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CAPíTULO III – A POESIA DAS COISAS

3.1 O princípio das coisas

Na década de 40 do século XX, o poeta francês Francis Ponge partirá em defesa de uma poesia de retorno às coisas do mundo, tomando o real como referencial primeiro. Para o autor de Le Parti Pris de Choses, as coisas inanimadas e as coisas do mundo natural, em especial aquelas tidas como as mais insignificantes ou cotidianas, exigiam uma voz que só uma poesia objetiva, sem excessos, poderia oferecer. De Lição de Coisas (1964), de Carlos Drummond de Andrade, a Livro de Pré-Coisas (1985), de Manoel de Barros, passando por Coisa

Amar (Coisas do Mar) (1976), do poeta português Manuel Alegre, a lição de deixar

com que falem as coisas parece ter sido tomada como diretriz por alguns escritores do século XX. Para esses a poesia significará um exercício de lucidez e de compreensão do significado de estar-no-mundo. Coisas e realidade surgem, assim, como ponteiros da bússola dessa poesia, seja explicitamente como nos títulos supracitados, seja de maneira mais implícita como na poesia de João Cabral de Melo Neto e seu Museu de Tudo (1966-1974), só para citar um exemplo.

Ora, uma poesia que advoga o retorno ao mundo da percepção será em essência uma poesia do olhar, da atenção minuciosa ao objeto, não para simplesmente copiá-lo ou duplicá-lo como a um eidola (simulacro), mas, sobretudo, para manipulá-lo, transformá-lo, reinventá-lo bem como à realidade na qual está imerso. Assim, ver, conhecer e ter se agregam num mesmo ato, que pode ser o ato poético ou o ato filosófico, posto que não é estranho o cruzamento dos dois ao longo da história. Nesse encontro, o olho do poeta observador das coisas e do real não realizará uma passagem do mundo físico para o mundo metafísico como nos platônicos, por exemplo. Pelo contrário, sua pretensão será justamente presentificar num grau máximo o mundo sensível, demonstrar que o mundo da poesia é que concretiza o mundo das coisas; assim a linguagem é a construtora primeira do real.

Alfredo Bosi (1997) afirma que a matéria-prima da visão é a imagem e, desenhando uma árvore dos sentidos semânticos de palavras ligadas ao verbo olhar demonstra que é pela mirada que o ser humano acolhe, guarda, captura, reconhece, corporifica aquilo que vê, ou seja, o mundo ao seu redor. A relação entre a poética das coisas e o ato de ver/enxergar rendeu trabalhos como as “Artes Poéticas”, série de poemas em prosa de Sophia de Mello, em que o olhar atento para o mundo sensível surge como motor da poesia. Em “Arte Poética I”, a autora demonstra a importância dessa ação para a arte, sobretudo para a arte da linguagem. Olhar será a ponte de ligação entre o mundo das coisas, o mundo da verdade e o ser humano, aliança fragilizada pela contemporaneidade e que só a arte e a poesia podem restaurar, já que, para a autora, estas são as portadoras da verdade por excelência. Nesse sentido, o ato de olhar será sagrado, pois possui a função religiosa (do latim

religare, ligar novamente) de trazer ao homem a sua essência perdida ou esquecida,

que é a da beleza estética e poética:

[...] Entro na loja de barros [...] Há duas espécies de barro: barro cor-de- rosa pálido e barro vermelho-escuro. Barro que desde tempos imemoriais os homens aprenderam a modelar numa medida humana [...] Olho as ânforas de barro pálido poisadas em minha frente no chão. Talvez a arte desse tempo em que vivo me tenha ensinado a olhá-las melhor. Talvez a arte desse tempo tenha sido uma arte de ascese que serviu para limpar o olhar [...] Olho para a ânfora: quando a encher de água ela me dará de beber. Mas já agora ela me dá de beber. Paz e alegria, deslumbramento de estar no mundo, religação (ANDRESEN, 2004. p.187)

Para Cabral, quem escreve o poema é o olho crítico que tem por método a conquista do objeto milímetro por milímetro e que reserva da realidade geral o que é do seu interesse para, mais tarde, reelaborar em forma de poesia. Em Serial (1959- 1961) e em Agrestes (1981-1985), na seção intitulada “Linguagens Alheias”, o poeta destaca o uso das coisas como objeto de poesia no trabalho de escritores como Denton Welch, George Crabbe e Marianne Moore, esta última tema recorrente da poesia cabralina. É no poema intitulado “Dúvidas Apócrifas de Mariane Moore”, que Cabral expõe a relação entre o sujeito e o objeto dessa poesia:

Sempre evitei falar de mim, falar-me. Quis falar de coisas.

Mas na seleção dessas coisas não haverá um falar de mim?

Não haverá nesse pudor de falar-me uma confissão, uma indireta confissão,

pelo avesso, e sempre impudor?

A coisa de que se falar

até onde está pura ou impura? ou sempre se impõe, mesmo impura- mente, a quem dela quer falar?

Como saber, se há tanta coisa de que falar ou não falar? e se evitá-la, o não falar é forma de falar de coisas?

Merleau-Ponty (1999) estabelece uma relação dialética entre o homem e o mundo sensível: o homem está inserido no mundo e só pode ser conhecido por meio dele com sua história, sua temporalidade, seu ambiente cultural. Para ele, o corpo é uma província do mundo que, no entanto, dele se retira para, entre o puro sujeito e o objeto se constituir como um terceiro gênero de ser. O autor afirma que só existem dois modos de ser: o ser em si, que é aquele dos objetos estendidos no espaço, e o

ser para si, que é aquele da consciência. Essa inerência entre o mundo das coisas e

o sujeito é a que se explicita no questionamento que o sujeito lírico faz em “Dúvidas Apócrifas de Mariane Moore”. Falar das coisas é, portanto, falar de si, é voltar o olhar para sua própria subjetividade sem que, no entanto, isso signifique resvalar para o confessionalismo.

Tais considerações servem de apoio para o início de nosso itinerário. Nesse capítulo, foram escolhidos um poema de cada autor para o empreendimento de uma leitura aproximativa. Os poemas que indicarão este trajeto são “Uma Faca só Lâmina ou Serventia das Idéias Fixas” (1955), de Cabral, e “No Poema”10 (1962), de

Sophia de Mello.

10

Há um poema homônimo a esse no livro Mar Novo (1958) que diz: “No poema ficou o fogo mais secreto/ o imenso fogo devorador das coisas/ que esteve sempre muito longe e muito perto”.