado musical entre os anos de 1945 e 1960, por meio de um estudo do catálogo de discos da gravadora Folkways, que é uma das principais referências na atividade de gravação, preservação e difusão do repertório folclórico nos Estados Unidos.

108 Trataremos mais detalhadamente da carreira deste grupo em nosso capítulo 4. 109 COHEN, 2002, p. 64.

CAPÍTULO 2 FOLKWAYS RECORDS: PLURALISMO NA “ENCICLOPÉDIA DO