• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 1– O MORRO FALA

1.3 O PROCESSO DA PESQUISA

O primeiro contato feito para realizar entrevista que irá compor este trabalho de pesquisa foi com uma jovem de 21 anos, oriunda do Morro da Coroa, indicada para mim através de uma Organização não Governamental que eu era parceiro de trabalho. Entretanto,no ato da entrevista, na casa da jovem, a mesma se encontrava com seus dois irmãos um rapaz de 17 anos, estudante do ensino médio e outra jovem de 19 anos que havia terminado o segundo grau. Diante deste cenário, entendi que o formato de entrevista individual iria ficar inviabilizado, em função do tempo. No entanto, obter a fala de cada um desses jovens, neste primeiro momento, era o objeto principal da pesquisa. Deste modo, propus aos jovens fazer uma conversa em conjunto, sendo que cada um poderia responder a mesma pergunta de acordo com seu ponto de vista. O processo ocorreu depois dos acordos feitos e cada um conseguiu colocar o seu ponto de vista sobre as questões. O fato da irmã de 21 anos estar na universidade talvez tenha deixado os outros dois irmãos um pouco refém de suas reflexões, mas de certo modo, conseguiram expressar seus pontos de vista sobre os assuntos abordados.

Após este processo, o passo seguinte era contatar outras pessoas que por ventura os jovens conhecessem e que morassem na comunidade, caracterizando a metodologia de “Bola de neve”. Eles ajudaram montado um grupo no whatsapp para que eu pudesse entrar em contato diretamente com esses jovens. Avisaram com antecedência sobre meu contato. Entretanto, quando eram colocados o teor da pesquisa “Segurança Publica e Cidadania”, os jovens desconversavam, dois disseram não ter a idade adequada, e outros quatro não responderam após serem esclarecidos os objetivos propostos. Foram diversas tentativas: tanto no whatsapp, como em sua maioria por telefone, sem qualquer resposta.

Até então entendi com normalidade a impossibilidade de não realização das entrevistas. Continuei a ligar para um deles que nunca estava disponível sempre fazendo algo, não podendo falar naquele momento. Desisti.

33

Por conta própria fui a busca de outros jovens que nunca havia tido contato, mas que seus pais eram amigos de infância e construíram suas vidas na localidade.Consegui conversar com uma jovem de 18 anos que de imediato, quando coloco a questão da pesquisa, começa a ficar arredia: “é para emprego?” Tive de responder, apesar do documento que explica essa pesquisa trazer tais detalhes, que a contribuição de seus relatos seria feita (caso aceitasse) de forma voluntária. Como ficou visível a indecisão para aceitar fazer parte do trabalho, sugeri que a mesma ficasse com o documento para ler melhor, apresentar para seus familiares mais próximos e depois eu ligaria para saber ao certo sobre sua decisão. Diversas ligações foram feitas sem retorno. Em algum momento, a jovem atendeu ao telefone rispidamente, e pediu para ligar depois, pois estava no médico. Outras ligações vieram e a partir daí nenhuma delas mais foi atendida.

Pelo fato de conhecer o território e pelo menos pessoas que compunham a minha geração dos anos 80, continuei a busca atrás de outros jovens dispostos a colaborar com a pesquisa. Cheguei até uma jovem de 21 anos, estudante de relações internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro.Fui até o local onde trabalha com os pais que são comerciantes. Os pais têm uma loja de distribuição de água e gás, tanto para o morro como para os bairros das redondezas de Santa Tereza, Rio Comprido e Catumbi. No primeiro encontro tudo foi muito tranquilo e solícito. A jovem leu todo o material que continham informações e procedimentos sobre a pesquisa e decidiu colaborar com tranqüilidade. Retornei no dia combinado, seria no mesmo local onde a abordagem fora feita. No entanto a jovem, apesar de solícita colocou-se extremamente arredia para a entrevista. Alegou não saber de fato se eu viria para a entrevista e que não teve como me avisar com antecedência. Entendi a principio que aquele encontro precisaria ser remarcado. Entretanto, para minha surpresa a jovem disse que não iria participar da pesquisa apesar de no primeiro encontro ter aceitado. Entendi que não queria se comprometer. Expliquei que, como estava no consentimento, ela poderia responder somente o que quisesse e que de forma alguma seria obrigada a responder aquilo que poderia entender como comprometedor. No entanto, essas argumentações não fizeram com que mudasse de ideia. Ressaltou no final que não era por ela mas sim pelo pai, receava por ele. Diante daquela decisão, disse para deixar como estava e que aquilo fazia parte da pesquisa. Naquele momento entendi de fato que tanto essa jovem como os demais que fiz contato, recusaram-se de fato a fazer parte da

34

pesquisa.

Ao sair do local de entrevista, comecei a entender que eu estava há muito tempo afastado da favela onde morei por trinta e cinco anos. Algo deveria estar acontecendo ali e os jovens estavam de fato com medo de falar sobre a questão. O que deveria estar ocorrendo na verdade? Comecei pensar na possibilidade de os jovens estarem sem pespectiva de futuro na favela, mesmo aqueles que não eram envolvidos com tráfico, os trabalhadores, etc. A questão seria a incerteza no território no que diz respeito à segurança. Contudo, ao invés dos adultos serem os mais apreensivos com tal situação, os jovens mostram ser aqueles que se sentem mais afetados no território. O universo do tráfico de drogas e o conflito entre policiais e traficantes parece hoje estar mais próximo da juventude, que desse modo gera um medo, e talvez outras gerações que moram também em território de favelas não cultivaram com tanta ênfase.

Por fim, após conversa com minha orientadora, resolvemos que o publico alvo da pesquisa não seria apenas os jovens, mas ampliar para pessoas que vivessem essa mesma realidade e estivessem dispostas a falar. A estratégia utilizada foi de ir até pessoas da minha geração e partir daí elas me indicariam outras pessoas para entrevista. Cheguei até um amigo de infância que foi com quem dei início a essa nova etapa do trabalho. Este amigo me indicou mais duas pessoas às quais foram entrevistadas e a partir dai as entrevistas seguiram; porém, a estratégia que utlizei foi de fazer as entrevistas fora do território. Não me sentia mais seguro em fazer nas casa das pessoas. Meus pais moram até hoje naquele território, são idosos pensei, estão totalmente vulneráveis. Ao mesmo tempo, eu mesmo depois das recusas, comecei a me sentir vulnerável naquele espaço. Entender isso não foi muito fácil, afinal, eu nasci naquele lugar, tenho ou tinha uma relação de intimidade e familiariadade com o território. Como assim eu me torno um estrangeiro de fato? Ou não consigo reconhecer mais o lugar? Ou as pessoas não são tão receptivas assim? Tive de repensar e me adaptar. Na verdade, nas discussões de orientação descobri o livro de Gilberto Velho : Observando o familiar, no qual o autor discute essa questão da proximidade, quando se propõe pesquisar um local que foi sua moradia e de seus pais durante muito anos, no entanto, a experiência da pesquisa revela para o autor a seguinte questão:

“ O fato é que dentro de uma de uma grande metróple, seja nova York, Paris ou Rio de Janeiro, há descontinuidades vigorosas entre o “mundo” do pesquisador e os outros mundos, fazendo com ele, mesmo sendo Nova Yorkino, parisiense ou carioca, possa ter experiencia de estranheza,não reconhecimento ou até choque cultural comparáveis a de

35

viagens a sociedades e regiõies exóticas” (VELHO, 2003, pag.127)

Foi positivo fazer a entrevista fora do território. As pessoas que se propuseram vieram de braços abertos, acredito até pelo fato de não estarem próximas ao local onde moravam, podendo desse modo falar de coisas que dentro da favela ficaria mais delicado. Utilizei então espaços de Santa Teresa, fiz entrevistas no IFCS19, utilizei uma de suas salas, me identificando como aluno do curso mestrado da UFF e assim consegui dar conta das entrevistas agendadas.

Após a última entrevista, me afastei do campo e continuei mantendo contato apenas por telefone via mensagens com meus pais e com o amigo que me abrira caminho para as outras entrevistas. Não sei se foi um exagero, mas nas vezes em que subi o morro depois das entrevistas, evitava entrar pela frente principal, pois encontraria com muita gente, inclusive com as pessoas as quais tive problemas com recusas. Entrava então pela parte de trás do morro onde estão posicionadas as instalações da UPP. Neste local só há uma escadaria para chegar à casa de meus pais e o movimento de pessoas é muito pequeno.Na verdade, hoje este local funciona mais como espaço de trânsito: não há mais biroscas funcionando, pessoas não param mais ali, somente os policiais fazendo plantão.

O efeito causado pela minha figura nas pessoas que entrevistei foi muito positivo e ao mesmo tempo, sob meu ponto de vista, angustiante. Todos eles expressavam um olhar e fala sobre mim, afirmando que eu estava fazendo um trabalho bonito, que deu certo, que eles gostariam de fazer a mesma coisa também. Isso fica claro em alguns relatos no final das entrevistas quando alguns deles dizem:“Dá vontade de ligar pro disque denúncia”, ou “Cara,

eu moro lá, eu tenho família lá, não posso me comprometer”.Na verdade eu não conseguiria falar

de outra realidade enquanto cientista social. Todo esse drama do ficar calado e querer fazer alguma coisa me acompanhou por muitos anos. Vi na academia a possibilidade de fazer algo e ao mesmo tempo, sem que eu esperasse essa experiencia acabou virando minha catarse, pois descobri o quanto sou estrangeiro num espaço que a vida inteira me foi íntimo e familiar.

Entendi o quanto os indivíduos que moram neste território no que diz respeito à liberdade, não a exercem de fato. O medo ronda as relações e as atitudes desta população que veem, mesmo nesta política de intervenção frágil, a possibilidade de terem certa dignidade e paz

19 Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, localizado no Largo de São

36

no seu território. Dignidade no sentido de fazerem as pessoas entenderem que na favela não existem somente “marginais”, mas pessoas de “bem” como afirmam nas entrevistas. Chamo a atenção para o fato de que estamos no século XXI e que esse discurso do criminoso, marginal da favela tem início no Brasil a mais ou menos dois séculos atrás, quando negros deixaram de ser escravos, quando as cidades começaram a crescer e urbanizar-se, quando as industrias tomaram à cena no lugar das ferramentas rústicas do campo, etc. Entretanto, temos esta estrutura de pensamento ainda muito forte no momento atual.

Por outro lado, o olhar para a realidade de praticamente todos os entrevistados, sob meu ponto de vista, era extremamente parecido com o pensamento da maioria da população brasileira. No que diz respeito à justiça, não havia nada novo, específico para aquela realidade, mas sim que a justiça, a lei deveriam cumprir o seu papel. Essa era a reivindicação na maioria das falas. O grande ressentimento era saber que a polícia não estava ou não está cumprindo o seu papel que é de promover a segurança, o direito de ir e vir das pessoas, a liberdade de fato. Nada disso, segundo os entrevistados estava acontecendo no território. A eminência de que alguma coisa poderia acontecer a qualquer momento aparece na maioria das falas e desse modo, a idéia de que aquela política de intervenção era algo sem muita substância, sob o olhar particular de cada um dos entrevistados se dava como evidente.

Algumas semanas depois, em um sábado a noite, o Morro da Coroa foi invadido por uma facção rival que, segundo alguns dos entrevistados (conversei pelo Whatsapp), eram do Comando Vermelho, facção criminosa. O Morro da Coroa até então era comandado por outra facção intitulada ADA (Amigos dos Amigos) há anos, assim como todo o Complexo de São Carlos. O governo do Estado no que diz respeito à Segurança Pública, procurou construir um cinturão de segurança nas imediações do Catumbi e Rio Comprido. Coincidentemente esta área é a que abriga os desfiles das escolas de samba todo ano no Sambódromo, local que reúne centenas de pessoas principalmente estrangeiros que prestigiam esse evento que movimenta milhões na cidade, durante o período de carnaval.

O que foi relatado pelos entrevistados no que se refere a vivências marcadas pelas armas pelo tiroteio, pelas invasões de outras facções, algo que até então estava na memória e na apreensão de cada um foi o seguinte: Segundo informações, o Fallet invadiu a Coroa. Durante toda a madrugada de sábado para domingo houve intensa troca de tiros entre traficantes rivais.

37

No total, oito pessoas morreram entre traficantes e moradores. Na rua Itapirú, local de acesso entre Catumbi e Santa Teresa, informações diziam que adolescentes foram feitos de escudo em troca de tiros com a polícia. A tensão, o medo tão temido pelos entrevistados tomou a cena do morro novamente.Tive a oportunidade de subir o morro em um desses dias tensos, o que constatei foi que em cada esquina, como em momentos passados a conversa girava em torno da invasão.

“o morro virou”, “o morro virou”, estes eram os ecos ouvidos pelas pequenas vielas

acrescentados de detalhes da invasão.

A intervenção policial se deu no Morro da Coroa pela manha de domingo. Pelas informações, a parte mais alta do morro, justamente onde funcionava o DPO, foi ocupada pelos traficantes rivais. Deste modo, a parte mais alta do morro e parte de trás, eram os locais que sofriam intenso tiroteio e tensão. O bairro de Santa Teresa, também na parte mais alta chamada de Dois Irmãos, especificamente no Largo do França, começou a ser ocupado por policias que realizavam blitz nas ruas do bairro.Neste sentido, os moradores tanto de dentro das favelas ou comunidades, moradores do bairro de santa Teresa, voltam a ficar refém do conflito armado e da violência do tráfico de drogas nos arredores.O espaço perigoso está de volta. Na verdade, talvez nunca tenha saído dali, daquele lugar.

38