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3 O DIREITO FUNDAMENTAL A UMA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA PROBA

4 O PROCEDIMENTALISMO DISCURSIVO DE HABERMAS E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A DEMOCRACIA DELIBERATIVA

4.2 O PROCEDIMENTALISMO EM HABERMAS E A PREOCUPAÇÃO COM A LEGITIMIDADE

A discussão da legitimidade na teoria habermasiana circunda os aspectos de produção e mutação do processo legislativo, analisando profundamente como nas sociedades plurais fica resguardado o princípio democrático quando o legislador muda, por exemplo, leis a qualquer tempo sem a participação efetiva de blocos sociais interessados, que podem ser atingidos direta ou indiretamente pela nova percepção legislativa.

O enfoque lançado acima será analisado e servirá de ponto de partida para as primeiras premissas da utilização da Teoria do Discurso como mecanismo legitimador das

decisões na seara administrativa do Poder Executivo. Para tanto, todavia, é necessário conhecer alguns dos arrazoados fundantes do pensamento de J. Habermas sobre a legitimidade e a democracia.

A democracia, em verdade, é o grande objeto de estudo de Habermas e, por meio dela se pretende avaliar o quanto abrangente pode ser. Em Estados ditos democráticos a participação popular, muitas vezes, não alcança sua total plenitude, restringindo-se à participação na escolha dos líderes políticos, que são representantes escolhidos pelo povo para tomar as decisões de condução da nação, como ocorre na realidade brasileira.

No Brasil, os poderes executivo e legislativo são exercidos por representantes eleitos pelo povo, em escrutínio direto e secreto, sendo um fundamento da República o princípio democrático, segundo o qual, todo o poder emana do povo, que o exerce diretamente ou por intermédio de seus representantes eleitos.

Entretanto, o questionamento que Habermas propõe sobre o processo de legitimação normativa põe em relevo a questão quanto ao deficit democrático na tomada de decisão do Estado. Dessa forma, como, notadamente em sociedades plúrimas “[...] se fundamenta a legitimidade de regras que podem ser modificadas a qualquer momento pelo legislador político?”183

Habermas direciona a resposta à pergunta acima apontando para o direito, fazendo-o com o seguinte plano:

Esta pergunta torna-se angustiante em sociedades pluralistas, nas quais as próprias éticas coletivamente impositivas e as cosmovisões se desintegram e onde a moral pós-tradicional da consciência, que entrou em seu lugar, não oferece mais uma base capaz de substituir o direito natural, antes fundado na religião ou na metafísica. Ora, o processo democrático da criação do direito constitui a única fonte pós-metafísica da legitimidade.184

Segundo Habermas, o direito se perfaz como única fonte de legitimidade no contexto da pós-metafísica. Mas, se na transição das sociedades tradicionais para as sociedades modernas, a legitimidade do Estado adveio o reconhecimento e aceitação engendrado por meio do pacto social, consoante lição de Rousseau, o que, de fato, concebe força legitimadora ao processo democrático de criação normativa.

183

HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. Vol II. Tradução de Flávio Bento Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2011, p. 308.

O que se denomina de força legitimadora é a participação da sociedade nos debates para deliberação de matéria capaz de influenciar e alterar as aspirações contidas no mundo da vida, em simbiose com os postulados de democracia e de participação cidadã.

Habermas soluciona a questão indicando que o caminho a ser percorrido para encontrar tal democracia e, consequentemente a força legitimadora, é a Teoria do Discurso, pois, por meio de um procedimento previamente determinado é possível garantir a participação comunicacional dos sujeitos.

Tomando o agir comunicativo como referência, é válida a observação segundo a qual, por intermédio da fala, é possível que os agentes do discurso apresentem seus argumentos e possam influenciar nas discussões dos temas propostos, com base em critérios éticos, e pautado na força que o melhor argumento possa apresentar.

Nessa profusão ideológica, o processo democrático exige a constância e troca de temas e de argumentos para empreender um propósito discursivo, dialético, “[...] à formação política da vontade, fundamentado, deste modo, a suposição falibilista de que os resultados obtidos de acordo com esse procedimento são mais ou menos racionais.185

Não se trata da democracia da maioria, impeditiva da vibração de grupos minoritários. Isso porque, quando se fortalece o pressuposto do argumento mais forte não se está enaltecendo que grupos maiores possam fazer valer seus interesses e opiniões, suplantando, assim, esferas menores. O Discurso permite que núcleos mais diminutos apresentem seus argumentos e, consoante as regras procedimentais de apresentação de ideias e da ética, possam convencer outros setores.

Desse modo, é pertinente demostrar o seguinte exemplo: imagine-se uma cidade cuja a organização política permite divisões funcionais de gestão local. Tais divisões representam os bairros ou distritos e, cada um deles, possui uma espécie de conselho que tem a missão de detectar problemas de ordem setorizada, pertinente à sua esfera de atuação.

Entretanto, no interior de cada “conselho” haveria o dissenso sobre o tema proposto, o qual deveria ser direcionado para o consenso por intermédio do regramento pertinente previamente determinado, a fim de que um entendimento geral pudesse ser levado ao conhecimento da autoridade responsável, ou poder central, para sua programação e execução, a depender de cada caso186.

185

Ibid., p. 308.

186 A questão da vinculação ou não da proposta levada a conhecimento da autoridade gestora será analisada em

Assim, o entendimento de um pequeno grupo dentro de certo distrito poderia ser apresentado e debatido e, entre posicionamentos contrários ou favoráveis, eleito seria o argumento que ganhasse mais vozes positivas.

Outro ponto bastante relevante é a dimensão que as propostas de cada “conselho” podem tomar, sendo pertinente afirmar também que os distritos podem influenciar uns aos outros, aumentando o coro sobre uma questão específica e que seja de interesse de toda a cidade.

Pode-se dizer que o distrito “A” tente ganhar maior força e leve seu argumento para deliberação no “conselho” do distrito “B” e sucessivamente nos demais. Entretanto, esse tema merece tópico próprio para análise, tendo em vista que a questão dos argumentos, se vincularia ou não a decisão última do Poder Central, partindo eles de um só distrito ou sendo a conjuntura da realidade de distritos reunidos, é assunto que demandará considerações próprias.

Prudente então retornar ao caráter dialógico democrático especificamente delineado na teoria habermasiana, que elege o direito como mediador, o que explicaria também como o procedimentalismo legal funcionaria para as deliberações dos “conselhos”, conforme apontado na exemplificação acima.

O processo de alicerce democrático deve ser compreendido inserido no sistema dos direitos, pois é justamente o direito que servirá de medium para equacionar o sistema e o mundo da vida, funcionando como linguagem compreendida por todos na representação de “categoria da mediação entre facticidade e validade”.

Alguns conceitos desenvolvidos por Habermas merecem destaque como premissas para o entendimento da sua teoria comunicativa, assim, os assuntos pertinentes aos direitos subjetivos, mundo da vida, esfera pública, autolegislação e direitos fundamentais serão abordados para servirem de elo entre o complexo da Teoria Discursiva e a viabilidade da participação comunicativa, legitimadora nas decisões de índole do Direito administrativo.

A esfera pública representa mais que a própria expressão linguística do seu nome pode transparecer. Não se trata de algo rígido, preso a um espaço delimitado, hermético e inamovível, muito pelo contrário, a esfera pública proposta por Habermas é viva e palco das manifestações da fala.

A esfera pública política é tratada como acontecimento da sociedade civil e também vislumbrada para uma teoria democrática, sendo tida, no âmbito da sociedade civil, como uma

“caixa de ressonância” que ecoa os problemas nascentes do seio social e que precisa ser amparada por um sistema político. Nesse sentido, “[...] a esfera pública é um sistema de alarme dotado de sensores não especializados, porém, sensíveis no âmbito de toda a sociedade”.187

Mas há de se ter um mecanismo para que as vozes, pode-se dizer não organizadas da sociedade civil, cheguem em perspectiva organizada, procedimentalmente, na cúpula parlamentar.

A razão, então, da esfera pública de cunho democrática é fazer com que os discursos dispersos de problemas gerados do sentir social possam ser “ouvidos” e trabalhados pelos parlamentares. Mas aí reside um novo problema ou foco de tensão, ou seja, “[...] a capacidade de elaboração dos próprios problemas, que é limitada, tem que ser utilizada para um controle ulterior do tratamento dos problemas no âmbito do sistema político”.188

Para Habermas a esfera pública deve ser vislumbrada como:

Esfera ou espaço público é um fenômeno social elementar, do mesmo modo que a ação, o ator, o grupo ou a coletividade; porém, ele não é arrolado entre os conceitos tradicionais elaborados para descrever a ordem social. A esfera pública não pode ser entendida como uma instituição, nem como uma organização, pois, ela não constitui uma estrutura normativa capaz de diferenciar entre competências e papéis, nem regular o modo de presença a uma organização, etc. Tampouco ela constitui um sistema, pois, mesmo que seja possível delinear seus limites internos, exteriormente ela se caracteriza através de horizontes abertos, permeáveis e deslocáveis.

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfaixadas em temas específicos.189

A esfera pública, como ambiente dinâmico de problematizações, ganha espaço e se propaga por intermédio do agir da fala ou, mais especificamente, pelo agir comunicativo. Por sua vez, a linguagem é aquela de compreensão geral e fluida no cotidiano, funcionando como

medium comunicacional ativo entre os falantes no mundo da vida. Dessa forma, tanto nas

práticas rotineiras da vida quanto nas elucubrações mais elaboradas, especializadas, como a filosofia e o direito, por exemplo, o instrumento será o mesmo, a linguagem.

187

Ibid., p. 92.

188 Ibid., p. 92. 189 Ibid., p. 92-93.

Entretanto, a esfera pública não vai se ocupar de nenhuma das duas classificações provenientes da linguagem, conforme indicada acima. “Por isso quando abrange questões politicamente relevantes, ela deixa ao cargo do sistema político a elaboração especializada”.190

A esfera pública se perfaz de condutas da comunicação, porém tais condutas precisam ser relevantes para o panorama social, sendo necessária, então, uma estrutura especializada, preocupada em ordenar um consenso para gerir o problema posto. Dessa forma, a esfera pública não vai se deter em regular a linguagem coloquial, natural para a comunicação do quotidiano.

Já a autolegislação parte da ideia de que o cidadão, além de ser sujeito submisso aos imperativos legais, deva ser também agente formulador dessas mesmas regras, ou seja, deve haver a compreensão de cidadania no aspecto mais largo: o homem capaz de se entender como agente criador de normas.

Sobre essa mesma temática, a autolegislação de civis para Habermas carece de uma conformação, daqueles que estão dominados pelas regras do direito, como destinatário dos seus comandos, possam compreender-se também como construtores desse mesmo direito. “[...] E, para fazer jus a esta ideia, não basta compreender o direito a iguais liberdades de ação subjetivas como um direito fundamentado moralmente, que necessita apenas da positivação através do legislador político.191A autolegislação necessita da conformação do cidadão com o

direito posto e conformação do cidadão com o processo de produção do seu próprio regramento, em atenção aos postulados democrático e de soberania popular, apreendidos no contorno deliberativo, o qual, representa o modelo que possibilita a abertura social para a discussão de questões políticas e administrativas.