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O título escolhido para esse capítulo foi de uma fala da mãe de Malu e Zeus: "o

problema sempre é na escola". Fala que é partilhada entre as outras responsáveis dos

participantes da pesquisa e que representa de forma significativa a questão da medicalização na escola. De qual problema se refere? Dos problemas destacados pela escola relacionados ao processo de escolarização e desempenho dos estudantes que são interpretados como decorrentes exclusivamente das características dos próprios estudantes. Problemas que são revelados através da produção da queixa escolar que resulta no encaminhamento de crianças e adolescentes para profissionais da área de saúde e/ou espaços de avaliação e/ou atendimento especializado.

A compreensão de que "o problema sempre é na escola" revela coerência com o motivo e a procedência do encaminhamento de crianças e adolescentes em processo de escolarização. De forma bastante significativa, o problema, motivo do encaminhamento, é uma queixa proveniente da escola. Para refletir sobre essa questão, antes de explorar as narrativas das responsáveis dos participantes da pesquisa, apresento a análise das informações das Fichas cadastrais do Núcleo de Práticas Psicopedagógicas, lócus da pesquisa, que também reflete a coerência da expressão "o problema sempre é na escola".

Como já explicitado no quinto capítulo (sobre a metodologia da pesquisa), as informações registradas nas Fichas foram organizadas em quadros de acordo com os itens contemplados na própria Ficha: idade, gênero, categoria administrativa da escola, procedência da queixa e a queixa propriamente dita. Todas as Fichas cadastrais do Núcleo foram analisadas: 33 do ano de 2012 e 72 do ano de 2013, totalizando 105 Fichas. Desse total, 65 eram de crianças e adolescentes que frequentavam a escola no turno matutino (18 do ano de 2012 e 47 de 2013) e 40 no turno vespertino (15 de 2012 e 25 de 2013).

Nas 105 Fichas cadastrais analisadas, a escola aparece como a principal responsável pela produção da queixa e consequentemente pelo encaminhamento para atendimento. No Gráfico 1, referente às respostas do item de identificação da procedência da queixa, percebe- se que o maior percentual concentra-se na escola. No preenchimento da Ficha, as duas alternativas (escola e família) poderiam ser marcadas (múltipla escola). Na contagem das respostas, as Fichas que tinham as duas alternativas assinaladas foram computadas como "ambas" (procedência tanto da escola quanto da família).

Observa-se que o percentual da escola é bem significativo, com 61%, enquanto as demais respostas apresentam os seguintes percentuais: família, 13,3%; ambas (escola e família), 17,1%; e sem informação, 8,6%. Como a procedência da queixa pode ser de ambas alternativas (escola e família), pode-se considerar a proporção das respostas registradas, em função da múltipla informação. Deste modo, com a consideração do percentual relativo à resposta "ambas", a qual destaca tanto a escola quanto a família como responsáveis pela queixa, tem-se o acréscimo de 17,1% para cada. Nesse caso, na soma dos percentuais, têm-se as seguintes proporções: 78,1% da escola, 30,4% da família e 8,6% sem informação. Portanto, a procedência da queixa da escola fica ainda mais expressiva.

A faixa etária das crianças e adolescentes encaminhados variava entre 04 e 17 anos de idade, sendo 78,1% meninos e 21,9% meninas. Na Tabela 1 pode-se observar o total de crianças/adolescentes inscritos no Núcleo por idade e por ano de inscrição com seus respectivos percentuais.

Tabela 1: Total de inscritos por idade

Idade (anos) 04 05 06 07 08 09 10 11 12 13 14 15 16 17 Total 2012 0 3 5 2 4 2 4 3 4 2 3 0 0 1 33 2013 2 5 6 10 10 12 7 6 3 6 3 0 2 0 72 Total 2 8 11 12 14 14 11 9 7 8 6 0 2 1 105 % 1,9 7,6 10,5 11,4 13,3 13,3 10,5 8,6 6,7 7,6 5,7 0 1,9 1,0 100 Fonte: Análise das Fichas Cadastrais.

Com relação à distribuição das idades observa-se que o intervalo entre 06 e 10 anos de idade corresponde a maior demanda de atendimento: a soma do percentual equivale a 59%

61%

13,3%

17,1% 8,6%

Gráfico 1: Procedência da queixa

dos encaminhamentos. Se considerarmos a relação idade e ano/série escolar prevista no sistema de ensino, esta é a faixa etária correspondente ao Ensino Fundamental anos inciais (1º, 2º, 3º, 4º e 5º anos) da Educação Básica no Brasil. Logo em seguida tem-se a faixa de idade (de 11 a 14 anos) prevista para o Ensino Fundamental anos finais (6º, 7º, 8º e 9º anos) com a soma de 28,6% dos encaminhamentos; depois, as crianças de 05 anos de idade, com 7,6%. Assim, a somatória percentual relativa à faixa etária prevista para o Ensino Fundamental alcança o índice de 87,6% dos encaminhamentos, a Educação Infantil (04 e 05 anos de idade) 9,5% e o Ensino Médio (de 15 a 17 anos de idade) 2,9%. Vale ressaltar que muitos casos de encaminhamentos não se aplicam a essa relação idade e ano/série escolar em função das situações e fenômenos que acontecem na escola, por exemplo, reprovação e repetência.

Percebe-se que a maior concentração de encaminhamentos está relacionada ao início da sistematização da escolarização no Ensino Fundamental, fato que denota algumas questões: quais são os desafios enfrentados pelas crianças no início da sistematização da escolarização? Como a criança é acolhida no contexto escolar? Como o universo (organização, funcionamento, conteúdos, assuntos etc) da escola é apresentado e partilhado com a criança? Como a escola lida com a inserção e adaptação da criança no contexto escolar? Como a escola acolhe os saberes e experiências não escolares da criança? O que a criança aprende sobre escola? Como, para quê e por quê? Essas e muitas outras questões podem ser levantadas na tentativa de compreender as experiências e os sentidos da escolarização para a criança. Questionamentos que podem contribuir para que a escola possa construir estratégias e criar situações em que as crianças tenham a oportunidade de viver experiências exitosas em seu contexto.

Os percentuais dos encaminhamentos refletem uma demanda significativa por parte da escola de buscar estratégias, alternativas e/ou apoios para as questões do processo de escolarização fora do seu próprio âmbito, particularmente a busca por outras áreas, como por exemplo, a área clínica de diferentes especialidades, nesse caso da avaliação e atendimento psicopedagógicos. O que significa que é uma busca fora do campo pedagógico, propriamente dito, de dentro da escola através do diálogo com sua comunidade (profissionais, estudantes e família), ou seja, estratégias e intervenções fora do contexto escolar.

Na análise das Fichas cadastrais do Núcleo de Práticas Psicopedagógicas, constata-se que o maior número de encaminhamento das crianças/adolescentes inscritas para atendimento é proveniente da escola, de crianças e adolescentes em idade escolar (de 04 a 17 anos de idade), com maior incidência na faixa etária entre 06 e 10 anos, e, especialmente, meninos.

Souza (1996), em sua pesquisa de doutorado, no levantamento realizado através da leitura e análise de queixas escolares de prontuários de quatro Clínicas-Escola em Psicologia na cidade de São Paulo, aponta que das "crianças encaminhadas, aproximadamente sete em cada dez são meninos" (p. 178). Com semelhante proporção, Souza e Sobral (2007), na apresentação das características da demanada do serviço de Orientação à Queixa Escolar do Instituto de Psicologia da USP do ano de 2005, destacam que os "meninos comparecem em número muito superior ao das meninas", 79% e 21% respectivamente. Porcentagens próximas dos resultados do levantamento das Fichas cadastrais da atual pesquisa. Destaco que a significativa diferença entre meninos e meninas na demanda dos serviços de atendimento psicológico e/ou psicopedagógico merece uma reflexão crítica sobre a questão de gênero, entretanto tal análise ultrapassa os limites da tese.

No que diz respeito à faixa etária, tanto os resultados de Souza como os de Souza e Cabral também se aproximam da análise das Fichas cadastrais: em ambos os trabalhos, a maior incidência foi entre 07 e 12 anos - no trabalho de Souza, 83% (1996, p.178) e no de Souza e Cabral, 74% (2007, p. 125). Souza (2002), ao referir-se aos levantamentos de atendimento psicológico em clínicas-escola e Unidades básicas de saúde de várias regiões da cidade de São Paulo, comenta que os dados, "em geral, indicam que a faixa etária mais encaminhada para atendimento psicológico está entre 7 e 14 anos e que, aproximadamente, dois terços dos encaminhamentos psicológicos ocorrem por problemas vividos pelas crianças no seu processo de escolarização." (2002, p. 178)

Sobre "os problemas enfrentados na escola que culminam com o encaminhamento psicológico", Souza informa que

o motivo mais frequente de encaminhamento está no fato de a criança apresentar o que os educadores denominam de problemas de aprendizagem atrelados a problemas de atitudes em sala de aula (26%), somente problemas de aprendizagem (24%) ou ainda apenas problemas de atitudes (19%). Ou seja, a soma dos motivos de encaminhamento aponta que 69% das crianças apresentam problemas na aprendizagem ou atitudes consideradas inadequadas em sala de aula. (SOUZA, 2002, p. 180)46

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Souza, em sua tese de doutorado (1996), apresenta detalhadamente as queixas contempladas em cada categoria organizada na análise dos motivos de encaminhamento. A categoria problemas de aprendizagem abarca as queixas relativas à: a) problemas na leitura, escrita; b) problemas com a quantificação; c) problemas relacionados à aprendizagem e vagamente descritos; d) problemas relativos ao ritmo da aprendizagem; e) história de repetência; f) problemas com a lição de casa. A categoria problemas de atitude agrupa: a) desobediência às regras vigentes em sala de aula; b) agressividade; c) timidez; d) comportamentos infantis ou imaturos; e) desinteresse pelas tarefas e desatenção; e) nervosismo e irritação. (SOUZA, 1996).

Em sua análise, Souza parte da "concepção de que tais encaminhamentos nos revelam o dia-a-dia da escola, os principais conflitos com que professores e alunos se deparam e de alguma forma tentam resolver, ou seja, "os pedidos de ajuda da escola"" (2002, p. 182, grifo da autora)

E quais são os pedidos de ajuda relativos às crianças e adolescentes encaminhados para o Núcleo, lócus da atual pesquisa? Quais são os motivos do encaminhamento?

Com relação ao motivo do encaminhamento, na identificação e na análise das 105 Fichas cadastrais, foram considerados todos os registros realizados no espaço aberto da Ficha, dedicado à escrita da queixa. As queixas registradas foram organizadas em 12 categorias, a saber: desatenção; hiperatividade-impulsividade; dificuldade memória; dificuldade fala; dificuldade coordenação motora; dificuldade escrita e/ou leitura; dificuldade matemática; dificuldade aprendizagem; dificuldade comportamento/conduta/atitude; dificuldade relacionamento; outras dificuldades; sem informação. Para organização das categorias foram considerados todos os registros das 105 Fichas cadastrais analisadas. É importante destacar que em cada Ficha existiam diferentes registros que apresentavam as características relativas à queixa da criança e/ou adolescente, ou seja, relativas ao motivo do encaminhamento. Na Tabela 2 observa-se o total de registros de cada uma das 12 categorias organizadas:

Tabela 2: Total de registros das categorias das queixas da Ficha cadastral