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O princípio da intervenção mínima no âmbito do Direito de Família

CAPÍTULO II – DIREITOS FUNDAMENTAIS E RELAÇÕES FAMILIARES

2.4 Eficácia dos direitos fundamentais entre particulares e autonomia privada

2.4.2 O princípio da intervenção mínima no âmbito do Direito de Família

Em sendo a família hodierna uma entidade democrática, aberta, plural, em que a promoção da dignidade dos seus membros é a sua principal missão, não há que se olvidar que a incidência da autonomia privada, no seu âmbito, deve ser uma regra geral, permitindo-se que cada indivíduo cultive e desenvolva uma relação afetiva da maneira que mais lhe interessar, conforme já abordado no tópico anterior.

Isso significa também, como regra geral, que o Estado não deve interferir no âmago familiar, devendo ser reservado espaço íntimo para que seus próprios componentes, por meio do afeto, busquem a felicidade própria, desenvolvam a sua personalidade, e, por consequência, fomentem a satisfação uns dos outros. Nesse sentido, relembre-se mais uma vez que a família, em seu contexto atual, por envolver relações afetivas, é muito mais uma entidade de fato do que uma instituição jurídica de monopólio do Estado, como outrora era tratada.

Assim, não pode o Estado pretender sufocar as relações familiares, devendo permitir o exercício da liberdade afetiva por parte dos seus membros. Há muito tempo a família deixou de constituir célula do Estado, sendo que atualmente a sua participação, como um elemento estranho, externo às relações afetivas, pode prejudicá-las, daí porque deve ser ao máximo evitada. Assim, “tendo a família se desligado de suas funções tradicionais, não faz sentido que ao Estado interesse regular deveres que restringem profundamente a liberdade, intimidade e a vida privada das pessoas, quando não repercutem no interesse geral”.154

Nesse mesmo sentir, Cristiano Chaves e Nelson Rosenvald:

Com isso, forçoso é reconhecer a suplantação definitiva da (indevida) participação do Estado no âmbito das relações familiares, deixando de ingerir sobre aspectos personalíssimos da vida privada, que, seguramente, dizem respeito somente à vontade do próprio titular, como expressão mais pura de sua dignidade [...].

A partir disso, percebe-se, sem embaraçamentos, que o Estado começa a se retirar de um espaço que sempre lhe foi estranho, afastando-se de uma

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ambientação que não lhe diz respeito (esperando-se que venha, em futuro próximo, a cuidar com mais vigor e competência das atividades que, realmente, precisam de sua direta e efetiva atuação). Foi vencido na guerra. E o vencedor (a pessoa humana, revigorada pelo reconhecimento, em sede constitucional, de sua fundamental privacidade, como expressão de sua dignidade) pode, agora, desenvolver amplamente os seus projetos existenciais e patrimoniais, como corolário de sua liberdade.155

Em idêntica linha de abordagem, discorre Paulo Lôbo:

O direito de família anterior era extremamente rígido e estático, não admitindo o exercício da liberdade de seus membros, que contrariasse o exclusivo modelo matrimonial e patriarcal. [...] Não havia liberdade para constituir entidade familiar, fora do matrimônio. Não havia liberdade para dissolver o matrimônio, quando as circunstâncias existenciais tornavam insuportáveis a vida em comum do casal. [...] As transformações desse paradigma ampliaram radicalmente o exercício da liberdade para todos os atores, substituindo o autoritarismo da família tradicional por um modelo que realiza com mais intensidade a democracia familiar. [...] Mas somente a Constituição de 1988 retirou definitivamente das sombras da exclusão e dos impedimentos legais as entidades não matrimoniais, os filhos legítimos, enfim, a liberdade de escolher o projeto de vida familiar, em maior espaço para exercício das escolhas afetivas. O princípio da liberdade, portanto, está visceralmente ligado ao da igualdade.156

Nesses termos, permitir o livre exercício do afeto a entidade familiar significa privilegiar os mais diversos direitos fundamentais dos cidadãos, verdadeiro objetivo não só da própria família, mas, em última instância, do Estado Democrático de Direito. Vivencia-se, portanto, um período de “privatização do Estado” e “desinstitucionalização da família”, o que implica o fenômeno de intervenção mínima do Estado no âmbito do Direito de Família.157

É justamente essa a concepção do princípio da intervenção mínima no âmbito do Direito de Família. Por ele se entende que a intervenção do Estado nas relações familiares só deve ocorrer excepcionalmente, em situações extrema, como ultima ratio, já que deve prevalecer a regra geral da liberdade dos membros da família.

Por força do reconhecimento do princípio em foco, identifica-se um Direito de Família no qual deve prevalecer, como regra geral, o exercício da autonomia privada dos componentes de uma família, pois somente dessa forma será possível efetivamente lhes garantir o implemento dos seus direitos fundamentais, o desenvolvimento da sua personalidade.

155

FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Direitos das famílias. 2 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 21-22.

156

LÔBO, Paulo Luiz Netto. Op. cit. p. 46-47. 157

Aproxima-se aqui, da tese defendida por Leonardo Barreto, qual seja, a ideia do “Direito de Família Mínimo”, em que a atuação do Estado, no âmbito das relações familiares, só poderia se efetivar quando a tutela promovida por outros instrumentos sociais não forem suficientes para tutelar os bens mais caros à sociedade.158

E no âmbito desse Direito de Família minimalista, qual seriam as hipóteses de intervenção do Estado nas relações familiares? Haveria algum critério a ser seguido? A resposta é oferecida pelo mencionado autor, para quem

Em verdade, o Estado somente deve interferir no âmbito familiar para efetivar a promoção dos direitos fundamentais dos seus membros – como a dignidade, a igualdade, a liberdade, a solidariedade, etc. –, e, contornando determinadas distorções, permitir o próprio exercício da autonomia privada dos mesmos, o desenvolvimento de sua personalidade e o alcance da felicidade pessoal de cada um deles, bem como a manutenção do núcleo afetivo. Em outras palavras, o Estado apenas deve utilizar-se do Direito de Família quando essa atividade implicar uma autêntica melhora na situação dos componentes da família.159

A ideia é, portanto, permitir que o indivíduo dirija o seu afeto a situações existenciais que lhe permitam alcançar realização pessoal plena, cabendo ao Estado, tão somente, o papel de viabilizar a garantia de direitos decorrentes dessa autonomia privada.

2.5 PONDERAÇÃO DE INTERESSES: O PRIMADO DA AFETIVIDADE EM