• Nenhum resultado encontrado

6 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS

6.2 O processo de conscientização

Com base nos depoimentos da pesquisa, fica visível que, nas rodas de diálogo realizadas na comunidade, houve um processo de conscientização. As necessidades e carências enfrentadas pelos moradores motivaram diversos líderes a realizarem, sistematicamente, encontros com os moradores, objetivando refletir sobre os problemas do bairro. “A comunidade se debruçando sobre os seus problemas, sofrendo na pele os vários tipos de carências, aos poucos vai passando por um processo de tomada de consciência.” (Entrevistado Reginaldo Veloso).

Os encontros para refletir sobre as problemáticas enfrentadas se realizavam em várias situações e lugares, tendo sempre alguns líderes mediando o processo de sensibilização de que os indivíduos são parte de uma comunidade, por isso devem sempre pensar no coletivo.

Segundo Freire (1980), as práticas educativas devem ser um processo que permita ao indivíduo um posicionamento crítico perante o que é oferecido pelas elites, e ao mesmo tempo tenha a habilidade para escolher o melhor caminho. De acordo com a entrevistada Cristyna Cardoso: “Eram anseios da comunidade, a gente apenas decodificou esse anseio, orientando que existem vários caminhos e que eles deveriam escolher o melhor caminho para seguir.”

A teoria freireana nos revela que não há conscientização sem ação e reflexão. O trabalho que a igreja do Morro realizava era pautado pelo método “Ver, Julgar e Agir”. Esse método consiste em “Ver” o problema existente, ou seja, cada um emitia sua opinião acerca do tema em questão; “Julgar”, consistia na reflexão dessa realidade à luz do evangelho; “Agir”, eram as ações que podiam ser realizadas para solucionar esses problemas.

Tinha muito aquela teoria do ‘Ver, Julgar e Agir’, [...] como é que você pode ver a sua comunidade [...] vamos fazer uma reflexão dos fatos, qual é a

situação, e como a gente vai agir diante dessa situação. A gente viu, a gente está julgando, e agora qual vai ser o passo de você como cristão, usando o exemplo de Jesus Cristo, que não se intimidou diante dos poderosos, como você vai poder agir, que contribuição você pode dar para melhorar a sua qualidade de vida. (Entrevistada Mauricéia Santiago).

As celebrações realizadas pela igreja do Morro eram um momento para se pensar coletivamente acerca dos problemas vivenciados na comunidade. A Bíblia era utilizada como instrumento de reflexão e tinha como fundamento principal que o verdadeiro cristão deveria ter compromisso com as dificuldades enfrentadas pelo bairro. Dessa forma, percebemos que existia uma unidade dialética entre reflexão e ação.

Antigamente a gente fazia grupo de estudo para quem fosse se crismar ou fazer Primeira Comunhão, estudava a Bíblia para entender o seu sentido e depois a gente ia se crismar. Na Crisma, o padre Reginaldo dizia que a gente tinha que se comprometer com a luta da comunidade [...] cada um que se crismou ou fez Primeira Comunhão se identificou com algumas lutas, [...] daí a gente começou a participar das lutas da comunidade. (Entrevistada Rose Mary).

Tendo como ponto de partida a reflexão acerca do Evangelho, a comunidade foi incentivada a ter sua organização política em busca de melhores condições para a vida do povo.

Segundo a teoria freireana, a participação política nas lutas sociais permite que o indivíduo transite de uma consciência ingênua para uma consciência crítica. De acordo com Freire (1981), a consciência crítica é resultado de uma educação dialogal. No caso desta pesquisa, houve um processo educativo baseado no diálogo, em que os líderes atuaram como mediadores na comunidade. Esses líderes tinham consciência das estruturas opressoras da sociedade e atuaram no sentido de contribuir para que os moradores que não alcançavam esse nível de consciência compreendessem as forças sociais da sociedade burguesa.

Os líderes comunitários não foram os “salvadores da pátria”, parafraseando Freire, suas intervenções não tinham a intenção de transmitir uma concepção da realidade como verdade absoluta. O objetivo era de, pelo diálogo, estimular a população a ter uma compreensão mais crítica do contexto na qual ela estava imersa.

Esta prática implica, por isso mesmo, que o acercamento às massas populares se faça, não para levar-lhes uma mensagem ‘salvadora’ em forma de conteúdo a ser depositado, mas, para, em diálogo com elas, conhecer, não só a objetividade; os vários níveis de percepção de si mesmos e do mundo em que e com quem estão. (FREIRE, 1981, p. 101).

Segundo o depoimento de Paulo Santana: “Quando a gente vai mobilizando, esse povo vai acordando e entendendo que ele é um cidadão e que tinha direitos. Havia níveis e níveis de consciência.”

Dessa forma, podemos inferir que esses líderes revolucionários tiveram uma atuação bastante expressiva. Com base em Gramsci, eles assumiram o papel de intelectuais orgânicos, pois lutaram contra a medicina hegemônica.

Quando nos referimos a intelectuais orgânicos, estamos pondo em evidência as pessoas coletivas da comunidade, como membros da igreja, profissionais da saúde voluntários e outros militantes que tiveram grande importância para o movimento popular de saúde.

A igreja tinha uns sermões bons, a homilía é recheada de reflexões. Tinha um grupo muito grande de pessoas que tinham consciência desses direitos e fazia um trabalho de formação com o restante da população. O agente de saúde tinha o papel de trabalhar a consciência do cidadão.

Enquanto a igreja progressista do Morro, através da Bíblia, incentivava os cristãos a refletirem sobre os problemas do bairro, os profissionais da saúde e os agentes de saúde voluntários utilizavam as práticas educativas em saúde como ferramenta de reflexão, assim, na visão do entrevistado Jairo Gomes, “se fazia uma leitura política de porque a gente vive numa situação tão difícil.” Desse modo, fica claro que as práticas educativas em saúde tinham por base uma forte dimensão política.

As práticas educativas realizadas com base no biologicismo tinham como foco o tratamento da doença, negando o diálogo entre educador e educando, dessa forma, contribuindo para a alienação dos sujeitos envolvidos. Esses profissionais influenciados pela medicina tecnicista tratam os sujeitos como meros seguidores de suas determinações, fazendo prevalecer a sua voz, o que Freire (1980) designa de “cultura do silêncio”.

“Esse olhar de médico, não eram todos, mas a maioria só visava o lucro na medicina naquela época. [...] Hoje, mesmo com o SUS, o paciente é dividido em partes, ele é atendido por parte do corpo.” (Entrevistada Rose Mary).

Os profissionais que atuaram na comunidade voluntariamente tinham outra concepção de saúde. Para eles, o tema trabalhado estava relacionado com a realidade histórica da comunidade. Sendo assim, a reflexão sobre as necessidades dos moradores sempre conduziam a uma ação em benefício da comunidade, conforme podemos observar no depoimento da entrevistada Rose Mary: “A luta foi grande, a gente discutia o que queria em Casa Amarela. Depois marcava uma reunião, tirava uma pequena comissão com os representantes de cada

área e ia discutir com o secretário de Saúde na prefeitura.” Na visão do entrevistado Jairo Gomes: “A oração era importante, mas tinha de estar ligada também a um engajamento.”

Fica claro, assim que, tanto as intervenções da igreja progressista do Morro quanto a dos profissionais da saúde voluntários, tinham uma metodologia baseada na práxis. Sobre essa questão, Freire (1981, p. 57) afirma:

A reflexão e a ação se impõem, quando não se pretende, erroneamente, dicotomizar o conteúdo da forma histórica de ser do homem. Ao defendermos um permanente esforço de reflexão dos oprimidos sobre suas condições concretas, não estamos pretendendo um jogo divertido em nível puramente intelectual. Estamos convencidos, pelo contrário, de que a reflexão, se realmente reflexão, conduz à prática.

Freire (1981) enfatiza a importância da práxis, pois, quando a ação não está relacionada com a reflexão, tudo não passa de simples ativismo, que provoca a falsa consciência da realidade.

“Por isto é que esta educação, em que educadores e educandos se fazem sujeitos do seu processo, superando o intelectualismo alienante, superando o autoritarismo do educador ‘bancário’, supera também a falsa consciência do mundo.” (FREIRE, 1981, p. 67). Segundo Freire (1980), o fundamental é que os homens, durante uma discussão, vejam-se também como criadores de cultura, esse é o ponto inicial da conscientização. Aí está a importância de uma educação libertadora:

A importância do saber popular, desde que as pessoas passem por um processo educativo, que ajuda elas a descobrirem a importância dos seus saberes, o saber popular começa a ter uma importância maior desse ponto de vista, o pessoal toma consciência de que sabem coisas importantes, que não são apenas beneficiárias de quem vem fazer algum benefício, mas são também sujeitos de um saber que, com o saber científico, pode favorecer o bem de todos. (Entrevistado Reginaldo Veloso).

Podemos citar na comunidade a habilidade que alguns moradores tinham em utilizar as plantas medicinais como recurso no tratamento da doença. Essa era uma forma de resgatar dessas pessoas a dignidade roubada pela sociedade capitalista; a comunidade compreender a importância dos seus saberes; muitos desses moradores eram analfabetos, entretanto detinham muitos conhecimentos populares. Desse modo, o analfabeto:

Descobriria que tanto ele como o letrado tem um ímpeto de criação e recriação. Descobriria que tanto é cultura o boneco de barro feito pelos artistas, seus irmãos do povo, como cultura também é a obra de um grande escultor, de um grande pintor, de um grande místico ou de um pensador. (FREIRE, 1967, p. 109).

Esse posicionamento sobre o conceito de cultura rompe com um paradigma estabelecido pela elite, evidenciando que todos os homens, independentemente de classe social, são produtores de cultura; contribuem, portanto, para a transformação do mundo.

Na visão de Freire (1980), o processo de conscientização, tem como ponto inicial o homem iletrado com sua forma particular de compreender a realidade, que é uma compreensão do tipo mágica. Segundo o autor, a educação pode contribuir para a mudança na sociedade, substituindo essa compreensão ingênua por uma compreensão crítica. Para que isso seja possível, o educador deve, nas suas práticas, utilizar um método que convide o homem à crítica.

Segundo o autor, é preciso fazer com que o homem percorra um caminho para a tomada de consciência. Nesse caminho é imprescindível que o homem reconheça seu papel ativo na realidade, descobrindo-se como criador de cultura e autor da própria história.

No caso do Morro da Conceição, foi pelo conhecimento das ervas medicinais que, segundo Freire (1980, p. 54): “O analfabeto chega a compreender que a falta de conhecimento é relativa e que a ignorância absoluta não existe.” Sendo assim, a comunidade considerava que “nós éramos agentes comunitários de saúde [...] Tinha Dona Graciema que, do ponto de vista da escolaridade, era analfabeta, mas ela sabia fazer muitos remédios” (Entrevistada Rose Mary).

Essa experiência do Morro da Conceição nos remete a Gramsci (1982) quando afirma que todos os homens são intelectuais. Essas pessoas da comunidade detinham uma grande sabedoria popular; eram criadoras de cultura, tanto quanto os indivíduos oriundos da classe favorecida. Esse ponto é crucial para a afirmação de que o saber popular é tão importante quanto o saber científico.

A educação problematizadora baseada em Freire concebe o homem como ser histórico e inconcluso, isto é, em permanente processo de construção. À medida que os indivíduos são motivados a refletir sobre o mundo, vão tomando consciência de seu inacabamento e, nesse sentido, são capazes de re (criar) sua cultura e sua história. Segundo Freire, a cultura é a aquisição sistemática da experiência humana de maneira crítica.

A criticidade, conforme Freire (1981), significa o desenvolvimento da tomada de consciência do sujeito em relação ao seu contexto social, superando a esfera espontânea de

apreensão da realidade para alcançar a esfera crítica. Entretanto, o autor destaca que nem sempre a tomada de consciência resulta em uma conscientização.

Compreendemos que, embora houvesse um processo de tomada de consciência por parte de muitos moradores, reconhecemos também que nem todos desenvolveram uma conscientização de fato. Enquanto alguns, através da unidade reflexão e ação, assumiram uma postura de compromisso com as lutas sociais, outros buscavam apenas que suas necessidades pessoais fossem atendidas, não se comprometendo como cidadão pela luta por conquistas mais amplas para toda a sociedade.

O que podemos inferir é que as pessoas que se organizavam no âmbito da igreja e do conselho de moradores, tinham um nível de consciência mais elevado em relação ao restante da população, conforme depoimento do entrevistado Jairo Gomes: “Quando eu falo de comunidade, estou me referindo àquelas pessoas que se organizam, essas pessoas tinham uma melhor consciência.”

Não é objetivo desta pesquisa analisar o nível de consciência que se alcançou em decorrência do processo educativo realizado na comunidade. Faz-se necessário, entretanto, destacar alguns pontos importantes. Compreende-se que houve, por parte da comunidade, uma tomada de consciência, contudo, cabe observar que houve a desarticulação do movimento de saúde. Um dos motivos desse enfraquecimento se deve à cooptação dos principais líderes pelo poder público. Nos dizeres de Freire (1980), teriam os oprimidos se convertido, eles próprios, em opressores? Essa é uma pergunta que envolve diversos questionamentos, e não temos a pretensão de respondê-la. Contudo, Freire (1980), em sua teoria, explica um fenômeno que merece ser ressaltado. O autor cita o exemplo do camponês que, promovido a chefe, se torna tirano para seus antigos camaradas. Exemplifica, também, pontuando que os homens desejam a reforma agrária não com o objetivo de serem homens livres, e sim para serem donos da terra e, desse modo, tornarem-se patrões de outros trabalhadores. Isso ilustra o fato de que: “Os oprimidos, num dado momento de sua experiência existencial, adotam uma atitude de ‘adesão’ em relação ao opressor. A própria estrutura do seu pensamento viu-se condicionada pelas contradições da situação existencial concreta que os manipulou.” (FREIRE, 1980, p. 57).

Os dados da pesquisa indicam que esses líderes passaram de militantes a agentes do poder. Segundo a entrevistada Rose Mary: “Teve alguns conflitos porque alguns companheiros de luta vestiram a camisa do poder público e esqueceram que eles também eram do movimento popular, e aí teve choque.” Segundo Freire (1980), a alienação dos oprimidos faz com que esses queiram imitar o opressor.

Isso nos faz refletir sobre que tipo de revolução ocorreu no Morro da Conceição, pois, segundo Freire (1980, p. 58): “A revolução que transforma uma situação concreta de opressão, lançando o processo de libertação, deve ainda enfrentar este fenômeno.”