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4 O CONTRADITÓRIO NA FASE INVESTIGATIVA

4.1 O Princípio do Contraditório

De origem românica (audiatur et altera pars), o princípio do contraditório é elemento essencial ao processo democrático. Ele pode ser conceituado como a garantia de bilateralidade nos atos e termos do processo, com a possibilidade de contrariedade, ou seja, permite a implementação de esforço das partes na formação do livre convencimento do julgador.

O princípio do contraditório é também chamado de “princípio da audiência” e possibilita a ambas as partes num processo, a ciência dos atos e, consequentemente, uma reação e contraposição de teses.49 Nota-se que tanto a informação como a contradição são partes igualmente importantes na efetivação do contraditório, pois é impossível uma contraposição eficaz sem o conhecimento claro do que se contesta.

Nas palavras do doutrinador Guilherme Nucci:

O contraditório significa a oportunidade concedida a uma das partes para contestar, impugnar, contrariar ou fornecer uma versão própria acerca de alguma alegação ou atividade contrária ao seu interesse. Inexiste incentivo para contradizer um fato, com o qual se concorda, ou uma prova, com a qual se está de acordo. Logo, a abertura de chance para analisar e, querendo, contrariar já é suficiente exercício do contraditório, vale dizer, não é a expressa manifestação contrária da parte, dirigida à outra, que faz valer o contraditório. Este emerge legítimo, quando se concede a oportunidade para manifestação em relação a algo, no processo, mesmo que não seja utilizada.50

Conforme mencionado inicialmente, a funcionalidade do contraditório vai além do conhecimento do alegado e da reação às afirmações contrárias, mas abrange a perspectiva de influir no procedimento e na própria decisão final. Nesse sentido, é fundamental que seja dada a devida publicidade às estratégias que estão sendo utilizadas pela parte contrária, até porque a perspectiva atual do processo inclui uma atuação conjunta de todos os sujeitos da relação. Confirmando tal entendimento, o autor Nereu José Giacomolli afirma o seguinte:

Os destinos processuais não são determinados somente por um ente processual (juiz, acusador, defesa), mas por todos os sujeitos processuais, dentro de suas respectivas funções. Não é porque a imputação e o julgamento estejam a cargo de sujeitos oficiais que o espaço público do processo lhes seja exclusivo e reservado. Ao juiz cabe garantir o contraditório às partes, em todas as suas dimensões de forma democrática e efetiva, durante toda a tramitação processual.51

49 GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o

Pacto de São José da Costa Rica. 3. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Atlas, 2016. p. 184.

50 NUCCI, Guilherme de Souza. Princípios Constitucionais Penais e Processuais Penais. 3. ed. rev., atual. e

ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 341.

51 GIACOMOLLI, Nereu José. O Devido Processo Penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o

Outra questão importante para a existência efetiva do contraditório é a contraposição das partes em igualdade de condições, sem a sobreposição de uma pela outra. Segundo Rebouças, nessa busca por igualdade substancial, faz-se necessária a concessão de prerrogativas ao acusado frente ao acusador, visto que este é munido de melhores forças, inclusive por ter o controle da persecução estatal.52

Assim, entende-se que desde o início da persecução penal, é salutar que seja dado ao indivíduo a possibilidade de contraditar os fatos que são apontados em seu desfavor, a afim de que as partes disponham, de fato, dos mesmos direitos e oportunidades de influenciar a sentença. Na compreensão de Távora e Alencar:

Tem-se que assegurar ao indiciado não só a assistência de advogado, como direito fundamental, mas também a realização efetiva da defesa necessária ao próprio inquérito, além da produção de elementos que terão força probatória ao longo da persecução penal, seja para convencer o magistrado que a inicial acusatória deve ser rejeitada, seja para lastrear habeas corpus trancativo do próprio inquérito, ou, à luz da atual perspectiva procedimental, embasar a defesa preliminar no intuito do êxito na obtenção do julgamento antecipado do mérito.53

A investigação criminal contempla todos os atos desde a ciência do fato até a decisão final irrecorrível e, dentro deste lapso temporal, está incluído o inquérito policial, razão pela qual não deveria escapar do mesmo tratamento quanto aos princípios constitucionais que orientam o processo penal como um todo. Nas palavras de Fauzin Hassan Choukr:

a inserção das garantias constitucionais desde logo na investigação criminal, naquilo que for possível e adequado à sua natureza e finalidade, aparece como um “passo adiante” na construção de um processo penal garantidor, entendida esta expressão como sendo o arcabouço instrumental penal uma forma básica de proteção da liberdade individual contra o arbítrio do Estado. Mais ainda, preconiza uma nova postura ética do Estado para com o indivíduo submetido à constrição da liberdade, elevando sua condição de pessoa humana independentemente do feito cometido e colocando pautas mínimas de materialização dessa nova “condição humana” no processo.54

É preciso reconhecer que o inquérito policial é um instrumento bastante relevante dentro da persecução penal, e consagrar somente a sua natureza administrativa é tratá-lo de forma demasiadamente simplista. Como demonstrado anteriormente, ele é capaz de coligir

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REBOUÇAS, Sérgio. Curso de Direito Processual Penal. Salvador: Editora Juspodivm, 2017. p. 94.

53 TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar A.R.C. de. Curso de direito processual penal. 8.ed. Salvador:

JusPodivm, 2013. p. 96-97.

54 CHOUKR, Fauzi Hassan. Garantias constitucionais na investigação criminal. Rio de Janeiro, Lumen Juris,

elementos informativos que guiam quase que por completo a instrução processual, e, sendo confirmados ou não, influenciarão na livre convicção motivada do magistrado.

Ressalta-se que embora como procedimento administrativo não seja capaz de determinar acusação ou condenação, as consequências da instauração e do indiciamento já repercutem na esfera particular do investigado e na esfera pública, dele perante a sociedade.

Portanto, chamar a defesa para efetivamente influir na investigação preliminar nada mais é do que tornar real a paridade de armas entre a acusação e o investigado. Ressalta- se que o direito de defesa não se atém à negação das acusações formais que lhe são feitas, mas também da possibilidade de abranger uma investigação ativa no intuito de colher elementos informativos a seu favor.

Todavia, a doutrina contrária à aplicação do contraditório na investigação preliminar assevera, com base no 5°, LV, da Constituição Federal55, que por ter natureza de procedimento e não de processo, o inquérito policial não comportaria a figura do “acusado”, o qual está relacionado à existência de uma denúncia.

Embora respeitável, não merece prosperar esse entendimento, visto que desconsidera o caráter do indiciamento, que já é, de certa forma, uma acusação em sentido amplo, posto que aponta para um sujeito o direcionamento das diligências a serem realizadas. Aury Lopes Júnior comenta, sobre o dispositivo constitucional mencionado, que a leitura do texto não deve ser no sentido de afastar o contraditório do inquérito, pelo contrário:

Sucede que a expressão empregada não foi só acusados, mas, sim, acusados em geral, devendo nela ser compreendidos também o indiciamento e qualquer imputação determinada, pois não deixam de ser imputação em sentido amplo.56

Nesse caso, o uso do termo acusados em geral, certamente pretendeu dar maior extensão às palavras, caso contrário, seria desnecessária a adição do complemento “em geral”. Imperioso lembrar que, no que concerne a direitos fundamentais, a interpretação da norma não deve ser feita de maneira restritiva, mas sim ampliativa.

Ora, cumpre ressaltar que o inquérito policial também busca, com os elementos colhidos, fornecer supedâneo à autoridade policial para realizar, se reputar cabível, o indiciamento, que é a formalização da imputação da suspeita da prática do crime contra

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BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 10 jun. 2019. “Art. 5° [...] LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.;”

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alguém. A partir desse momento as atenções da autoridade policial centram-se na pessoa do indiciado.

O indiciamento é, de fato, o momento em que se instaura o litígio entre o direito de punir do Estado e o direito de liberdade do sujeito investigado. Nesse caso, é possível concluir que há, sim, uma acusação em sentido amplo. Por isso, é medida salutar permitir ao indiciado que exerça concretamente os direitos constitucionais do contraditório e da ampla defesa.

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