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O Português Arcaico: sobre a periodização e a caracterização deste período

1 Os advérbios em –mente na história do Português

2 Corpus: considerações sobre as Cantigas Medievais e sobre o Corpus do Português

2.1 O Português Arcaico: sobre a periodização e a caracterização deste período

De acordo com grande parte dos estudiosos da história da Língua Portuguesa, o Português Arcaico (PA) é um período compreendido entre os séculos XIII e XV, e todos são unânimes em dizer que seu marco inicial foi o surgimento da língua documentada pela escrita, como podemos observar na citação a seguir, de Mattos e Silva (2006, p.21-22): “Marcam o nascimento do português arcaico, ou seja, o início da história escrita da língua portuguesa o

Testamento de Afonso II, datado, indiscutivelmente, de 1214, e a Notícia do Torto que hoje se

considera que foi escrita entre 1214-1216”.

Outros documentos desta época são a Cantiga da Ribeirinha (cantiga de amigo) e a

Cantiga de Garvaia (cantiga de amor), datadas do início do século XIII. Com relação à

datação das primeiras cantigas medievais, Mattos e Silva (2006, p.22) afirma que: “Entre os fins do século XII e XIII, as cantigas circulavam na tradição oral e, pode-se admitir, em folhas

escritas soltas com poemas de um poeta ou mesmo em ‘livros’ de poemas com o conjunto de sua produção”.

Por outro lado, Michaëlis de Vasconcelos (1946, p. 14) afirma que os documentos escritos em português eram raros no século XII. Segundo ela, foi só a partir da segunda metade do século XIII (1250 em diante) que tais documentos surgiram com maior frequência.

Embora se perceba certa discrepância entre os autores para a definição do primeiro documento escrito em língua portuguesa, verifica-se que o início do registro do período arcaico do português costuma ser demarcado por meio dos primeiros documentos em língua portuguesa. Tal afirmação não é útil para delimitar seu fim, embora seja costume considerar o século XV como data limite para o término desse período.

Sobre o limite temporal da fase arcaica do português, Mattos e Silva (2006, p.22) afirma que este não se dá com acontecimentos linguísticos, uma vez que o fato de a língua estar em transição dificulta o estabelecimento de “uma cronologia relativa para o desaparecimento de características linguísticas que configuram o português antigo em oposição ao moderno” (MATTOS E SILVA, 2006, p.22). Sendo assim, são os fatos extralinguísticos que demarcam o final deste período:

são acontecimentos extralinguísticos que são tomados como balizas para marcar o fim do período arcaico, tais como: o surgimento do livro impresso, em substituição aos manuscritos medievais, nos fins do século XV, e suas consequências culturais; o incremento da expansão imperialista portuguesa no mundo, que se refletiu na sociedade portuguesa européia pelo contato com as novas culturas e novas línguas [...]; o delineamento de uma normatização gramatical, a partir de 1536, com a gramática de Fernão de Oliveira [...]. (MATTOS E SILVA, 2006, p.22)

Tomando como base a citação acima, percebe-se que os fatos nela descritos provavelmente favoreceram mudanças linguísticas, que eliminaram características do PA, originando um novo período da língua portuguesa: o português moderno. Contrariando esta ideia, Messner (2002) afirma que não é adequado se embasar em fatos extralinguísticos para a tentativa de delimitação de um período de uma língua. Para ele, deve-se observar se as pistas

linguísticas nos fornecem informações que permitam afirmar quando o PA passou a ser português moderno.35

Outra questão muito discutida a respeito do PA está relacionada à sua subperiodização, uma vez que, segundo Mattos e Silva (2006, p.23), o critério para essa subperiodização envolve tanto aspectos da produção literária medieval portuguesa (quadro 2 abaixo) quanto aspectos da possível diferenciação dialetal entre a unidade galego-portuguesa (em um primeiro período, compreendido até 1350) e entre o galego e o português, separadamente. Vejamos o quadro a seguir:

Quadro 2- Subperiodização do PA

Fonte: Mattos e Silva (2006, p.23).

A partir do quadro acima, percebe-se que Silva Neto (1952) divide o PA em período trovadoresco e período do português comum. Já Pilar V.Cuesta (1949), em sua Gramática

Portuguesa, adota como critério a diferenciação dialetal e afirma haver um período em que o

galego e o português eram uma única língua e outro em que o português se diferencia do galego, denominado português pré-clássico.

Opinião semelhante à de Pilar V. Cuesta é encontrada também em outros pesquisadores do período arcaico. Dentre eles podemos citar Mattos e Silva (2006) e Massini- Cagliari (2007b). A primeira afirma que o galego e o português “na sua origem, constituíam uma mesma área linguística em oposição a outras áreas ibero-românicas” (MATTOS E

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Esta pesquisa não pretende discutir esta questão, uma vez que seu foco é apenas realizar a periodização do PA como forma de localizar o leitor dentro do período que compreende este estudo e mostrar que alguns aspectos históricos podem ter influenciado a composição das cantigas utilizadas como corpus.

SILVA, 2006, p.23). Massini-Cagliari (2007b, p.122), em seu trabalho Legitimidade e

Identidade: da pertinência da consideração das Cantigas de Santa Maria de Afonso X como corpus da diacronia do Português, demonstra que o galego e o português não são línguas

diferentes, mas sim “uma e a mesma língua”, no que concerne a alguns aspectos prosódicos, como acento, constituição silábica e processos de sândi. A autora, a partir da comparação entre as cantigas profanas (provenientes de Portugal) e as religiosas (provenientes possivelmente da Galiza), ressalta que essas duas vertentes são muito próximas em relação aos elementos prosódicos e que “as distinções linguísticas [...] não são de tipologia dos fenômenos, mas de frequência. Não havendo distinções tipológicas, não há diferença de sistema” (MASSINI-CAGLIARI, 2007b, p.122).

Nunes (1973[1926/1929), p.155, grifo nosso) também apresenta a opinião de que o galego e o português eram uma única língua:

as duas falas [galego e português] continuaram essencialmente uma só durante algum tempo, até que o desenvolvimento literário da parte de cá,

em contra posição com a decadência cultural de lá, as foi a pouco e pouco diferençando; emquanto a de cá evolucionou, dando o português, a de lá estacionou36, mantendo-se ainda hoje, com alterações pouco sensíveis [...].

A respeito ainda do período sobre o qual trata este estudo (PA), é possível destacar mais um aspecto relevante para sua caracterização - os grupos linguísticos que povoavam a Península Ibérica. Segundo Silva Neto (1952, p.365), no decorrer da Idade Média, período no qual esse estudo está focalizado (século XIII), a Península Ibérica era constituída por três grupos linguísticos: românico (do qual faziam parte o português, o galego), o castelhano (constituído do espanhol) e o valenciano (catalão). Torna-se evidente que a coexistência de vários grupos linguísticos em um mesmo território permitiu que um influenciasse o outro, uma vez que “todo individuo [...] modifica sua língua em convivência com uma série de outros indivíduos” (SILVA NETO, 1952, p.366).

Em outras palavras, a interação de indivíduos dos diversos grupos linguísticos daquele período (PA) pode ter influenciado na formação de cada uma das línguas desses grupos. No

corpus das cantigas religiosas foi constatada uma possível influência do grupo castelhano, por

36 Ressalta-se aqui que a visão filológica oitocentista de Nunes (1973[1926/1929]), que acredita que uma língua

possa “estacionar” no tempo, sem apresentar mudança, não se mostra muito adequada atualmente, devido aos conhecimentos advindos dos estudos sobre variação e mudança linguísticas a partir de Saussure, mas sobretudo a partir de Labov.

meio do mapeamento de uma ocorrência da palavra “solamente”. Segundo Lapa (1998[1965], p.13), a influência do castelhano nas cantigas medievais pode ser considerada de forma esporádica, uma vez que:

Presumir influência castelhana na linguagem dêsses cantares velhos é supor uma grave injustiça: que no galego-português antigo havia escassos recursos de expressão, precisando de pedir emprestado; e é um erro se a atribuirmos a uma moda, pois que, se moda houve, foi precisamente ao contrário: os castelhanos, até o povo miúdo, adotaram a língua e o lirismo galego- português, não parecendo ter tido outro.

Sendo assim, infere-se que aspectos de caráter histórico, como o povoamento da região ibérica no período medieval, poderiam ter influenciado na composição das cantigas trovadorescas, quer de forma mais esporádica quer de forma menos esporádica.

Outro aspecto relevante para a caracterização do PA está relacionado ao tipo de escrita que é encontrado nos documentos deste período, sobretudo à escrita das Cantigas Medievais (corpus desta tese que será melhor detalhado um pouco mais adiante nesta seção).

Quando o assunto é a escrita do PA, a maioria dos filólogos é unânime em afirmar que tal escrita era fonética, como afirma Nunes (1960[1919], p.193):

Período fonético. Caracteriza este período a representação, pelas letras, dos sons que elas realmente representavam, consoante a evolução por eles sofrida, e a ausência, em geral, de caracteres não proferidos. Verdade seja que essa representação nem sempre acompanhou pari passu as alterações que se foram dando e por vezes conservou-se antiquada em relação ao desenvolvimento da língua.

No entanto, de acordo com Massini-Cagliari (1995, p. 33), torna-se um tanto inadequado pensarmos em uma escrita fonética para aquele período, pois este termo parece trazer junto a si uma acepção de “transcrição fiel dos sons da fala” (MASSINI-CAGLIARI, 1995, p.33). Segundo a autora, para que uma escrita seja puramente fonética ela precisa seguir o princípio acrofônico, ou seja, “as relações entre letras e sons seriam sempre as mesmas: a cada letra corresponderia um e somente um som e vice-versa” (MASSINI-CAGLIARI, 1995, p. 34).

O que se observa é que no período arcaico do português ocorria justamente o contrário, ou seja, constata-se a ocorrência de letras diferentes (acompanhadas ou não de diacríticos) sendo usadas para representar o mesmo som. Um bom exemplo disso encontramos na escrita dos próprios advérbios em –mente, como a palavra “primeyramente”,

que já no PA alternava com as grafias “prymeiramente” e “primeiramente” (grafia atual). Isso nos revela que a escrita da época não pode ser considerada puramente fonética (representação pelas letras dos sons), mas sim ortográfica37 (MASSINI-CAGLIARI,1998), uma vez que se a escrita fosse fonética uma letra representaria apenas um e único som e, sendo assim, em

prymeiramente teríamos <i> ou <y> e não a ocorrência dos dois.

Portanto, ainda que não houvesse uma padronização ortográfica na época da compilação das cantigas como há hoje em dia, as mudanças verificadas na forma de representação gráfica dessas palavras não são muitas, pois, de acordo com Massini-Cagliari (2013, p. 14, grifo nosso), desde o PA a representação do significado já estava relacionada

[...] conjuntamente com a representação da camada sonora da palavra. Por este motivo, a escrita da época compartilha com a atual características como a consideração da palavra como unidade da representação gráfica e a possibilidade de um mesmo grafema representar mais de um fonema e, inversamente, um mesmo fonema ser representado por diversos grafemas. A

diferença crucial entre a escrita dos cancioneiros e a atual escrita do português é a falta de unificação ortográfica, naquela época.

Entretanto, do ponto de vista da temática desta pesquisa, o fato mais importante a ser verificado quanto à variação ortográfica observada com relação aos dados do PA diz respeito a questões de segmentação, ou seja, ao fato de poderem, base e morfema –mente, serem grafados junta ou separadamente. Esta variação será considerada de forma mais aprofundada na seção 5.

Para finalizar esta subseção, apresentamos a seguir um quadro que mostra o conjunto de autores da lírica profana galego-portuguesa.

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O termo “ortográfica” refere-se aqui à tipologia da escrita(Massini-Cagliari, 1999b, p. 30-31) e não à fixação de uma única forma gráfica para cada palavra, fato este que ainda não ocorria naquela época.

Quadro 3- Cantigas Medievais e seus autores

Observando o quadro 3, extraído de Oliveira (1994, p.295), e, de acordo com Massini- Cagliari (2007a), o conjunto da lírica profana galego-portuguesa soma cerca de 160 autores, com mais de 1700 composições divididas entre cantigas de amor, de amigo e de escárnio e maldizer. Tal produção ocorreu desde o final do século XII até meados do século XIV.

Nas subseções que se seguem apresentam-se com mais detalhes características relacionadas à origem, à organização, à estrutura e à temática dessas cantigas.