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O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NO ESTADO DEMOCRÁTICO CONSTITUCIONAL

3 O DIREITO PROCESSUAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO CONSTITUCIONAL: PROCESSO, CONTRADITÓRIO E PARTICIPAÇÃO

3.2 O PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO NO ESTADO DEMOCRÁTICO CONSTITUCIONAL

O presente tópico tem por objetivo discorrer sobre a superação da visão liberal do princípio do contraditório por um viés coetâneo ao Estado Democrático Constitucional, na medida em que sobre o contraditório repousa a concepção de processo em que esta dissertação se apoia, fornecida por Elio Fazzalari.

Da Idade Média até a Idade Moderna, o procedimento consistia na ordo iudiciarius, no qual a investigação da verdade (provável) se dava de maneira dialética, mediante ars

opponendi et respondendi, o qual garantia às partes reciprocidade e igualdade (ordem

isonômica), em termos de diálogo judicial (PICARDI, 2008, p. 128-129). Verifica-se, portanto, uma concepção forte acerca do que atualmente é designado como princípio do contraditório, o qual era entendido como intrínseco a um processo pautado na tópica aristotélica e na retórica (ALVARO DE OLIVEIRA, p. 1998, p. 07-08).

Importante reforçar que, no referido período, o princípio do contraditório não era positivado, senão mera elaboração doutrinária (ALVARO DE OLIVEIRA, p. 1998, p. 07-08), que o afirmava como um “princípio de razão natural”, “sendo imanente ao processo” (NUNES, 2008, p. 154). No referido contexto, o contraditório era representado na parêmia

audiatur et altera pars (PICARDI, 2008, p. 128-129). Contudo, a ordem isonômica,

promovida pela estrutura dialética decorrente do princípio do contraditório, começou a sofrer investida já no século XIII, com o gradual aumento de poderes do magistrado, para perseguir os inimigos da Igreja, do Estado e da Sociedade (NUNES, 2008, p. 153-155) – esse referido aumento de poderes já representa um passo em direção à ordem assimétrica.

Em sequência, no século XVI, a retórica e a tópica aristotélica foram questionadas, dentre outros pensadores contemporâneos, por Pierre de La Ramée, com o objetivo de conferir ao processo métodos de investigação da verdade (certeza) advindos das ciências naturais (ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 08). Além disso, o processo, que até então era extra-estatal, passou a sofrer influxos do direito legislado por um soberano (como o Code

Louis, de Luis XIV) e do direito canônico, especialmente nos séculos XVII e XVIII

(PICARDI, 2008, p. 133-134); houve a “estatização do processo” e a “apropriação do ordo iudiciarius pelo soberano, pelo príncipe, que passa a reivindicar o monopólio da legislação em matéria processual”, como afirma Alvaro de Oliveira (1998, p. 08).

Tais fatores – substituição da busca pela verdade provável por uma verdade absoluta; alteração da tópica aristotélica, retórica e argumentativa, pela lógica ramista, com “racionalidade objetiva, formal e calculante” (PICARDI, 2008, p. 135); incremento dos poderes do magistrado, reduzindo a simetria das partes; apropriação do processo pelo Estado etc; – impulsionaram a saída da ordem isonômica à ordem assimétrica, do iudicius ao

processus (PICARDI, 2008, p. 133-135), o que, evidentemente, acarretou significativas

modificações na compreensão do contraditório.

Por conta disto, Nicola Picardi (2008, p. 137, grifos do autor) assevera que, no século XIX, o contraditório foi desvalorizado, pois, embora “continuou-se, em verdade, a falar em ‘princípio do contraditório’, (...) tal fórmula havia perdido a referência originária ao direito natural e, assim, a sua carga ético-ideológica”. No mesmo sentido afirma Alvaro de Oliveira (1998, p. 08), acrescentando que o princípio do contraditório “deixa de ser visto como necessário e intrínseco mecanismo da investigação da ‘verdade’, rebaixado a princípio externo e puramente lógico formal”. Uma vez que deixa de ser intrínseco ou necessário ao processo, o princípio do contraditório é relegado a uma “categoria secundária, até perder qualquer ligação com a essência do fenômeno processual” (PICARDI, 2008, p. 138; NUNES, 2008, 156).

Portanto, em referência aos séculos XVIII e XIX, afirma-se que é o período histórico “no qual começa a ocorrer a decadência do principio do contraditório, eis que se tende a um abandono do diálogo genuíno e a uma supervalorização da razão, que torna o contraditório

uma mecânica contraposição de teses (dizer e contradizer), ou mesmo uma prova de força”

(NUNES, 2008, p. 155, grifos do autor).

Verifica-se, com isso, que o contraditório, longe de ser instituto central e caracterizador do processo, ao longo do século XIX é entendido como um requisito puramente formal e mecânico, de sorte que se encontra satisfeito com a mera audiência bilateral; em outros termos, entendia-se como atendido o contraditório desde que fosse dada a oportunidade de a outra parte ser ouvida. Para Alvaro de Oliveira (1998, p. 08), esse modelo de contraditório, que é satisfeito com a mera oportunidade de a outra parte ser ouvida, remete ao processo liberal, com um órgão judicial passivo, compatível com a ideologia do laissez

faire, o qual apenas deveria “assegurar o atendimento às determinações formais do processo”

– destaque-se o contraditório como mera formalidade. Portanto, assegurada a “formalidade” de a outra parte se manifestar, já se poderia dizer que o contraditório estava satisfeito.

Porém, ainda no século XIX, – quando se verifica que o princípio do contraditório deixa de ser algo intrínseco e imanente ao processo, para ser mero elemento formal – e especialmente no século XX, constata-se a transição de um modelo liberal de processo – que era tido como coisa das partes – para um modelo social de processo, centrado, sobretudo, na figura do juiz, afinal, a manifestação das partes mediante o contraditório era apenas uma formalidade; em vez de centralizar o fenômeno processual nas atividades das partes em contraditório, o processo passa a se fundar na figura precípua do Estado-juiz, com ampliação dos seus poderes, dando espaço ao ativismo judicial, com vistas à efetividade (ALVARO DE OLIVEIRA, 1998, p. 08-10; NUNES e THEODORO JUNIOR, 2009, p. 107).

Ainda no século XX, o sombrio período da Segunda Guerra Mundial despertou notória onda de autoritarismo, que também teve reflexos na seara processual, como se verifica propriamente na Alemanha Nazista, onde se cogitou a supressão do princípio do contraditório em determinados procedimentos. Superado este interregno tenebroso, houve, nas palavras de Cabral, a “remodelagem do Estado de Direito em torno da dignidade humana, do acesso à justiça e dos direitos fundamentais”, sendo que isto “permitiu o resgate histórico do contraditório” (CABRAL, 2011, p. 193-194).

É de suma importância observar que o Estado Democrático Constitucional constitui a superação do Estado Liberal e do Estado Social, o que, no direito processual, aponta para a constatação de que o processo justo não será resultado de um Estado ausente (liberal), nem autoritário ou “presente demais” (social), senão de um procedimento pluralista e participativo das tomadas de decisões e da democracia (ZANETI JUNIOR, 2014, p. 04).

O Estado Democrático Constitucional, como bem leciona Zaneti Junior (2014, p. 107- 108), agrega conquistas liberais (direitos fundamentais de primeira dimensão), igualitárias relacionadas à questão social (direitos fundamentais de segunda dimensão) e conquistas comunitárias (direitos fundamentais de terceira dimensão), mas, sobretudo, traz consigo uma quarta dimensão de direito fundamental, consistente no direito de participação, que diz respeito ao direito de o cidadão destinatário do ato final de decisão participar dos atos intermediários de formação da referida decisão.

Nesta perspectiva democrática e participativa exigida pelo Estado Democrático Constitucional, é imprescindível a adoção do formalismo valorativo, especialmente no que diz respeito à adoção não mais da jurisdição, senão do processo como instituto-centro do direito

processual, posto que há a “caracterização do processo como um espaço privilegiado do exercício direto do poder pelo povo” (MITIDIERO, 2015, p. 47). De maneira ainda mais intensa, deve-se assumir que o processo é um direito fundamental (ALEXY, 2008, p. 488- 490), dada sua vinculação ao vetor participação na formação de decisão estatal (ZANETI JUNIOR, 2014, p. 107-109).

Com exigência de participação do cidadão na formação de decisões, bem como a consagração do processo como direito fundamental de quarta dimensão, e considerando que no plano da dogmática jurídica o processo é tido como procedimento animado pelo contraditório (concepção fazzalariana), é evidente que o princípio do contraditório no Estado Democrático de Direito não pode se limitar ao binômio informação-reação (CABRAL, 2011, p. 194-195). Conforme Dierle Nunes (2008, p. 152, grifos do autor),

Neste Estado democrático os cidadãos não podem mais se enxergar como sujeitos espectadores e inertes nos assuntos que lhes tragam interesse, e sim serem participantes ativos e que influenciem no procedimento formativo dos provimentos (atos administrativos, das leis e das decisões judiciais), e este é o cerne da garantia do contraditório. Dentro desse enfoque se verifica que há muito a doutrina percebeu que o contraditório não pode mais ser analisado tão somente como mera garantia formal de bilateralidade da audiência, mas, sim, como uma possibilidade de influência (Einwirkungsmöglichkeit) sobre o desenvolvimento do processo e sobre a formação de decisões racionais, com inexistentes ou reduzidas possibilidades de surpresa.

Por esta razão que se afirma que, hodiernamente, o princípio do contraditório é composto não apenas pelo binômio informação-reação (bilateralidade de instância ou de audiência), senão também pelo direito de influência e dever de cooperação (CABRAL, 2011, p. 194-195). Frise-se: o princípio do contraditório no Estado Democrático Constitucional é composto por informação-reação, direito de influência e dever de cooperação, cumulativamente.

O contraditório enquanto informação-reação é uma concepção clássica, que vem desde o Direito Romano, na forma de audiatur et altera pars, que impõe o funcionamento dialético ao processo, facultando ao destinatário da decisão a oportunidade de reagir, de sorte que, no Estado Democrático Constitucional, a legitimidade da decisão judicial recai na legalidade do procedimento aliada à participação dos destinatários do provimento, evitando-se, portanto, o arbítrio estatal (CABRAL, 2011, p. 194-195). Noutros termos, a legitimidade dos provimentos judiciais decorre também93 da observância do contraditório, no sentido de

informar o cidadão da potencial decisão desfavorável e conferir-lhe a possibilidade de se manifestar, reagir no processo.

Entretanto, a faceta informação-reação do princípio do contraditório, embora importante, é insuficiente para fins de um Estado Democrático Constitucional pautado na participação, pois resta limitado à “mecânica contraposição de direitos e obrigações”, a qual, inclusive, pode não gerar qualquer contribuição para a formação e fundamentação da decisão judicial, isto é, a bilateralidade de instância, por si só, pode, na prática, resultar numa participação formal, aparente e fictícia, sem qualquer influência na atividade julgadora, que permanecerá monológica e unilateral por parte do magistrado (NUNES e THEODORO JUNIOR, 2009, p. 109-112).

Não basta, então, informação-reação ou direito de voz e direito de audiência sobre contraposição de direitos e obrigações; é necessário, como componente do princípio do contraditório, que a parte também tenha direito de influência no desenvolvimento e resultado (decisão) do processo (NUNES e THEODORO JUNIOR, 2009, p. 113). Observe-se, novamente, que o contraditório enquanto bilateralidade de audiência ou informação-reação atende a interesses individuais e patrimoniais, de cariz liberal, ao passo que agregar o direito de influência ao núcleo do contraditório aproxima ao ideal de democracia deliberativa e dos objetivos políticos do processo (CABRAL, 2011, p. 197).

Isto posto, deve-se entender o princípio do contraditório também como a garantia de que o jurisdicionado exerça influência tanto no desenvolvimento, quanto no resultado do processo (NUNES, 2008, p. 162). Observe-se que não se trata de influência apenas nos atos decisórios (ou “atos determinantes”), pois a influência exercida pelas partes “é reflexiva: difusa e multidirecional, partindo de todos e absorvida por todos” (CABRAL, 2011, p. 199).

O entendimento do contraditório como garantia de influência acarreta importante conseqüência quanto aos sujeitos processuais submetidos ao mencionado princípio, afinal, se ao jurisdicionado há a garantia de influência, consequentemente há deveres dirigidos ao magistrado, o que implica a assunção de que também o magistrado está submetido ao decisão, mas não apenas isso, na medida em que existe o direito objetivo a ser aplicado. Portanto, não se adere a uma concepção de legitimação pelo procedimento, no sentido de que o resultado do processo será legítimo quando o processo se desenvolver em observância ao contraditório. Por outro lado, também não se pode admitir que o processo se desenvolva a largo da participação, isto é, sem a possibilidade de expor seus argumentos e tê- los levados em consideração, com possibilidade de influência. Por isso, a legitimidade da decisão decorre da participação aliada à conformação ao direito objetivo, especialmente aos direitos fundamentais.

princípio do contraditório. As lições de Alvaro de Oliveira (1993, p. 31-32) demonstram com exatidão o amplo espectro do contraditório como direito de influência, que abrange igualmente as partes e o magistrado:

Na realidade, impõe-se atentar à natureza essencialmente dialética do processo. De um lado, a vontade do Juiz nunca é totalmente soberana, pois de um ou outro modo condiciona-se à vontade e ao comportamento das partes, no que representam de iniciativa, estímulo, resistência ou concordância. Quanto às partes, sua vontade e atividade tendem a se plasmar e adequar aos estímulos decorrentes do comportamento do Juiz e do adversário.

Portanto, a democratização do Estado e a constitucionalização do processo requerem esta concepção ampla de contraditório, de sorte que o processo não seja algo exclusivamente dos litigantes (concepção liberal), tampouco exclusivamente do magistrado e a despeito das partes (concepção social), mas, sim, uma grande rede de influência e interação entre todos os sujeitos processuais, especialmente partes e magistrado. Nesta quadra, o princípio do contraditório na feição de direito de influência confere à sociedade a abertura do Poder Judiciário como arena de debate pluralista e participativo, permitindo que dialogicamente a sociedade influa nas decisões estatais; a abertura à sociedade é ampla a ponto de superar a visão individualista de contraditório e permitir que se insiram no diálogo judicial outros sujeitos que sequer eram partes no processo, tais como amicus cuariae, para fins de enriquecer, qualificar e ampliar os debates (CABRAL, 2011, p. 200).

Por outro lado, partindo-se da premissa do contraditório como direito de influência multidirecional, não é difícil constatar correlato dever de colaboração e participação entre os sujeitos processuais, especialmente no sentido de colaborar com o exercício da jurisdição (CABRAL, 2011, p. 201) ou para que se alcance a “boa qualidade da prestação jurisdicional” (DINAMARCO apud CABRAL, 2011, p. 201). Assim, além de informação-reação e influência, o contraditório também se manifesta na forma de dever de colaboração94.

Em relação às partes, o contraditório como dever de colaboração impõe que as partes participem na formação das decisões e colaborem com a boa prestação jurisdicional, o que acarreta, por exemplo, o dever geral de boa-fé processual (art. 5º, CPC95). Em relação ao magistrado, o dever de colaboração imposto pelo contraditório requer a condução do processo

94 É interessante a defesa de Antonio Cabral sobre a possibilidade de um dever (de cooperação) decorrer de uma

garantia (do contraditório), a partir da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, como se verifica em CABRAL, 2005, p. 59-80.

de maneira a maximizar os debates e discussões sobre as questões processuais, isto é, o dever de colaboração se traduz em dever de debate (CABRAL, 2011, p. 202).

As conseqüências da adoção do contraditório como informação, reação e influência serão brevemente retomadas em tópico referente ao Código de Processo Civil de 2015, mas pode-se citar, apenas exemplificativamente, a vedação de decisão surpresa (art. 9º e 10, CPC), o dever de fundamentação analítica das decisões (art. 489, CPC), os deveres de boa-fé processual, com previsão de punição em caso de inobservância (art. 77 a 81, CPC), dentre outros.

Com base em tudo o que foi exposto sobre o conteúdo do contraditório no Estado Democrático Constitucional, duas observações são necessárias, quanto à problemática da não- dominação.

Em primeiro lugar, a extensão do contraditório acima delineada – aliada ao acesso à justiça e ao direito fundamental ao processo, que ainda serão trabalhados – promove a democracia contestatória defendida por Pettit, no que diz respeito à contestação de atos estatais porventura tachados como dominação.

Neste sentido, o cidadão republicano ou grupos sociais que entendem que há alguma dominação podem, pela via do processo, manifestar sua voz de contestação contra o Estado ou particular que praticou a dominação. Pela faceta da informação-reação, o sujeito dominador será citado para integrar a relação jurídica-processual e a ele será dado o direito de manifestação quanto ao ato contestado. Já a dimensão do direito de influência e do dever de colaboração transforma o ambiente processual em arena de debate, de diálogo racional em torno de motivos, inclusive com a inserção do magistrado neste debate, promovendo, portanto, uma democracia contestatória e deliberativa no âmbito judicial.

Em segundo lugar, a observância do contraditório como informação, reação, influência e cooperação, incluído o dever de debate, acaba por se tornar requisito para que o próprio processo não seja instrumento de dominação.

Como mencionado alhures, o processo possui natureza pública, e dele decorre uma decisão do Estado-juiz, com pretensão de definitividade. Em consonância com o direito fundamental de participação, no Estado Democrático Constitucional, o cidadão deve

participar das decisões estatais, sobretudo quando ele será o destinatário da decisão. No âmbito do republicanismo, há destaque para a participação que se dá mediante o exercício de voz de contestação e de forma dialógica e racional, conforme modelo contestatório de democracia.

Desta forma, se ao cidadão republicano que sofre a dominação não for concedido o binômio informação-reação, ou ainda se não puder expor seus argumentos e exercer influência no debate e na deliberação pelo Estado-juiz, a decisão levada a cabo será expressão de dominação.

Portanto, para que o processo não deixe de ser instrumento de contestação para se tornar instrumento de dominação, pela impossibilidade de manifestação de voz de contestação daqueles que sofreram a dominação, é necessária a observância, maximização e potencialização do contraditório em todos os seus aspectos.