• Nenhum resultado encontrado

O pomar efabulado: revoadas de escritos nas rotas do papel

PALIMPSESTOS: A MÁQUINA POÉTICA DE

3 PALIMPSESTOS: A MÁQUINA POÉTICA DE VERGILIANAS

3.2 O pomar efabulado: revoadas de escritos nas rotas do papel

Ricardo Piglia, em Ficção e teoria: o escritor enquanto crítico, sinaliza em suas primeiras colocações que o escritor “[...] não busca ler toda a literatura mas quer armar uma espécie de uma rede com a qual ele constrói sua ficção literária – seu romance familiar e literário, suas tradições, suas fraternidades e inimizades [...]” (PIGLIA, 1996, p. 47). Pensando desse modo, Piglia nos faz acreditar que o autor, em verdade, está situado numa zona em que busca convergir para si um conjunto de leituras, para com elas dialogar, atrair e formar a sua teia de escritores.

A rede intertextual que está presente na obra de qualquer escritor, portanto, é o resultado (dentre outros fatores) das leituras, obras e autores que ele elegeu como sendo as suas referências. Esses, por sua vez, vão emergindo sob diversas colorações em outros textos, formando, assim, um tecido que é estruturado por citações, bricolagens e interdiscursos. No corpo textual, as mesmas referências podem aparecer de modo iluminado, claro para os seus leitores, ou, por outro lado, podem apresentar-se de modo mais sutil, nas entrelinhas de determinada obra poética.

Essa querela nos patenteia discutir a relação que se estabelece na lírica de Maria Lúcia Dal Farra no que se refere ao trânsito com a tradição literária que está incorporada em sua escrita. Ricardo Piglia (1996) acredita que a tradição está construída de modo similar ao sonho, pois tem “[...] restos perdidos que reaparecem, máscaras incertas que encerram rostos queridos [...]”. (PIGLIA, 1996, p.51). Parece-nosque a relação com a tradição se apresenta, assim sendo, de modo inolvidável na produção do escritor.

Dal Farra problematiza de modo intenso o discurso da tradição em sua obra, tanto é assim que, em Esclarecimento, presente no livro Alumbramentos (2012), informa de modo contundente como ocorre o processo de apropriação das escritas alhures realizado por ela.Se desde 1994, quando estreou na literatura, já problematizava em suas poesias a posse como sendo uma das principais características de sua produção, no Livro de Possuídos esse pressuposto se adensa com as trocas intertextuais que se estabelecem no corpo do texto de maneira ainda mais declarada.

A escritora afirma que o aspecto mais valoroso na literatura é o processo de acasalamento presente na obra de qualquer artista, a sobreposição de digitais, o comércio de letras e versos entre si. (DAL FARRA, 2012). Pronuncia que, em sua poética, o diálogo entre

textos, artistas e poetas (traço genuíno de sua produção) está nas “[...] interpostas pessoas e vozes, tremeluzes e ecos de leituras, arremedos de glebas alheias, simulacros de benquerenças, embaralhados hologramas e [...] usurpações e perversos decalques – letras que

[...] só sobrevivem emprenhadas.” (DAL FARRA, 2012, p. 16). Com o indicativo exposto, reiteramos que a poesia da escritora está constantemente questionando o espaço da

tradição como paragem a ser desbastada pela citação, num movimento de reverência e distorção.

É importante ressaltar que, no decorrer da leitura dos poemas do Livro de Possuídos, a escritora extravasa os limites inicialmente arquitetados nos poemas de Vergilianas, ou seja, o que seria de início a posse do poeta latino se compõe, em verdade, em uma grande festa de apropriações, leituras e citações de escritores vários do cânone literário ocidental. Sem delongas, trazemos o poema Banana, que desenha com clareza esta carnavalização da posse. Leia-se:

Fruta que em cachos pende (cuidam as gentes)

Que fora ela a agente da cruel serpente. Santa Rita Durão (com tal repente) Torna Adão cidadão americano, E destrona dos trópico paradisíacos A maçã, o maracujá, o figo,

Em prol da banana (nanica, prata ou maça, da terra ou pacovã).

Ah, eis porque Eva

Deixou-se (tão fácil) seduzir: Sexo!

Muito embora (corrobora Plínio)62 Tenha nutrido os sábios da Índia - a árvore da ciência do bem e do mal (sabe-se!)

Sofre eterna pela irreverência: Ao brotar o cacho

(que começa com o mangará) Geme como mulher em parto. E não é pra menos: quando estéril, só se fecundou pelo abraço dum homem...63

62 Plínio, o Velho (23-79 a. C.), realizou estudos sobre a fruta, esses estão presentes na publicação História Nacional.

63 Ao longo do tempo, informam estudiosos da área de botânica, a bananeira foi perdendo a capacidade de multiplicar-se por sementes. Foi daí então que o homem aprendeu e efetivou o cultivo da fruta. (PORTAL SÃO FRANCISCO, 2008).

Sabor íntimo e voluptuoso, libertário e obsceno, tem impresso na sua carne o paradoxo da origem, litania de deus e do diabo. Porque sendo fálica (e pecado) a fruta (mesmo assim)

guarda no ventre um prodígio: o crucifixo ou traços

da Virgem Maria com seus filhos no braço.64 O dedo de Deus anda por toda a parte. (DAL FARRA, 2002, p. 69-70)

Iniciado com o trecho reelaborado do Canto VI de Caramuru 65 (de Santa Rita Durão), a poetisa situa a banana como a fruta do pecado original nos trópicos americanos, deslocando a maçã da arquetípica simbologia pecaminosa da origem do mundo, que remonta a Adão e Eva, no mito bíblico (BIBLIA SAGRADA, 1982). Para Plínio, o Velho (23 -79 d. C.), romano naturalista (e uma das fontes referenciais de Dal Farra), a banana, em seus estudos, era de proveniência oriental, considerada a fruta dos sábios, exótica e benéfica para a mente (PLÍNIO, O VELHO, 1998). É sob esse olhar que a fruta é possuída no poema dal- farreano.

Em tom cordelesco, nos primeiros versos, a saga da banana na zona do Equador é contada em dicção ritmada e com tônus popular. Na primeira estrofe, a autora prefere eleger a banana como a fruta responsável pela desabona dos bons costumes na Terra, o pecado da nossa origem, contrariamente à conhecida imagem da maçã e da serpente, do figo e do maracujá como os objetos vilões responsáveis pela instauração do caos terreno diante do cosmo que fora deixado pelo Deus Criador.

Mas, para elaborar as imagens que deseja sobre a fruta, a autora preenche as suas “mangas” com leituras várias, sejam elas literárias, históricas, míticas ou pertencentes ao

64 O mítico rei cristão, Preste João, anualmente confirmava os governadores de sua província (no Brasil) na fé em Jesus, partilhando com todos uma banana. Partiria dele reflexões sobre o milagre que existe no interior da fruta ao ser dividida em duas partes: a aparição do crucifixo e de Santa Maria com o seu filho nos braços. Gândavo e Gabriel Soares de Souza, nas crônicas escritas sobre o Brasil, também referenciavam a imagem do crucifixo presente no interior da banana (DONATO, 2012, p. 2).

65

No canto VI de Caramuru, de Frei Santa Rita Durão, a banana é vista como instrumento de tentação, tal qual a maçã, veja-se: “[...] As bananas famosas na doçura / Fruta que em cachos pende e cuida a gente, / Que fora o figo da cruel serpente.” (DURÃO, 2012). No Livro de Possuídos, esses versos são ressignificados da seguinte forma: “Frutas que em cachos pende / (cuidam as gentes) / que fora ela a agente da cruel serpente [...]”. (DAL FARRA, 2002, p. 69). Observamos que permanece no poema de Dal Farra, ainda assim, a ideia de fruta do pecado.

campo científico da botânica, para fundamentar o seu discurso lírico. Uma torrente de leituras aparece com esse poema: os variados tipos de banana, as leituras mitológicas e populares sobre a fruta. O olhar atento e agregador de Dal Farra encerra de modo oracular e preciso o incurso que faz pela fruta, por meio do seguinte verso final: “O dedo de Deus anda por toda a parte.”

Com isso, a banana é vista como agregando em si uma ambiguidade inebriante. Portadora de uma simbiose entre o sagrado e o profano, Deus e o Diabo, carrega o princípio da duplicidade no próprio corpo. Se o formato fálico instiga o desejo sexual pela ordem da desmedida, por outro lado, as insígnias que estão cravadas na anatomia interior da fruta, que remontam à simbologia cristã (o crucifixo e a imagem da Virgem Maria), rumam para o campo da ordem. Paradoxo é a premissa que rege o poema, apresentando que as separações estanques de bom e mau, verdade e mentira, sacro e popular, não estão mais compartimentadas nos princípios duais que estiveram sempre presentes em nossas prerrogativas ocidentais.

Platão pautava-se, na República, em ideais moralistas marcados pelo princípio da exclusão (sob a ótica dos estudos contemporâneos), ou seja: determinado fato é verdade ou é mentira, determinada pessoa pertence ao bem ou pertence ao mal; chega ao ponto de levar esse ideal ao limite de considerar o texto literário como sendo um falseamento – por estar pautado na imitação afastada da realidade e, por assim se realizar, merecer a condição de nomadismo –, resultando na expulsão dos poetas da polis grega. Contemporaneamente, pensamos que, com essa postura, Platão invalidava a crença na possibilidade de existir a concomitância ou, até mesmo, de se valorar a mentira como sendo um discurso a ser problematizado.

A reorganização dos postulados platônicos, que sempre estiveram indexados à mentalidade ética e estética da civilização ocidental, começa a ser desestabilizada com os pós- estruturalistas, dentre eles, Nietzsche e Gilles Deleuze. Com eles, o platonismo passou por um processo reflexivo de reversão, com a valoração da cópia, dos simulacros, por considerar a existência do paradoxo e da antítese como marcas do nosso pensamento, não mais engessados em estanques dualismos.

O poema Banana se encaminha pela mesma linha de reflexão, pois objetiva conjugar as leituras dualistas (por vezes contraditórias, taxativas e preconceituosas) realizadas sobre a fruta ao longo da história, não elegendo a mais correta ou a mais verídica, mas sim, trabalhando por concomitância, montando uma espécie de mosaico de leituras e excertos. Podemos afirmar que, ao trazer um amplo mostruário de referências que percorrem diferentes

séculos (Santa Rita Durão, mito bíblico, Plínio, dentre outros), o texto poético investe na coexistência de perspectivas, apostando que os díspares podem estar compactuados, em situação de confronto e embate.

Sobre isso, a absorção dos frutos naturais, que brotam numa espécie de quintal intimista e fabular nos poemas de Vergilianas, pareceu para a poetisa “[...] familiarmente Vergiliano, mas um Vergílio ficcionado, efabulado, a bem da verdade contemporâneo e meu [...] Daí o título que (por ironia?) lhes conferi [...]”. (DAL FARRA, 2002, p.10). Com tal mecanismo, no qual Dal Farra detém elementos da natureza no seu eu, a autora convive com esses elementos, reelaborando-os de acordo com a própria subjetividade. Isso é bem próximo ao que Hegel (levando em conta o afastamento temporal de Dal Farra para os pressupostos clássicos hegelianos) postula sobre o gênero lírico, pois o poeta “[...] reclui-se em si mesmo, perscruta a sua consciência e procura dar satisfação à necessidade que sente de exprimir, não a realidade das coisas, mas o modo por que elas afetam a alma subjetiva.” (HEGEL, 1980, p.217).

Falamos isso, pois a experiência composicional desses poemas de Maria Lúcia Dal Farra ocorre pelo processo que envolve o corpo e a experimentação deste com a materialidade que o circunda. Para a escrita dos poemas bucólicos, a escritora manuseou os frutos, provou- os através do paladar e tato, conviveu com eles subjetivamente, para daí então elaborar as poesias que possuem no mínimo 22 versos cada uma delas. Além disso, podemos afirmar que tais textos apresentam um aspecto fortemente didático66, pois exibem uma atmosfera informativa, colocando para o leitor conteúdos, estudos e proposições sobre cada um dos vegetais.

Por esse caminho, é bem notório que a extravasada de limites em relação a Virgílio vai se tornando cada vez mais nítida nas Vergilianas. No decorrer dos textos líricos, insurgem infindáveis diálogos e tramas intertextuais que provam que considerar a relação entre os textos, no Livro de Possuídos, sendo movido unívoca e prioritariamente pelo poeta latino, seria inconsistente. Estampando a nossa ideia, trazemos o poema Receita Hermética:

66 O aspecto didático presente nos poemas vergilianos pode ser percebido pelo empenho da autora em construir uma leitura, além de artística, pautada numa explicação pedagógica das frutas, com fontes historicistas, geográficas e místicas, resultado de seus estudos enquanto intelectual e pesquisadora. Essa inclinação presente na poética dal-farreana diz respeito a uma das facetas da escritora, a de professora universitária. Como está presente na apresentação do Livro de Possuídos, há uma intencionalidade em praticar um tipo de docência no decorrer da escrita dos poemas. No primeiro capítulo desta dissertação, problematizamos de modo mais atento o perfil docente presente na produção ficcional de Maria Lúcia Dal Farra.

Oh heróica berinjela, que mares atravessas

(em sentido contrário ao dos lusíadas) apenas para aportares em minha mesa! Em fechada e roxa urna

(desde a Índia) o caminho marítimo na contramão descobriste. E ínvias cartografias

refazes agora nas revoltas ondas do meu forno, onde santelmo com seu fogo atua.

cuida que à tua caravela não soçobrem! Abri-te em duas barcaças

para que (melhor) navegasses. Destruí dentro de ti,

a maldição do mar imóvel (Adamastor em culinária posto) e, em brando atanor,

massa e sementes refogo.

Devolvida em camadas, ao ventre vazio retorna (solve et coagula)

tua mesma natureza – tripulação de lavra própria ostentas.

Queria-te para barcarola e indigesta me saías.

Mas galgar mares nunca dantes navegados resulta em insólita gestas

ou ridícula epopéia.

(DAL FARRA, 2002, p. 71)

Receita Hermética apresenta, através da voz enunciadora do poema, a peregrinação por onde a berinjela passou até chegar às terras europeias e americanas. No texto poético, esse vegetal originário da Índia percorreu o caminho contrário ao dos lusíadas camonianos, ou seja, partiu das terras indianas para Portugal e, de lá, chegou ao Brasil com as conquistas das terras americanas por meio das Grandes Navegações, no século XVI.

Enquanto a travessia da berinjela acontecia em embarcações, passando por mares turbulentos, no poema dal-farreano, essa passagem entre continentes é feita de modo alegórico no espaço da cozinha. A berinjela, ao ser dividida ao meio, forma duas barcaças que são levadas ao forno em uma receita particular, com refogados, massas e sementes. E, no mesmo instante em que o alimento começa a ser feito, aparece no poema a figura do gigante Adamastor, personagem mitológica que representava as forças da natureza contra o Vasco da

Gama na sua investida em prol dos portugueses, figurada no poema épico Os Lusíadas, de Luis Vaz de Camões. Na culinária do poema, Adamastor vai servir como agente catalisador para executar a retirada do miolo do legume e substituí-lo por outro recheio, como se essa figura mítica representasse um elemento encorajador para a execução desse processo de modificação.

Convocando o princípio alquímico da transformação, presente na inscrição latina: “solve et coagula”, o fogo e a arte de cozinhar servem como instrumentos de modificação. Enquanto na alquimia a pedra filosofal transformava uma substância em outra, nessa poesia, as modificações são feitas sob a ação do fogo. Com a presença deste elemento natural, a berinjela se transforma de vegetal em iguaria mais vívida, pois faz o sujeito poético “[...] galgar mares nunca dantes navegados [...]”. (DAL FARRA, 2002, p.71). Rasurando os limites de gêneros textuais, está discutido sub-repticiamente nesse texto, também, quais são os limites do épico e do lírico. Dal Farra constrói, por meio da poesia, a epopeia da berinjela em seu périplo por paisagens, culturas e mitologias, daí a “ridícula epopeia”, verso que, em destaque, finda a poesia 67.

A colcha de retalhos citacionais que está presente em Vergilianas vai estruturando o mecanismo que podemos denominar de “reciclagem de textos lidos”. Utilizando tal terminologia, trazemos as ideias de Walter Moser (2012), que considera o processo de apropriações, usos e leituras, feitos para a construção de outros textos por um poeta ou um escritor, na contemporaneidade, como um mecanismo de reciclagem cultural. Segundo o autor, “[...] todo o passado da arte torna-se um repertório de formas, encontrado em uma reserva (depósito) de objetos disponíveis que podem ser utilizados livremente [...]”. (MOSER, 2012, p. 8). A reciclagem cultural é a experiência de tomar posse de objetos culturais variados e usá-los de acordo com a necessidade apresentada na escrita ficcional68. Deslocam-se, assim, conceitos como propriedade e autoria, os quais passam a ser pensados de outro modo, como

67

Apesar do intento ficcional de elaborar uma epopeia para figurar os percursos da berinjela em suas travessias por mares e terras, a escritora tem consciência, concretamente, da impossibilidade de tal objetivo, no Livro de Possuídos. Por isso, humoradamente ironiza essa tentativa, o que podemos confirmar através do verso que finaliza o poema, a saber: “ridícula epopeia”.

68 As ideias de Walter Moser recuam aos postulados de Hegel acerca da arte pós-romântica: “Hegel prevê uma atividade artística separada de toda ancoragem histórica, cultural e política [...] ‘e a representação se torna um jogo com os objetos, uma deformação e uma reversão dos sujeitos’ ”. Hegel prevê de modo preocupado o processo das apropriações de leituras e escritos do passado. Outro teórico que se mostrava incomodado com esse mesmo processo era, segundo Moser, Fredric Jameson, que preferiu chamar tal procedimento contemporâneo de pastiche, preservando, portanto, a paródia do seu espaço temporal e terminológico da modernidade. É fundamentado nesse composto de referências abaladas com os “revives” da contemporaneidade que Moser instaura a sua concepção para o momento artístico e cultural da pós- modernidade como pautado por reciclagens culturais. Período que não se restringe aos pressupostos da arte literária, mas a todas de modo geral.

“[...] reutilização, reescritura, reinvenção, revamping, remake, revival [grifos do autor] [...]”. (MOSER, 2012, p. 10), tornando lícito o ato de rapinar obras de arte para a construção de novos textos literários.

No entanto, apesar desse processo de retomada de objetos de cultura, isso não significa que eles retornem idênticos às suas matrizes. A retomada é movida pelo princípio da inovação, haja vista que, a cada momento histórico em que acontece a reapropriação, ela sempre incorpora novos elementos, agregando sentidos novos para o texto. Moser complementa que “[...] os valores ressuscitados são fluidos, instáveis, submissos às mesmas flutuações da moda ou do capital na bolsa. Desse modo a reabilitação das antigas fronteiras [...] não terá jamais o mesmo sentido [...]”. (MOSER, 2012, p. 5). Acontecendo dessa maneira, o texto será concebido como uma máquina de ressignificação dos textos da tradição literária: maquinaria transformadora e que sempre agrega novos pressupostos a cada releitura.

Pensando por essa esteira conceitual, Maria Lúcia Dal Farra procede em seus poemas pautada pelas condicionantes da reciclagem cultural. Arguta leitora da tradição literária, usa tais referências embutidas na sua produção ficcional e, com isso, faz implodir “[...] a retomada reciclante conferindo autoridade e dignidade a uma prática e as situações onde uma manipulação muito similar das pré-existências culturais dão lugar à sua banalização [...]”. (MOSER, 2012, p. 16). Procedendo assim, a reciclagem cultural pode ser percebida também nos contornos do poema Maçã.

A maçã na mesa: pomo da discórdia.69 Abuso da minha inteligência

porque quero conhecê-la com dentes, escavá-la até a longínqua estrela. Saliva a saliva

procurar-lhe nomes,

no afunilado umbigo aprofundar a língua70. A presença hierática pede respeito

mas profano-a:

Quero escolher entre ser boa ou má,

69 Remete-nos à Guerra de Troia e à concorrência entre as três deusas: Hera, Palas Atena e Afrodite pelo troféu da beleza.

70

Podemos perceber nesta estrofe o diálogo estabelecido com o poema A maçã, de Manuel Bandeira. A fruta presente neste poema é descrita pelo poeta como disposta em uma mesa de hotel, acompanhada somente de um talher. (BANDEIRA, 2011). Destaca-se, no poema bandeiriano, a plasticidade na descrição da fruta: sua forma abaulada, sua cor rubra e a cavidade do talo. Salientamos que o poeta e Dal Farra denominam essa mesma cavidade de umbigo, denunciando os trânsitos interdiscursivos presentes na lírica de Maria Lúcia Dal Farra.

quebrar a dormência – que não para bela adormecida fui nascida!71 Ouso, caio,

começo de novo o mundo,

exilo da fruta o sabor do amor celeste – sou (por fim) mortal.

Já agora quero a brilhante, a vermelha, a do poente e nem Ládon (o dragão) ma impede,

neste jardim de Efemérides –

se não é do pomo d’ouro que me socorro! 72 Debaixo da macieira73

(ah dourada mediocridade!) a sombra saboreio da vida ufana. Não aguardo, com Arthur, que os cavaleiros me livrem do jugo estranho, e nem vou (a pé com Merlim)

aprender mágica no pomar.74

Quero conhecer o mal e suas ramas! (DAL FARRA, 2002, p.63)

As leituras sobre a maçã e seus desdobramentos ao longo do curso da história (como permeou narrativas, mitos e civilizações) é a proposta constante do poema. A fruta é percebida pelo sujeito poético através da experimentação sensorial: pelo saboreio e pelo toque. Acontecendo desse modo, o reconhecimento pode somente se estabelecer por meio da relação corpórea, pois a cada ato invasivo de gustação é que se compreendem as potencialidades que essa fruta pode conceder enquanto objeto sujeito à leitura e à interpretação.

71 Os versos finais da estrofe remetem à história do conto de fadas Branca de Neve. Na trama, a princesa, ao comer uma maça que fora envenenada por uma bruxa, permanece por um longo tempo sob o jugo do feitiço, em estado de dormência. Ela só é acordada muito tempo depois por um beijo dado pelo príncipe. No poema, o eu lírico se nega a ter a sorte malograda da princesa do conto de fadas, desafiando limites, dotando-se de