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1. Johannes Vermeer – a habitação do espaço

1.1 O pintor e o seu tempo

Num dos mais importantes livros sobre a arte do pintor holandês do séc. XVII Johannes Vermeer, o crítico inglês Lawrence Gowing, nos idos de 1952, avaliou, definindo de forma significativamente marcada pela excepcionalidade e pela diferença, o valor relativo da obra do pintor face à dos seus contem - porâneos, afirmando o seguinte:

Without the contrast of his solitary opposing gesture our understanding

of the positive hold on the world characteristic of his century and its masters would be less complete. (Gowing 1997: 67, ênfase minha)

Que gesto isolado de oposição distingue então Vermeer dos seus contem - porâneos, ao mesmo tempo que irmana estes entre si? Recordemos brevemente que o pintor, nascido em Delft em 1632 (onde viria a morrer em 1675), pertenceu ao período que os historiadores de arte habitualmente designam de «Idade de Ouro» (Golden Age) da arte neerlandesa – período que abrange grosso modo todo o séc. XVII, em que, a par do comércio e da ciência, a pintura da Holanda floresceu de modo notável e quando um número inusitado de pintores se mantiveram activos produzindo objectos artísticos cuja qualidade, quer no que respeita à técnica, quer no que toca à inovação, haveria de se repercutir de modo indelével na história da arte europeia ocidental. A este período pertencem, como é do nosso conhecimento, nomes como Frans Hals (1581/85-1666), Rembrandt van Rijn (1606-1669), Gerard Dou (1613-1675), Gerard Terboch (1617-1681), Emanuel de Witte (1617-1691/92), Carel Fabritius (1622-1654), Jan Steen (1626- 1679), Pieter de Hooch (1629-1684), Gabriel Metsu (1629-1667), Nicolas Maes

(1634-1693), Frans Mieris (1635-1681), para mencionar apenas alguns dos mais destacados. Ainda que não possamos falar de uma escola, tendo em conta a diversidade das práticas pictóricas a que cada qual se dedicou (cf. Longhery 2001: 290), um dos contributos conjuntamente dado por estes artistas consistiu no desenvolvimento decisivo dum tipo de pintura em que a maioria haveria de especializar-se e que, retrospectivamente, ficou conhecida como «pintura de género» (genre painting).1Este tipo de pintura distinguiu-se pela representação

de cenas da vida quotidiana, centrando-se nos mais variados incidentes, espaços e situações, desde as cenas de taberna e de bordel às tarefas rurais ou domés - ticas, a momentos dedicados à leitura ou à música, para citar apenas alguns. Muitas destas cenas apareciam imbuídas dum sentido moral ou didáctico o que lhes conferia uma certa ambiguidade retirando-lhes em parte a dimensão meramente naturalista,2e evocando as ligações da pintura holandesa a uma

forte tradição cristã (Rosenberg, Slive e Kuile 1966: 101-102).3Ora é justamente

este carácter simultaneamente descritivo4e emblemático,5frequentemente

moralizante, evidente em muitas das pinturas deste tipo, que distingue Vermeer dos seus contemporâneos.6Ainda que faça inúmeras concessões às convenções

que governam o género que bem conhecia, o pintor, mesmo quando inclui gestos indiciadores duma explicação de tipo iconográfico (mas no âmbito profano) daquilo que nela vemos ou objectos emblemáticos susceptíveis de nos apontarem uma pronta descodificação alegórica, torna-os de tal modo discretos que eles acabam por não perturbar a atmosfera enigmática da cena repre sen - tada – em vez de explicá-la, esquivam-na a qualquer ímpeto clarificador (Snow 1994: 148). Para tornar explícito o contraste de que falo basta comparar dois quadros: o de Nicolaes Maes, The Idle Servant (1655) e o de Vermeer, A Woman Asleep (c.1657).

Enquanto no primeiro a eloquência da situação descrita não deixa dúvidas quanto ao sucedido, o que temos em A Woman Asleep é a tentativa de escapar ao esclarecimento implícito na descrição e, assim, evitar que o objecto represen - tado fique sujeito a um sentido demasiado limitado. E, por isso, podemos dizer que Vermeer se situa fora da convenção, pela recusa da explicitação inequívoca, pela esquiva ao alegórico, mesmo quando estes aspectos ainda nas suas telas se inscrevam e se deixem ler, como frequentemente acontece. (Em vez de lhes fechar o sentido, o pintor procura, ao contrário, conferir-lhes um carácter enigmá tico e aberto.) Só que, deste modo, os pormenores que os sustentam se

ISABEL FERNANDES

LITERATURA: A (IN)DISCIPLINA NA INTERSECÇÃO DAS ARTES E DOS SABERES 139

tornam espúrios, irrelevantes, como se Vermeer procurasse sub-repticiamente retirar apoios à leitura emblemática e apelasse antes à atenção ao que nelas é essencial. E que é o essencial do trabalho artístico de Vermeer? Uma peculiar e inesperada descrença incrustada no cerne de muitos dos seus quadros e que o distingue dos outros artistas contemporâneos. De novo, é Gowing quem nos ajuda a perceber aquilo que está em jogo:

He stands outside our convention because he cannot share its great sustaining fantasy, the illusion that the power of style over life is real. However an artist love the world, however seize on it, in truth he can never make it his own. Whatever bold show his eye may make of subduing and devouring, the real forms of life remain untouched. Matter is stronger, at any moment it may turn and crush him; finally it surely will. Vermeer’s delicacy is not to provoke the foreign power of the life outside him. He knows that all that the eye can possess is light. (Gowing 1997: 67, ênfase minha)

Serve este passo como chamada de atenção para o que se me afigura cons - tituir o paradoxo central da obra do pintor: dum lado, a necessidade imperiosa de representação, reclamada pelo mundo humano em seu redor com regras, convenções e imperativos de toda a ordem e, a partir deste período, sobretudo os imperativos do mercado da arte; do outro, o progressivo e agudo reconhe ci - mento das dificuldades, dos perigos e mesmo da impossibilidade de plena - mente a concretizar (Gowing 1997: 64). O que a obra de Vermeer gradualmente nos vai deixando ver é a crescente aceitação da autonomia, da independência do mundo que o rodeia que só se deixa captar ou descrever em termos de luz. É essa luz, mais ainda do que os objectos que por ela são iluminados, que as suas telas insistentemente procuram acolher.7

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