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3.1 – O “PROCESSO REVOLUCIONÁRIO” DE

No documento Download/Open (páginas 65-70)

Ainda em 1948, em Conferência proferida na Escola do Estado Maior do Exército, Gilberto Freyre, no texto Nação e Exército, já esboçava suas idéias a respeito do papel político e social que o Exército deveria assumir como a única força corretiva capaz de organizar o Brasil. Essas considerações foram ampliadas posteriormente em 1965, em outro artigo, no qual o autor tecia novos pensamentos sobre “as relações entre as Forças Armadas e as demais forças de segurança e de desenvolvimento nacionais na sociedade brasileira”, já depois do Golpe de Estado de 1964 em que os militares assumiram o poder.

No primeiro texto, Freyre lembrava a importância que o Exército teve em âmbito nacional quando, em 1889, conduziu o movimento republicano que tirou o trono da família real no Brasil. Dizia ele: “Se recordo esses fatos é para destacar que, dentro da tendência ao

equilíbrio de antagonismo, ao meu ver característica da formação brasileira como já fora da portuguesa, o Exército tem, quase sempre, mantido, entre nós, força de coordenação de contrários”. Continuava:

“O Exército, por uma espécie de intuição que entre alguns dos seus líderes mais esclarecidos data de dias remotos, de sua responsabilidade antes de coordenador pacífico que de ordenador violento e arbitrário dos contrários da vida nacional, vem principalmente acompanhando, entre as várias tendências brasileiras, as que parecem mais de acordo com as tradições, aspirações e necessidades gerais do Brasil; e não tentando impor-se às demais forças nacionais como a Nação; nem antecipando-se sistematicamente a elas como elemento ordenador daqueles contrários” (FREYRE, 1948: 4)

O Exército, para Freyre, era a única instituição sadia e organizada em um país enfermo como o Brasil. O autor dizia também que o sinal evidente de povo socialmente enfermo era o fato do seu exército ser a única força organizada a ponto das outras forças nacionais renunciarem algumas de suas responsabilidades mais nitidamente civis, abdicando-as nas mãos dos chefes militares. E o brasileiro, por seu caráter comodista e pacifista, ia facilmente se resignando com a “pobreza humilhante de organização civil, religiosa, cultural”, e continuava a se apoiar passiva e perigosamente contra a desorganização no ente sadio que era o Exército, “embora nos queixando sempre de um ‘militarismo’ ou de um ‘caudilhismo militar’ criado menos por militares sequiosos de poder político que por nossa própria inércia e por nossa própria renúncia a deveres, responsabilidades nitidamente civis” (FREYRE, 1948).

No entanto, não deveríamos desorganizar o Exército também. Ao contrário, a solução que se impunha era a de procurarmos imitar o exemplo do Exército nas zonas de atividade civil, “organizando tão bem quanto ele as demais forças nacionais”. Sugeria o autor que o Exército poderia, também, continuar a ser o coordenador dessas forças em épocas de desajustamento mais agudo entre regiões ou entre sub-grupos nacionais (FREYRE, 1948).

A proposta de Freyre era, então, que as forças civis se juntassem ao Exército na condução de um meio que organizasse a sociedade brasileira, como Nação. A responsabilidade dessa organização não deveria recair somente sob ombros militares, pois assim evitar-se-ia o “militarismo”, além do fato de que não poderíamos mais uma vez anular nossas obrigações civis. Os brasileiros deveriam também assumir essa responsabilidade.

“Essa interpenetração de esforços nunca foi mais necessária que hoje. É a defesa nacional no seu sentido

mais amplo que a reclama. É o Brasil, a América, o mundo democrático ou para-democrático que a exige. Toda nação moderna é o que necessita ser: uma organização em que o exército e as demais atividades nacionais se completem. Nada de exército feudal e prussianamente senhor de um resto apenas de nação; nem de nação que seja apenas pretexto para a existência de exército ou super-exército. Num mundo como o de hoje, ainda organizado – repita-se – em nações, embora nações constituídas em sistemas transnacionais, cada dia mais forte, de economia, de cultura, de política e de ação ou defesa militar, não se compreende nem uma nação sem exército – requinte de pacifismo moralmente perigoso para a época – nem um exército que seja ele só a nação, por militarismo ou por falta de organização civil ao lado da militar. Um exército sem nação. Do que o Brasil de hoje parece particularmente precisar é de que o seu Exército, integrado no sistema democrático brasileiro, americano, mundial, sirva cada vez mais, a nação democrática, sem que a nação democrática se descuide de sua organização civil para depender passiva e exclusivamente da força e da ação do seu Exército”

(FREYRE, 1948: 13).

Com o Trinta e Um de Março de 1964, o modelo corretivo que Gilberto Freyre idealizara para o Brasil foi concretizado na tomada do poder pelos militares. No discurso realizado no dia 09 de abril desse mesmo ano, pela Cruzada Democrática Feminina, na cidade do Recife, Freyre dizia que nos momentos mais agudos de crises nacionais, as Forças Armadas aliara-se às Forças Civis, ambos se completando mutuamente para esforços em conjunto na salvação pública. Os militares, junto aos agentes civis, uniam-se “para dizer basta ao comunismo colonizador; ao imperialismo comunista; a todos os imperialismos; a todos os ladrões – os de liberdades brasileiras e os de dinheiros públicos; a todos os ricos, exploradores dos pobres; a todos os poderosos opressores dos fracos; a todos os mistificadores da mocidade; a todos os corruptores das culturas universitárias; a todos os traidores do Brasil; a todos os traidores das religiões de amor a Deus e de amor ao próximo; a todos os sub- brasileiros indignos da caridade brasileira; a todos os antibrasileiros indignos do perdão brasileiro (...) para que continuem(assem) a agir livremente contra a sua pátria e contra seus compatriotas” (FREYRE, 1964).

Essas idéias seriam desenvolvidas no seu texto de 1965, quando foi convidado pelo General Lyra Tavares a fazer uma conferência sobre as Forças Armadas e as Outras Forças na Escola Superior de Guerra do Exército. Sua preocupação estava voltada para explicar o que era realmente o militarismo brasileiro, tido em má conta por inocentes “liberalóides anglo-saxões” “afetados pela propaganda comunista” (FREYRE, 1965). Freyre dizia que eles acreditavam em “ficções demagógicas desse ultraliberal de última hora – última hora, sem

trocadilhos – que é(era) o Professor Alceu Amoroso Lima”, que inventara a “tese do ‘terrorismo cultural’”. O conferencista queria demonstrar, com ilustrações da história brasileira, que as chamadas Forças Armadas com as demais forças nacionais tinham surgido entre nós, em qualquer época, “sem qualquer militarismo violentamente opressor da gente civil ou organizado em casta autocrática ou oligarquia caudilhesca. O que não tem(inha) havido é(era) omissão ou ausência das mesmas Forças, no desenvolvimento do país ou na sua segurança e resguardo contra elementos antinacionais” (FREYRE, 1965). A tomada do poder pelas Forças Armadas impunha-se como uma “solução extrema – medida de salvação pública”.

Freyre acreditava que por força do Exército e de líderes civis, como alguns republicanos paulistas, ao lado deles Rui Barbosa (em um dos raros elogios), que haviam sido “muralha viva de resistência ao domínio do País pelos adeptos mais estreitos de uma seita ideológica de origem estrangeira, decidida a ir a extremos no seu esforço de conquistar o Brasil para a sua doutrina supostamente messiânica e para o seu cientificismo precariamente sociológico”, que era o Positivismo. Freyre, então, argumentava que a história não se repetia. “Porém, dentro da história das sociedades humanas, ou à sua margem, repetem(iam)-se alguns dos processos sociológicos que resultavam vários fatos históricos. Inclusive o processo de dominação – ou de tentativa de dominação – de sociedades mais ou menos inermes por pequenos grupos, atuantes e sectários, de adeptos de ideologias vindas de outras sociedades, empenhadas em por maciçamente em prática doutrinas repelidas pelas próprias gentes no meio das quais se originaram. O caso do Positivismo comteano na sua pureza, que nunca obteve na França o prestígio que alcançou no México e no Brasil”. Nesse sentido, o êxito que as Forças Armadas obtivera na República de 1889, elas voltavam a repeti-lo em 1964. Se na Velha República os militares souberam conciliar o Progresso com P maiúsculo com o tradicionalismo brasileiro, em 1964 eles também saberiam conduzir as rédeas da modernização brasileira sem se afastar daquilo que era genuinamente da terra, tupiniquim.

Novamente, Freyre estava as voltas do seu não ao transplante cultural. Sua busca continuava em soluções para os problemas nacionais que não sacrificassem os valores do país “a miragens messiânicas, mas (que) se concilie(asse) o respeito por esses valores com o gosto pelas inovações e pelos experimentos”.

“São precisamente esses valores nacionais brasileiros que há hoje quem se empenhe em deturpar, para nega-los; e à base dessa negação, desbrasileirar o Brasil, uns para torna-lo cópia deste modelo, outros, imitação daquele outro, quando a verdade é que cabe a nós, brasileiros,

orientarmos nós próprios, de acordo com nossas tradições, nossas constantes, nossas aspirações e nós próprios assimilando de modelos contemporâneos as técnicas e até valores que nos convenham, quer a sua origem seja esta, quer seja aquela” (FREYRE, 1965).

O Exército ainda tinha a ensinar para a sociedade brasileira a ética do caxiísmo, que, como o próprio autor definira, era “aquela consciência de dever, aquele senso de responsabilidade, aquela dedicação ao serviço público, aquela sensibilidade à causa nacional que constituem(iam), no Brasil, um conjunto ético de nítida origem militar: vindo de um Caxias que, entretanto, foi também homem público; e, na vida pública, tão dedicado ao serviço do Brasil quanto na militar”. Lembrava, também, que o “caxiismo não é(era) o conjunto de virtudes apenas militares mas de virtudes cívicas comuns a militares e a civis. (...) É(era) o Brasil inteiro que precisa(va) dele para ajustar-se a solicitações de desenvolvimento, sem prejuízo das de segurança; e não apenas o Exército nacional, para bem desempenhar suas funções” (FREYRE, 1965).

“Talvez se possa dizer que sem caxiismo não há defesa ou segurança nacional inteira, mas só pela metade; nem desenvolvimento brasileiro amplo, saudável, autêntico, mas só ‘desenvolvimentismo’. (...) Não há Forças Armadas plenamente efetivas quando falta não só a elas mas ao sistema político-social que as condiciona e a que elas servem, uma dinâmica além de psicológica, moral, ética. Caxiismo, portanto” (FREYRE, 1995).

Podemos entender que o caxiísmo era o enquadramento moral de toda a sociedade, tanto militar como civil, para a modernização conservadora de que nos fala Barrington Moore. Essa nova concepção de mundo, o caxiísmo, era necessária para que toda a sociedade incorporasse esse novo espírito cooperativo de organização e assumisse, junto aos governos militares, o compromisso de reestruturar a nova sociedade.

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Os militares serviram também ao Brasil, segundo Freyre, para tratar o “processo revolucionário” de 1964 nos moldes genuinamente brasileiros. Estes estariam na tendência com que os brasileiros encontravam, na substituição de valores puros por valores combinados, soluções de equilíbrio; para modificar situações sem pretender extinguir radical ou

violentamente na situação nova, todos os elementos característicos das antigas que vinham a substituir.

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