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CAPÍTULO 4 – O MOMENTO DAS ENTREVISTAS

4.2 SOBRE SER CIDADÃO E CIDADANIA

A pergunta “O que significa ser cidadão?” também trouxe importantes reflexões. Os primeiros entrevistados tiveram dificuldades de responder essa pergunta. O entrevistado B respondeu pragmaticamente que “ser cidadão é andar dentro da lei, ser ético, cumprir a lei”. Diante dessa dificuldade sentida, que começou a me causar dúvidas se a pergunta estava clara correta, resolvi dar sinais de qual era o objetivo da pergunta, a ponto então de eu ter que formular uma outra que de fato estivesse mais próxima do universo dos entrevistados. Assim, elaborei a seguinte questão: “Vocês se sentem enquanto jovens cidadãos valorizados dentro da

comunidade?”

“Eu costumo dizer assim, o fato de não ter mais confronto e transitar sem dar de cara com os garotos, já me sinto tranquila, por um lado valeu a pena. Era horrível ficar ouvindo tiroteio, agora ser valorizado enquanto cidadão não, o governo não entrou aqui e valorizou o jovem"(A, 21 anos)

Pensar cidadania no Brasil é algo bastante complexo. A primeira pergunta que talvez pudesse ser feita seria sobre que critérios os jovens seriam valorizados? Para ajudar na reflexão sobre essa questão, trago uma discussão desenvolvida por Wanderley Guilherme dos Santos:

“É quando o espaço público, social, se reduz ao puro conflito ou, na melhor da hipóteses, à diferença, que o papel pedagógico do poder adquire suprema responsabilidade. Por sua centralidade e visibilidade, o poder político se afirma como matriz de valores e paradigmas de conduta.Transições sociais aceleradas serão mais ou menos acompanhadas de “ desordem” de todo o tipo em função da qualidade do exercício do poder e das normas que pautam esse exercício. Nas condições de estado da Natureza, o poder político tanto pode colaborar para gerar valores que restabelecem a solidariedade e a confiança sociais, reduzindo o conflito a níveis suportáveis, como, ao contrário, estimular o abuso e toda e qualquer tentaiva de satisfação pessoal, independente do direito" (SANTOS,1993, pag.77).

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que se configurasse outras relações que, de fato, garantiam interesses particulares e regidos também por forças particulares, que garatiam a liberdade e o direito a quem ou como lhes conviessem. Neste sentido, não temos o território de favelas indivíduos que de fato tem garantidos por parte de um poder idôneo, maior, reconhecidamente legal, a possibilidade de se exercer a liberdade baseada no princípio do direito igual para todos. Sendo assim, quando os entrevistados dizem que o Estado não os valorizou, neste caso então dizem que não lhes foram dadas condições mínimas reguladoras por um poder legal, para que os mesmos tivessem oportunidade de inclusão.

Nas entrevistas realizadas com aqueles na faixa dos 30 a 50 anos, temos a fala de D. Em seu entendimento, a noção de cidadania vem marcada pelo direito de ir e vir (ou a falta desse direito), bem como a cor da pele. Estas são as impressões do entrevistado sobre o conceito. Neste sentido a necessidade de que não haja discriminações principalmente de cor e que não se restrinja o trânsito dos indivíduos, são elementos principais do entrevistado para que o mesmo possa viver como cidadão. Assim, ao contrário do senso comum que exclui a questão da cor como problema marcado pela ausência de cidadania, o entrevistado ressalta a questão do preconceito racial como um entrave no que diz respeito ao exercício pleno da cidadania.

O entrevistado E. argumenta que:

“O problema é mais embaixo. Assim, o conhecimento lhe liberta e te torna muito crítico. Como eu lhe falei, eu venho estudando muito sobre política. O tráfico de drogas não saiu da comunidade, foi o fuzil que saiu da comunidade.” (E, 32 anos).

Nesta pergunta, o entrevistado não apresenta uma fala inocente no que diz respeito ao que ocorre hoje na sua comunidade. Apresenta na verdade suposições sobre a política de segurança publica instalada no território. Neste sentido, fica claro que o entrevistado não vê ainda este processo como legítimo e que, segundo seu ponto de vista, esta política serviu sim para a comunidade para alguns propósitos como a diminuição do armamento pesado. Penso então no trabalho de Luiz Antonio Machado, quando pergunta: “Afinal, qual é a das UPPs?” O autor questiona se esse processo vem para auxiliar de fato na construção da cidadania ou na verdade é uma política de regulação do território. Importante fazer esta pergunta pelo fato da própria população local, a seu modo, construir seu próprio questionamento sobre as ações da polícia. Neste sentido, o entrevistado me faz entender que havia sim uma outra expectativa em relação ao

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processo chamado de pacificação no território. O entrevistado F define como cidadão:

“Cidadão, ele tem que, na minha visão, ele tem que ter respeito ao próximo, tem que ter, o respeito e educação familiar, tem que ter a consciência de que se ele fizer, tentar, ou influir para que uma coisa dê errada, ou outra pessoa faça errado que vai prejudicar um outro cidadão, ele tem que saber que ele vai se punido. Tem que ser protegido pelas leis democráticas, pelo governo, pelo estado, tem quer ser acolhido por isso aí, a lei tem que punir dentro dos conforme da lei, se roubou com arma, com arma, não fazer o que fazem, não botar o que botam hoje, um monte de coisas, ela erra, ela peca nisso. Mostrar pro cidadão, quando fez certo,o Estado tem que se redimir, pedir desculpa.” (F, 40 anos)

No que diz respeito à cidadania, diversos estudos na sociedade brasileira, apontam para uma relação de privilégios entre grupos, territórios, etc. Roberto da Matta quando reflete sobre a noção de indivíduo e pessoa, chama a atenção para essas questões tão comuns no Brasil. O indivíduo seria aquele que estaria sujeito às leis, deste modo, seria o que não tem influência na sociedade, não tem uma boa rede de amigos; ao contrário da pessoa que tem todo um aparato estrutural que garante o seu distanciamento das garras da justiça. Os privilégios, as preferências não estão ao alcance dos indivíduos mas sim das pessoas. Neste sentido, quando o entrevistado entende que ser cidadão é ter acesso a uma justiça que atue de modo igual para todos, aponta para o fato de como o território de favelas é marcado pela lógica do indivíduo, aquele que está sujeito às leis e que não é reconhecido na sua integridade pela sociedade.

James Holston, para ilustrar a fala do entrevistado e as reflexões de Da Matta, trás a seguinte questão:

“Toma o caso do Brasil como paradgmático de um tipo de cidadania que todas as nações desenvolveram em algum momento e que permanece entre os mais comuns :uma cidadania que administra as diferenças sociais legalizando-as de maneiras que ligitimam e reproduzem desigualdade. A cidadania brasileira se caracteriza, além disso, pela sobrevivência de seu regime de privilégios legalizados e desigualdades legitimadas" (HOSTON, 2013, pag. 28)

Ao ser indagado se se sentia valorizado enquanto cidadão, o entrevistado F. responde:

“Eu sempre me senti, é de mim. Aquelas épocas brabas!, policiais na Baronesa parando todo mundo, sempre me senti valorizado e seguro de si. Melhorou mais,

85 ampliou mais, valorizou mais a minha casa. O tiroteio que era entre rivais diminuiu muito, a gente fica mais a vontade de andar pela comunidade. Ficou até vazio demais! Ficou mais tranquilo. A UPP ganha ponto comigo. Nesse ponto ai ela ganha comigo, pra chegar mais tarde de um trabalho!. Eu gostaria muito que continuasse assim pra melhor” (F, 40anos).

A questão que colocaria aqui nos remete novamente ao questionamento feito por Machado, mas eu reformularia a perguntaria e diria: Afinal qual é a da nova política de segurança pública em território de favelas, que tem a UPP como instrumento de ação? Pela fala do entrevistado vê-se que o problema grave do território, o fato de se estar exposto ao conflito armado diminuiu, não acabou. Por outro lado, no que diz respeito à especulação imobiliária, o próprio território de favelas se beneficiou com essa questão quando, tanto os imóveis do “asfalto”, localizados ao redor tiveram uma valorização significativa, como os do territórios de favelas “pacificados”. Entretanto, concordando com os questionamentos de Luiz Antônio Machado; seria somente esta a questão? Ordenar o território, estabilizá-lo dentro da conjuntura oficial ou ir mais além? Transformar este território e os indivíduos em agentes autônomos, capazes de reconhecerem e reivindicar por si mesmos o seus direitos, a fim de poder por eles próprios, em parceria com o poder publico, gerenciar seu próprio território, baseado na inclusão social, isto é, a mesma lei do asfalto também deve ser a mesma lei na favela?

A entrevistada G associa a falta de cidadania à questão da marginalidade, isto é, indivíduos que estão à margem da sociedade, à mercê das leis como coloca Roberto da Matta. Neste caso, segundo ela, todas as mazelas da sociedade são atribuídas a esse indivíduo. Este é o ladrão como diz, o contraventor. Não há uma relação com a condição desse sujeito com a questão da falta de oportunidades, por exemplo, que pode ser um fator preponderante para o papel ou posição que é colocado dentro da sociedade, que de fato não é colocado em questionamento.

“Eu acho que eu levo pra questão de ser cidadão, ser indivíduo, ser marginalizado. Porque as pessoas escutam a palavra marginal e acham que ele é o ladrão,ele é o contraventor, Não, marginalizado são todos aqueles que vivem à margem da sociedade. Ser cidadão então é ser consciente dos seus direitos e dos seus deveres. Se eu tenho que pagar um IPTU, se eu tenho que pagar uma água e entendo que aquilo que eu pago é um imposto e que naquele imposto diz que eu tenho direito ao lazer e a cultura, educação, saúde, e ao mesmo tempo eu não estou vendo esta cidadania voltar pra mim”. (G, 32 anos)

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Na verdade de modo determinista e conservador, no Brasil, o cidadão era considerado aquele que estava dentro das relações formais, impostas pela sociedade. Assim, a carteira assinada, o local de moradia, os laços sociais, a cor do sujeito, a vestimenta definiam o indivíduo e o “cidadão de bem”, termo resgatado atualmente nos discursos extremamente reacionários que tem se propagado ultimamente no país.

O entrevistado D ao ser perguntado se se sentia valorizado, remete essa questão à discussão do IPTU:

“Agora eles tão querendo dar registro do IPTU. Eles querem parecer fazer urbanização. Mas não é válido diante do projeto que foi apresentado. A comunidade ia ser ligada à Santa Teresa, não ia ser algo a parte. Dá uma tristeza porque eu acho o morro pequeno, mas e muito agradável! A vista que tem ali é muito agradável! Eu gosto muito dali, mas a corrupção é um mal enraizado que não tem como acabar. Se entrar outro projeto ali, vai ter outra corrupção!” (D, 46 anos)

Várias questões são colocadas a partir do ponto de vista do entrevistado. O que me chama a atenção é fato de em todo o seu discurso, solicita a presença do Estado. O ministério Público, órgão que parce soar com maior credibilidade para o entrevistado, aparece como elemento central em todas as suas falas. O que é mais interessante é como apresenta a dinâmica de possibilidades de funcionamento da associação de moradores. O estado deve intervir, deve garantir o funcionamento da associação. Ao que parece, a presença de um poder para além do tráfico de drogas é o que deveria vigorar dentro do território e não foi o que aconteceu. Na verdade, não aconteceu.

Há uma consciência do ponto de vista do entrevistado de que o Estado, Prefeitura “maquiaram” a localidade. Segundo o entrevistado, os projetos sociais que entraram não foram fortalecidos pelo Estado. Novamente a figura do poder público como responsável pelo desenvolvimento do território é reivindicada. A presença de políticas sociais para além da força policial é apontada com uma necessidade para que de fato o território se transforme. No próximo item, as reflexões se voltam para esse território.

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