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1. INTRODUÇÃO À CRÍTICA DA FACULDADE DO JUÍZO

1.7. O princípio de conformidade a fins como um princípio transcendental da faculdade

Como vimos anteriormente, segundo o princípio de unidade, que é extraído da busca por leis pela faculdade do juízo reflexiva, a natureza é julgada como adequada à faculdade do juízo: a faculdade do juízo pressupõe uma analogia entre natureza e faculdade de conhecimento. Desse modo, fica garantida a noção de sistema de leis empíricas. O princípio que a terceira Crítica vai encontrar para a sistematização da natureza é o de conformidade a fins.

No tópico intitulado “O princípio da conformidade a fins formal da natureza é um princípio transcendental da faculdade do juízo” (AA V 181), Kant acrescenta ao princípio da unidade a noção de conformidade a fins: a natureza produz suas formas de acordo com um sistema de leis empíricas e segundo uma finalidade. Como se a natureza, ao produzir objetos organizados, tivesse em vista um fim ou, de outro modo, procedendo sob a forma do “como se” como condição de sua possibilidade, a natureza é pensada como se fosse dotada de intencionalidade – mesmo que para nós não seja possível descortinar se a natureza efetivamente se propõe fins e quais são esses fins. Percebemos na natureza uma ordem, uma interação entre particulares organizados organicamente como se tivessem em vista um fim.

O princípio de conformidade a fins da natureza é um princípio transcendental6

da faculdade de julgar reflexiva - e apenas dela, ou seja, não é um princípio da faculdade de juízo determinante, pois esta somente subsume leis que lhes são dadas pelo entendimento -, isso quer dizer que é um princípio que representa a priori a condição universal sob a qual é possível conhecer. A ligação entre o predicado e o conceito é compreendida totalmente a priori e nada possui de empírico.

O fato de o conceito de uma conformidade a fins da natureza pertencer a princípios transcendentais é bastante compreensível a partir das máximas da faculdade do juízo que são postas a priori como fundamento da investigação da natureza e que todavia a nada mais se reportam do que à possibilidade da experiência, por conseguinte do conhecimento da natureza, mas não simplesmente como natureza em geral e sim como natureza determinada por uma multiplicidade de leis particulares. (AA V 182).

6 Na segunda introdução à Crítica da faculdade do juízo, Kant diferencia os princípios transcendental e

metafísico: “Um princípio transcendental é aquele pelo qual é representada a priori a condição universal, sob a qual apenas as coisas podem ser objetos do nosso conhecimento em geral. Em contrapartida, um princípio chama-se metafísico, se representa a priori a condição, sob a qual somente os objetos, cujo conceito tem de ser dado.” (AA V 181).

37 A faculdade do juízo reflexiva pensa a natureza segundo um princípio de conformidade a fins, isto significa que a reflexão procede segundo uma forma que possibilita uma experiência conectada sob fins que precede o conhecimento do objeto. Sem pressupor a conformidade a fins, não seria possível organizar a natureza segundo um sistema de leis empíricas e nenhuma investigação das mesmas seria possível considerando toda sua multiplicidade: a diversidade das leis empíricas é tão imensa que o entendimento não conseguiria encontrar uma ordem suscetível de conhecimento.

Para progredir na experiência e obter conhecimento, a faculdade de julgar reflexiva tem um princípio a priori, que não é um princípio de conhecimento da natureza, mas um princípio unicamente subjetivo, pois não determina nada aos objetos da natureza, apenas tem função regulativa e dá regras para que eles possam ser pensados e, por isso, prescreve leis não à natureza mas a si mesmo. Kant denomina o princípio a priori da faculdade do juízo para a reflexão sobre a natureza de “especificação da natureza” (AA V 186): a noção de que a natureza especifica leis universais em formas diversas “segundo o princípio da conformidade a fins para a nossa faculdade de conhecimento” (AA V 186) (em gêneros e espécies de leis) e, por isso, ela seria favorável ao nosso conhecimento e adequada ao entendimento. Há uma concordância da conformidade a fins de um objeto com as nossas faculdades de conhecimento. Sem a atividade necessária de encontrar o universal para o particular e, por conseguinte, unidade para aquilo que é diverso de acordo com o princípio de conformidade a fins, não seria possível o conhecimento.

Esta concordância da natureza com a nossa faculdade de conhecimento é pressuposta a priori pela faculdade do juízo em favor da sua reflexão sobre a mesma, segundo as suas leis empíricas, na medida em que o entendimento a reconhece ao mesmo tempo como contingente, e a faculdade do juízo simplesmente a atribui à natureza como conformidade a fins transcendental (em relação à faculdade de conhecimento do sujeito). É que, sem pressupormos isso, não teríamos qualquer ordem da natureza segundo leis empíricas e por conseguinte nenhum fio condutor para uma experiência e uma investigação das mesmas que funcione com estas segundo toda a sua multiplicidade. (AA V 185)7.

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No artigo “Juízo e reflexão desde de um ponto de vista prático” (1995), Valério Rohden defende que os princípios de unidade e conformidade a fins do juízo reflexivo pressupõem a ideia do homem como um ser racional prático e, consequentemente, do homem como um fim para si mesmo. Isso significa que atribuir finalidade à natureza através do juízo reflexivo tem como “condição de possibilidade a concepção do homem” (ROHDEN, 1995, p. 50) como fim terminal. “Sem esta ideia, de ele ser próprio o seu fim e mais nenhum meio para um fim ulterior, a reflexão teleológica sobre a natureza não existiria. A concepção da conformidade a fins exterior, ou seja, a perspectiva da utilidade das coisas umas às outras como meios da vida, pressupõe um ser que é para si próprio fim da natureza. E o homem é um fim último

38 A faculdade do juízo pode fornecer distintos conceitos de conformidade a fins: a) como técnica da natureza para a faculdade de conhecimento, o que possibilita a adequação da natureza à classificação, unificação e sistematização de suas leis empíricas; b) a conformidade a fins como objetiva, que diz respeito a questões das teleologias da natureza e da moral e c) uma conformidade a fins estética, subjetiva, formal, adequada à formas da faculdade de julgar, na qual o fim não é estabelecido por um conceito, como veremos no tópico seguinte.

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