• Nenhum resultado encontrado

O Princípio de Coerência

No documento Interpretação Radical em Donald Davidson (páginas 33-57)

2. Interpretação Radical

2.4 O(s) Princípio(s) de Caridade

2.4.1 O Princípio de Coerência

Uma das condições necessárias para o sucesso da interpretação radical é que o intérprete atribua ao interpretado racionalidade quanto baste para que erros possam ser detetados. Mas esta racionalidade não é subjetiva.

Aquilo que depende de nós é a aplicação das nossas próprias normas [de

racionalidade], já que não podemos verificar se as nossas normas são as mesmas que as das outras pessoas, até que encontremos uma adequação razoável entre as delas e as nossas.91

Um das formas de entender a racionalidade, como já vimos, é que qualquer agente racional — e por conseguinte qualquer agente capaz de ser intérprete e que seja interpretável — tenha um conjunto de atitudes proposicionais coerente.

As crenças são identificadas somente num padrão denso de crenças. […] Se eu

suponho que alguém acredita que uma nuvem está a passar à frente do Sol, eu suponho que alguém possui o padrão certo de crenças para suportar essa crença, e que estas crenças que eu assumo que alguém tem devem, para fazer o seu trabalho de suporte, ser suficientemente como as minhas crenças para justificar a minha descrição das crenças de alguém como a crença de que uma nuvem está a passar à frente do Sol. Se eu estou certo em atribuir esta crença a alguém, então esse alguém deve ter um padrão de crenças muito semelhante ao meu. Não admira, então, que eu possa interpretar as crenças de

alguém somente se o interpretar de forma a colocar-nos em larga medida de acordo.92 Embora a coerência desse conjunto de atitudes proposicionais não garanta a verdade de todas as crenças, garante pelo menos que a maiorias dessas crenças são verdadeiras. Uma forma de esquematizar o argumento em causa é a seguinte:93

1. Pensamentos com conteúdo proposicional têm propriedades lógicas (são implicados e implicam outros pensamentos).

91 Davidson, 1999d, 460. (Itálico meu)

92 Davidson, 1977a, 200. (Itálico meu. Ao traduzir a citação mudei o texto da segunda para a terceira pessoa do singular, de forma a que fizesse sentido em português.)

2. Se as relações lógicas de um pensamento o identificam (parcialmente) como o pensamento que é, então os pensamentos não podem ser totalmente incoerentes. Se fosse esse o caso, não conseguiríamos identificar nenhum pensamento.

3. Logo, se um intérprete pretende compreender o pensamento de alguém, então deve encontrar (no pensamento do interpretado) um grau suficiente de coerência.

4. Se o intérprete não encontra racionalidade suficiente no pensamento de um interpretado, a interpretação não pode ter sucesso.

5. Logo, o princípio de coerência é necessário para a interpretação de qualquer agente. Como escreve Davidson, “acordo não produz verdade, mas muito daquilo que é acordado

deve ser verdadeiro se algo do que é acordado é falso.”94

2.4.2 O Princípio de Correspondência

Uma das teses de Davidson em relação ao conhecimento do mundo exterior é de que este tipo de conhecimento depende, de uma forma crucial, dos objetos e eventos no mundo que causam o conteúdo das crenças proposicionais dos agentes e também da história da formação dessas crenças.95

O nosso conhecimento do mundo depende direta ou indiretamente de sequências causais elaboradas e arriscadas que são originadas por eventos […], progridem através do sistema nervoso, e terminam em crenças.96

A importância disto para a interpretação radical é que, assumindo que todos os agentes partilham um mundo comum que existe independentemente das mentes dos agentes, é plausível afirmar que vários agentes reagirão de forma semelhante a eventos e objetos nesse mundo. Davidson vai até ao ponto de afirmar que o sucesso na comunicação interpessoal demonstra essa proposição:

comunicação bem sucedida prova a existência de uma partilhada, e em larga medida verdadeira, imagem do mundo.97

94 Davidson, 1977a, 200. (Itálico meu) Cf. também Davidson, 1983; Davidson, 1991. 95 Cf. Davidson, 1983; Davidson, 1990; Davidson, 1991. Cf. também seção 2.5. 96 Davidson, 1990b, 47.

Deste ponto de vista, a própria “perceção é proposicional: quando olhamos ou sentimos ou ouvimos acreditamos.”98

O propósito destas afirmações não é excluir a priori a possibilidade de os agentes estarem errados (nem mesmo se estiverem completamente de acordo entre si). Mas apenas assumir que agentes diferentes reagem de modo similar a objetos e eventos no mundo e é isto que permite começar a fazer sentido dos desacordos. Assim, quando a reação que o intérprete espera, dado um estímulo qualquer não é a reação esperada, ou os agentes estão a reagir a estímulos diferentes, ou as teorias de interpretação devem ser revistas para acomodar as diferenças e confirmar a teoria de interpretação.

Também quando uma criança aprende um língua, aprende a reagir da forma que os seus interlocutores (que já dominam a língua à qual a criança está a ser iniciada) esperam dados os estímulos comuns, i.e., os objetos e eventos salientes que ocorrem na proximidade de ambos. A criança é recompensada, consoante a sua reação ao que se passa à sua volta está, ou não, de acordo com os critérios do interlocutor (no caso de uma criança a aprender uma primeira língua). Claro que este cenário só se aplica no início e às frases mais simples de uma linguagem. À medida que o domínio da língua vai aumentando, a criança usa frases cada vez mais distantes destas frases mais simples que começou por aprender, embora as frases que ligam o que é dito ao mundo sejam ainda as frases iniciais mais simples.99 O essencial desta

ideia é expressa noutros ensaios:

enquanto aderirmos à intuição básica de que nos casos mais simples [as] palavras e [os] pensamentos se referem àquilo que os causa, é claro que não pode ser o caso de que a maioria das nossas crenças é falsa. […] Nos casos mais básicos, a aplicação determina

o conteúdo de um conceito.100 Ou ainda,

[o] conhecimento das circunstâncias em que alguém toma uma frase por verdadeira é central para a interpretação.101

Um argumento que procura sustentar esta ideia pode ser formulado do seguinte modo:102

1. O modo como aprendemos frases que descrevem o conteúdo empírico das nossas perceções — i.e., o modo como aprendemos com outros a reagir de formas

semelhantes a objetos e evento salientes no nosso meio — garante que essas frases

98 Davidson, 1999c, 732. Cf. também Davidson, 1997c. 99 Cf. Davidson, 1999b.

100 Davidson, 1990, 196. (Itálico meu) 101 Davidson, 1975, 162.

têm uma relação com o mundo (já que crenças acerca de algo são, tipicamente, causadas por esse algo).

2. Se essas frases estão estreitamente ligadas com o mundo, é pouco plausível que sejam falsas (o conteúdos das atitudes expressas por essas frases envolvem os objetos que as causam).

3. Outras frases não ligadas diretamente à perceção devem ainda o seu conteúdo às primeiras (através de relações lógicas), pelo que não podem também ser falsas (sob pena de incoerência).

4. Logo, ainda que não seja plausível dizer de todas as nossas crenças que correspondem aos objetos e eventos do mundo, é plausível dizê-lo de algumas.

As passagens anteriores sugerem que Davidson subscreve uma forma de externalismo físico,103 tal que as crenças dos agentes — pelo menos as crenças mais básicas — têm, como

foi dito atrás uma ligação direta com o evento ou objeto que as causou. A ideia é ainda mais explícita na citação que se segue:

[s]e o externalismo é verdadeiro, não pode haver dúvidas de como o conhecimento do mundo exterior é possível. Se é constitutivo de alguns pensamentos que o seu conteúdo

é determinado pelas suas causas normais, então o conhecimento dos eventos e

situações causadoras não pode requerer que o pensador estabeleça independentemente a existência de um mundo exterior que causa esses pensamentos. Claro que o

externalismo não demonstra que juízos percetivos particulares, até do tipo mais simples, não possam estar errados. Aquilo que demonstra é que não pode acontecer que a maioria desses juízos esteja errada, pois o conteúdo dos juízos erróneos deve basear-se no conteúdo dos corretos.104

Mas não deve ser esquecido que tal não é suficiente para a justificação dessas crenças. Esta só pode surgir da coerência entre as crenças. E de forma indireta Davidson pretende que essa justificação é suficiente para afirmar que os agentes não podem estar maciçamente errados acerca do mundo. As relações de coerência lógica permitem justificar as crenças de um agente. Se não é possível ter um conceito, sem o relacionar com muitos outros que lhe confiram conteúdo, então um agente está justificado em ter a maioria das crenças que tem. A justificação de uma crença acaba por envolver sempre uma ligação com o mundo porque é esta ligação que torna a crença aquilo que ela é — direta ou indiretamente, por relação lógica com outras crenças que têm uma ligação direta com o mundo. Logo, basta que qualquer agente racional tenha crenças justificadas para que tenha uma imagem largamente correta do

103 Embora tenha denominado o externalismo de Davidson como externalismo físico, o autor parece defender que o externalismo tem também uma componente histórica e social. Cf. Davidson, 1987.

mundo. Se o intérprete está a priori certo acerca do mundo que os rodeia, resta somente criar uma forma de comparar os conteúdos das suas crenças de forma a criar acordo entre eles, i.e., uma forma de interpretar radicalmente.

A comparação de crenças coerentes de vários agentes é, ainda assim, insuficiente para determinar qual o conteúdo das suas crenças. Para tal Davidson socorrer-se-á da noção de triangulação, apresentada na secção seguinte.

2.5 Triangulação e Objetividade

Os princípios de caridade permitem comunicação entre diferentes agentes — procurando padrões de racionalidade nas outras mentes, ao mesmo tempo que comparam as reações mútuas aos eventos e objetos nas suas proximidades. Este tipo de interação parece demonstrar que há uma componente essencialmente social no pensamento de qualquer agente (a juntar à componente racional e física). No entanto há uma pergunta que fica por responder: “como determinar que dois ou mais agentes estão a reagir ao mesmo estímulo?” A resposta de Davidson passa pela defesa de que o conceito de triangulação é necessário para determinar qual é o conteúdo de uma atitude proposicional.105

Davidson descreve a interação entre dois ou mais agentes como uma forma de triangulação: uma situação em que dois falantes estão em comunicação entre si, podendo comparar as reações mútuas relativamente a objetos exteriores a ambos de forma a fixarem o conteúdo das suas atitudes proposicionais. “Sem este triângulo, existem dois aspetos do pensamento que não conseguimos explicar (…) objetividade do pensamento e (…) conteúdo empírico.”106 De facto, Davidson defende que

não poderiam existir pensamentos numa mente se não existissem outras criaturas capazes de pensamento com as quais a primeira mente partilha um mundo natural.107

Um agente amarrado ao chão impossibilitado de se mexer, não teria forma de interagir com o mundo a partir de diferentes perspetivas, de tomar novos pontos de vista, condição fundamental para que haja pensamento.108 A triangulação permite a cada agente comparar a

sua reação com a reação de outros agentes ao mesmo tempo que fixa o evento ou objeto que

105 Cf. Davidson, 1982; Davidson, 1986; Davidson, 1988b; Davidson, 1991; Davidson, 1997a. 106 Davidson, 1997a, 129.

107 Davidson, 1988b, 193.

está a provocar a reação que todos observam nos outros. “A minha tese” escreve Davidson109

“é que este compromisso é essencial tanto para a linguagem como para o pensamento proposicional.”

A identificação dos objetos de pensamento funda-se, então, numa base social. Sem uma

criatura a observar outra, a triangulação que localiza os objetos relevantes num espaço público não poderia ter lugar.110

Num ensaio anterior já tinha escrito:

o tipo de triangulação que eu descrevi, embora obviamente não seja suficiente para

estabelecer que uma criatura possui o conceito de um objeto particular ou tipo de objeto, é necessário para haver resposta de todo à questão acerca de que conceitos os seus

conceitos são.111

A comparação da posição de um agente com a posição de outros agentes permite ao primeiro começar a identificar o estímulo que está a causar a sua reação e a de outros.

A interpretação de qualquer frase depende do seu posicionamento numa rede de outras frases. Mas a rede deve estar ligada ao mundo através do tipo de triangulação que é fundamental para a interpretação radical.112

A natureza causal de tal relação com o mundo não garante só por si a individuação de um só facto ou objeto que esteja a causar a crença do agente. O que Davidson defende é que este cenário permite fixar os estímulos que causam as crenças dos agentes não na mente destes ou nos seus órgão percetivos, mas sim nos objetos e eventos exteriores a eles e aos quais reagem de formas variadas.

[A]quilo que determina os conteúdos dos nossos pensamentos e elocuções não está confinado aquilo que está dentro da pele. Os nossos pensamentos não criam o mundo

nem simplesmente o representam [picture it]; estão ligados às suas fontes exteriores desde o início, sendo essas fontes a comunidade e o ambiente que sabemos que ocupamos conjuntamente.113

Davidson defende que a triangulação é uma condição necessária para a formação de crenças, ao permitir definir o seu conteúdo: o vértice do triângulo (formado pelos dois agentes) onde está localizado o estímulo periférico, i.e., o evento ou objeto que dá conteúdo à crença.114

Ainda assim, afirma que a triangulação não é suficiente para determinar o conteúdo exato

109 Davidson, 1999c, 731.

110 Davidson, 1990a, 202. (Itálico meu) Cf. também Davidson, 1997a. 111 Davidson, 1988b, 198. (Itálico meu)

112 Davidson, 1999d, 460.

113 Davidson, 1999c, 732. (Itálico meu) Cf. também Davidson, 1988b; Davidson, 1991. 114 Cf. Davidson, 1988b, Davidson, 1992; Davidson, 1990b; Davidson, 1999c; Glüer, 2008.

dessa crença, mas que somente desta forma é possível esclarecer de que objetos tratam os conceitos do agente.

O que dá à minha crença o seu conteúdo, e à minha frase o seu significado, é o meu conhecimento daquilo que é necessário para que a minha crença seja verdadeira. Já

que crença e verdade estão relacionadas desta forma, crenças podem servir como as atitudes humanas que relacionam a teoria da verdade com as preocupações humanas.115

Só através da interação de dois ou mais agentes, em comunicação entre si, se pode determinar qual o estímulo que causa a reação de cada um deles. E se não é possível determinar o que está a causar os estímulos desse agente, não é possível determinar que língua ele fala, já que falar uma língua “requer que as frases sejam combinadas com os objetos e os eventos no mundo.”116

Davidson argumenta que as interações de uma única criatura somente com o seu ambiente não determinam aquilo a que está tipicamente a reagir. […] Causas

determinam o conteúdo [das atitudes proposicionais] somente em situações sociais, como causas comuns.117

Por outro lado, a triangulação serve igualmente para que Davidson explique a posse que cada agente racional tem do conceito de objetividade — a tese de que as atitudes

proposicionais dos agentes são verdadeiras ou falsas independentemente do que pensemos ser o caso. Apenas a interação com outros agentes cria ainda um espaço onde podem surgir desacordos e correções.

Nada no mundo contaria como uma frase, e o conceito de verdade não teria portanto aplicação, se não existissem criaturas que usassem frases proferindo-as ou escrevendo

exemplares delas. Qualquer explicação completa do conceito de verdade deve portanto

relacioná-la com interação linguística atual.118

Quando agentes estão em comunicação cria-se espaço para determinar se os conceitos são ou não corretamente aplicados. Ao esperar que outro agente reaja tal como eu reajo aos estímulos exteriores, torna-se evidente que não seria possível aplicar corretamente um conceito se não existisse uma regra para a sua aplicação (regra essa que depende da forma como uma determinada comunidade linguística usa a língua). “Os pensamentos têm condições de verdade e os conceitos têm condições de satisfação.”119

115 Davidson, 1988a, 189. (Itálico meu) Cf. Também Davidson, 1997b. 116 Davidson, 1992, 120.

117 Glüer, 2009, 1010. (Itálico meu) 118 Davidson, 1988a, 181. (Itálico meu) 119 Glüer, 2008, 1016.

Esta posição é simplesmente a rejeição de uma posição subjetivista em relação à verdade e não uma afirmação de uma teoria objetivista.120 Davidson pretende defender que

uma teoria adequada de verdade deve ter em conta que a verdade é uma propriedade das proposições e das frases que usamos para as exprimir, assim como das atitudes das quais são o conteúdo. Portanto, neste aspeto é subjetivista, ao ligar a verdade àquilo que são os interesses e as crenças das pessoas. Mas, por outro lado, defende que a verdade não depende somente daquilo que as pessoas pensam ser o caso, embora rejeite teorias da correspondência porque tornam a verdade num conceito ao qual as pessoas não conseguem aceder. A verdade é então, para Davidson, um conceito primitivo, i.e., um conceito que qualquer agente racional domina — embora não se siga daqui que as pessoas saibam que proposições são verdadeiras. A noção de verdade como conceito primitivo permite ainda compreender que Davidson proponha formas de modificar a teoria semântica de verdade proposta por Tarski tal que possam ser aplicadas a linguagens naturais (Cf. secção 1.1.1).

2.6 Indeterminação da Interpretação

A triangulação permite ao intérprete apurar quais são as causas prováveis das atitudes proposicionais dos agentes — de entre todas as causas possíveis das suas crenças e das crenças de outros. Mas ainda assim não é possível afirmar qual o objeto ou evento que causa uma determinada crença de agente, nem excluir outras descrições alternativas que possam ser igualmente bem sucedidas nessa missão, pois o holismo que caracteriza o mental permite que várias explicações sejam plausíveis — dadas modificações suficientes na estrutura de crenças do agente — de forma a preservar a racionalidade.121

Se não existem leis físicas estritas que regulem a mente (monismo anómalo) e se as crenças são causadas por eventos e objetos, então há várias maneiras diferentes, mas

igualmente bem-sucedidas, de explicar a interpretação das frases de um agente, preservando a racionalidade das suas crenças (do ponto de vista do intérprete). Mesmo que eventos e objetos no mundo causem sensações que por sua vez causam crenças, as sensações não possuem conteúdo proposicional — não são razões para agir ou atribuir crenças aos agentes que o intérprete procura compreender.

120 Cf. Davidson, 1988a; Davidson, 1995a; Davidson, 1997b. 121 Cf. secções 1.3.3 e 2.4.1.

Esta relação causal (sensações-crenças) não pode ser explicada por leis estritas, visto ter como objeto atitudes proposicionais. “As melhores descrições que somos capazes de dar da maioria dos eventos não são descrições que sejam explicadas, ou possam alguma vez ser subsumidas, em leis estritas.”122 Se não é possível haver leis que descrevam estas relações

entre as sensações e as crenças que elas causam, então há variadas formas de explicar um mesmo comportamento, bastando para tal fazer modificações suficientes no conjunto de crenças que se atribuem ao interpretado. E estas atribuições de crenças ao interpretado são tudo aquilo que temos ao nosso dispor para o compreender. Como Davidson afirma

claramente “aquilo que ninguém pode [...] descobrir dada a totalidade de indícios relevantes

não pode fazer parte do significado.”123 A indeterminação é uma consequência inevitável dos

dados que temos aos nosso dispor para interpretar: “se há indeterminação, é porque depois de todos os indícios recolhidos, modos alternativos de expressar os factos ainda estão em

aberto.”124 A “indeterminação ocorre quando um vocabulário é suficientemente rico para

descrever um fenómeno de mais do que uma forma.”125 Assim,

redescrever um evento não pode mudar aquilo que [esse evento] causa, ou mudar a sua eficácia causal. Eventos, ao contrário de agentes, não estão preocupados com a forma

como a sua causa é descrita.126

O que se mantém constante é aquilo que interessa na explicação da racionalidade, não o vocabulário usado na explicação. A extensionalidade que Davidson atribui às relações de causalidade é aquilo que explica a possibilidade de redescrições das atitudes proposicionais dos agentes. Se ‘uma cirrose causou a morte de Fernando Pessoa’ é uma frase verdadeira, então também será uma frase verdadeira que ‘uma cirrose causou a morte de Alberto Caeiro.’ A mesma causa pode ser descrita como ‘uma doença crónica do fígado devido ao consumo excessivo de álcool,’ sem que o valor de verdade da frase que descreve o evento mude, já que ‘doença crónica do fígado devido ao consumo excessivo de álcool’ e ‘cirrose’ têm a mesma extensão, i.e., podem ser substituídos mutuamente sem prejuízo para o valor de verdade da frase em que ocorrem.

No caso de atitudes proposicionais o caso é análogo. A preferência de um agente por pêras em detrimento de maçãs pode ser explicada, por exemplo, pela preferência deste por frutos encarnados em relação a frutos amarelos, desde que a escolha possa ser descrita tal que a racionalidade que o intérprete atribui ao agente se mantenha inalterada. A única forma de

122 Davidson, 1993a, 191.

123 Davidson, 1979, 235. (Itálico meu) 124 Davidson, 1974a, 154.

125 Davidson, 1998, 316.

compreender as crenças, escolhas, ações e intenções de uma pessoa é à luz de muitas outras atitudes proposicionais: “[…] o conteúdo de uma atitude proposicional deriva do seu lugar no padrão”127 das atitudes proposicionais dessa pessoa.

A nossa teoria de interpretação deve igualmente ser suficientemente flexível para que o intérprete a possa ajustar, à medida que interpreta outro agente, a um número de frases cada vez maior já que a atribuição de racionalidade ao interpretado deve ser necessariamente preservada, não comprometendo a possibilidade de lhe atribuir qualquer atitude e por isso a

No documento Interpretação Radical em Donald Davidson (páginas 33-57)

Documentos relacionados