• Nenhum resultado encontrado

2 A ABORDAGEM HISTÓRICO-CULTURAL, O DESENVOLVIMENTO HUMANO E A EDUCAÇÃO

2.1 O PROCESSO DE HUMANIZAÇÃO, O TRABALHO E A EDUCAÇÃO

Para embasar seus estudos sobre o desenvolvimento humano, Vigotski tomou alguns pressupostos de Karl Marx sobre a base material e histórica da constituição do homem e da organização social no modelo capitalista de produção.

Um pressuposto fundamental defendido por esse estudioso, e que contribui consideravelmente para este estudo, é o de que a pessoa não nasce humana; constitui-se a partir das relações estabelecidas com o meio em que vive. Como afirmam Marx e Engels (1998, p. 11, grifos dos autores) no livro “A ideologia alemã”:21

Como exprimem a sua vida material, assim os indivíduos são. Aquilo que eles são coincide, portanto, com a sua produção, com o que produzem e também com o como produzem. Aquilo que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção.

Esse princípio é defendido pela perspectiva histórico-cultural, que considera o homem como ser social e histórico. Tendo como ponto de partida o materialismo histórico dialético, tal perspectiva afirma que o homem transforma o ambiente e por ele é transformado. Essa forma de conceber o humano nos revela o movimento dialético existente em sua constituição. Assim, só podemos entender como o homem se constitui localizando-o nas condições concretas de vida, conhecendo a forma como os sujeitos se apropriam do mundo, as relações estabelecidas entre os homens e o desenvolvimento dos processos psicológicos por meio de atividades mediadas.

Marx e Engels (1998, p. 10) reafirmam a premissa da base material que caracteriza a existência humana, enfatizando que:

As premissas de que partimos não são bases arbitrárias, dogmas; são bases reais que só podemos abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, ação e suas condições materiais de existência, tanto as que eles já       

21 “A ideologia alemã” (1845-1846) foi uma das primeiras obras que os autores escreveram a quatro mãos. Nela

encontraram prontas, como aquelas engendradas de sua própria ação. Essas bases são, pois, verificáveis por via puramente empírica. A primeira condição de toda história humana é, naturalmente, a existência de seres humanos vivos. A primeira situação a constatar é, portanto, as relações que ele gera entre eles e o restante da natureza.

Nesse sentido, são as condições concretas de vida do homem na sociedade e sua relação com outros homens que determinam a existência humana, possibilitando-lhe a construção de sua história por meio de suas experiências e produção no grupo social do qual participa.

Marx e Engels (1998, p. 31) expõem ainda:

A produção das ideias, das representações, da consciência, está em princípio diretamente entrelaçada com a atividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparece aqui ainda como direta exsudação do seu comportamento material [...]. Os homens são os produtores das suas representações, ideias etc., e precisamente os homens condicionados pelo modo de produção da sua vida material, pelo seu intercâmbio material e o seu desenvolvimento posterior na estrutura social e política.

Esses mesmos pensadores afirmam que, no processo de sua constituição, o homem se diferencia dos demais animais a partir do momento em que começa a produzir, pelo trabalho, os meios de vida que lhe permitem satisfazer suas necessidades básicas (comer, beber, ter habitação etc.). A relação do homem com a natureza é mediada pelo trabalho. Nesse processo, o homem produz indiretamente sua própria vida material, produz história e se produz também como homem na medida em que, ao mudar as condições de existência, estas também afetam as condições de produção de sua própria vida. É pelo trabalho que o homem produz seus meios de vida e conhecimentos para avançar no processo de transformação ou adequação da natureza às suas necessidades.

Marx e Engels (1998) explicam que o homem não é um ser passivo e, tampouco, a natureza, um domínio intocado por ele, mas o contrário: o homem real revela-se como um ser essencialmente ativo, prioritariamente sob a forma de trabalho, e a natureza, por sua vez, como uma realidade inteiramente modificada no curso da história, a partir do trabalho do homem. O desenvolvimento de funções específicas, culturais, bem como a origem da sociedade são resultantes do surgimento do trabalho – este entendido como ação/movimento de transformação – e é pelo

trabalho que o homem, ao mesmo tempo em que transforma a natureza para satisfazer as suas necessidades, se transforma também.

Os estudos de Marx e Engels (1998) nos ajudam a entender não somente alguns aspectos fundamentais do processo de humanização, mas também de que forma a sociedade foi se modificando no decorrer da história e o que essas mudanças têm provocado na própria constituição do homem.

Um aspecto que se destaca em diferentes períodos históricos é a existência, em uma mesma sociedade, de grupos que exercem poder sobre outros, assujeitando-os e explorando-os. Emergem, assim, condições desiguais de vida, de desenvolvimento e de educação. Nesse contexto, a escola surge como uma instituição que é perpassada pelo jogo de forças presentes em uma dada sociedade.

No mundo ocidental, a escola emergiu e se difundiu fundamentalmente com a função de transmitir às novas gerações conhecimentos, valores, comportamentos e modos de ser tópicos do grupo social a que ela pertence. Numa sociedade dividida em classes com interesses antagônicos, as práticas instituídas no interior da escola refletem as contradições que perpassam as relações sociais fora dela, no âmbito dos diferentes domínios políticos de tomada de decisões e dos espaços encarregados da produção e manutenção da vida material. Desconsiderar essa função primeira da escola em sua relação com a sociedade pode levar a uma visão parcial das demandas, práticas e desafios efetivamente instituídos nessa instituição (OLIVERA, 2017, p. 250)

Esse lugar que a escola ocupa na sociedade tem implicações para a educação das novas gerações.

Se tomarmos a realidade brasileira, veremos que atualmente a sociedade está formada a partir de uma lógica que naturaliza as relações de exploração, cria condições precárias de vida para a maior parte dos cidadãos, pois eles pouco participam das riquezas que ajuda a construir. Nesse contexto, apesar de toda a luta para garantir legalmente o acesso à educação para todas as crianças, ainda estamos longe de dar a elas as condições propícias de acesso, permanência e apropriação dos conhecimentos transmitidos pela escola.

Para Saviani (2008, p. 25), a escola sofre a determinação do conflito de interesses que caracteriza a sociedade, pois “[...] a classe dominante não tem interesse na transformação histórica da escola (ela está empenhada na preservação de seu domínio, portanto, apenas acionará mecanismos de adaptação que evitem a

transformação)”. Assim, para o autor, tratar de uma teoria crítica da educação só é possível a partir da perspectiva dos grupos dominados:

Do ponto de vista prático, trata-se de retomar vigorosamente a luta contra a seletividade, a discriminação e o rebaixamento do ensino das camadas populares. Lutar contra a marginalidade por meio da escola significa engajar-se no esforço para garantir aos trabalhadores um ensino da melhor qualidade possível nas condições históricas atuais (SAVIANI, 2008, p. 26) Nesse contexto, a escola necessita ser (re)organizada de forma a garantir o máximo de desenvolvimento das potencialidades das crianças e jovens das camadas populares – e não apenas dos filhos das elites econômicas – e entre essas crianças aquelas da Educação Especial.

Esse contexto atinge de maneira drástica e dramática a maior parte das famílias que possuem filhos com algum tipo de deficiência ou transtorno. A maioria dessas famílias hoje não tem acesso a serviços especializados básicos para seus filhos, seja em relação à saúde e assistência social, seja em relação à educação escolar, e muitos não conhecem nem os poucos direitos conquistados com muita luta (SANTOS, 2013).22

Entendemos que considerar esse contexto histórico e político mais amplo em que a educação escolar de alunos com autismo se efetiva é fundamental para nossa tomada de posição político-pedagógica, como profissional da educação (PADILHA; OLIVEIRA, 2013). A luta por melhores condições de educação para nossas crianças implica também a luta por melhores condições de vida para elas.23

Para Vigotski (2004),24 o homem só se constitui como ser social por fazer parte de um grupo social inserido em um contexto histórico. Assim, a compreensão de homem singular deve partir do entendimento do contexto sociocultural, pois a       

22 Discorrendo sobre as condições de desenvolvimento de pessoas com deficiência, Barroco (2007, p. 371)

afirma que “[...] quando Vigotski fala em relações sociais, está considerando não somente as relações interpessoais, mas as relações entre os homens em sociedade de classes sociais antagônicas. Quando fala sobre o cego, o surdo-mudo, o atrasado mental, o cego-surdo-mudo, etc., não está na defesa ‘apenas’ de que possam participar da escolarização, embora esta já fosse uma grande defesa para a época. Explicita que as pessoas com deficiência podem ser tão alienadas ou livres como as pessoas comuns. Com Vigotski, fica explícito que o problema do não desenvolvimento não se deve ao tipo de deficiência e ao grau de comprometimento provocado; antes disto, ele se apresenta ante os limites que as classes sociais delimitam aos homens”.

23 Essa é uma discussão necessária e fundamental para pensarmos a estrutura educacional hoje, mas não

iremos nos aprofundar em tal debate. Nesta seção, o foco será compreender alguns conceitos na abordagem histórico-cultural que nos auxiliam na análise das práticas pedagógicas desenvolvidas nas turmas de 1º ano em que estão matriculados alunos com autismo no ensino comum.

personalidade, o comportamento e o caráter de uma pessoa estão estreitamente vinculados aos aspectos do grupo e da classe social a que pertence.

Nesse sentido, o autor preocupava-se com a superação da sociedade capitalista e suas contradições, responsável pela corrupção da personalidade humana e pelo desenvolvimento desigual dos indivíduos. Para ele, a organização social capitalista conduziu a “[...] uma degradação mais profunda da personalidade humana e de seu potencial de crescimento” (Vigotski 2004, p. 5) e não elevou a humanidade a um nível mais alto.

Essa problemática, na opinião do autor, só poderia ser resolvida com a transformação nas relações sociais estabelecidas (revolução socialista e a transição a uma nova ordem social). Seu principal objetivo era defender a luta “[...] pela humanização do homem, de todo e qualquer homem” (BARROCO, 2007, p. 384).