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O projeto curatorial da 28ª Bienal de São Paulo

No documento BIENAIS 17 de Janeiro de :06 Page 1 (páginas 151-155)

Prefácio

2. O projeto curatorial da 28ª Bienal de São Paulo

O projeto curatorial da 28ª Bienal de São Paulo foi apresentado ao público como uma crítica à própria mostra, questionando sua imagem como uma das mais importantes instituições artísticas no Brasil e uma das três maiores exposições de arte contempo- rânea no mundo, ao lado da Bienal de Veneza e da Documenta de Kassel. O projeto caracterizava-se, portanto, como uma autorreflexão que se realizava no seio da Bie- nal através da suspensão temporária do fluxo global de artistas e obras produzido por uma megaexposição de arte contemporânea como a Bienal de São Paulo. A “quaren- tena” proposta por Mesquita seria, assim, uma oportunidade de parar para refletir sobre a própria aceleração imposta por um sistema cultural globalizado e dinâmico. Na primeira coletiva de imprensa realizada após a sua nomeação, Ivo Mesquita afir- mou que a Bienal de São Paulo havia realizado os seus objetivos iniciais de consoli- dação do sistema artístico local de projeção da arte brasileira no exterior e colocou uma série de questões:

Qual o papel que a Bienal desempenha hoje, como instituição pioneira no país e no con- tinente, uma vez que também esses circuitos cresceram e se profissionalizaram, sendo parte de um sistema cultural globalizado? […] Como pode a Bienal de São Paulo reava- liar esse fenômeno cultural que se propaga em centros históricos (Veneza, por exemplo) assim como em cidades que até recentemente eram vistas como sendo marginalizadas (Xangai, por exemplo) da mesma maneira? Que papel crítico pode a Bienal de São Paulo ter em uma época de consumo e turismo cultural? De que maneira pode ela trazer uma contribuição produtiva ao enquadramento deste debate com base na sua história e ex- periência como primeira instituição de seu gênero fora dos centros hegemônicos? Sis- tematizar uma reflexão sobre as Bienais hoje, reavaliando suas qualidades e objetivos, revendo a sua agenda e sua função, pode representar uma possibilidade para a Bienal de São Paulo de retomar um papel dentro das muitas e diversas mostras de artes visuais periódicas que povoam o mundo no século XXI.65

 

No discurso curatorial a Bienal aparece, portanto, como uma referência entre as ex- posições globais de arte contemporânea e serviria como paradigma e modelo para as outras mostras do gênero. Assim, na concepção dos curadores Ivo Mesquita e Ana Paula Cohen, seria o momento de converter a exposição em uma plataforma de reflexão e debates sobre o sistema de bienais no circuito artístico global,66tomando como referência a própria história da Bienal de São Paulo, através de uma estratégia política de reativação de sua memória e de seu arquivo.67

A iniciativa da 28ª Bienal de São Paulo de refletir sobre sua própria história é per- tinente e até mesmo necessária. Até 2001, o livro As Bienais de São Paulo,68de Leonor Amarante, era o único volume existente sobre o tema, até que foi publicada uma edição especial em comemoração do 50º aniversário da primeira Bienal de São Paulo.69Contudo, ao fazer concessões à orientação comemorativa, o livro, bem como a exposição 50 anos de Bienal de São Paulo, fugiram à tarefa de elaborar uma pers- pectiva crítica sobre a história da Bienal. Em 2003, foi publicado o livro As Bienais de

São Paulo: da era dos museus à era dos curadores, de Francisco Alambert e Polyana

Canhête, que apresenta a mesma tônica biográfica dos seus antecessores.70Assim, a ainda escassa bibliografia atual em língua portuguesa consiste de: textos publica- dos na imprensa local, incluindo artigos de Aracy Amaral, Mário Pedrosa, Annateresa Fabris, Vilém Flusser, Walter Zanini, entre outros; um dossiê com treze artigos com- pilados na edição 52 da Revista USP;71e estudos vinculados ao abstracionismo ou à história da arte brasileira.72 Ademais, como no Brasil a história das exposições de arte não constituiu ainda uma área de pesquisa independente, as pesquisas aca- dêmicas realizadas sobre o assunto oferecem uma visão bastante fragmentada da história da Bienal, cobrindo assuntos com recortes específicos ou analisando edições pontuais. A única tese de doutoramento mais abrangente sobre o tema foi escrita por Rita Alves Oliveira, com o título A Bienal de São Paulo: forma histórica e produção

cultural.73

Nesse contexto, o ciclo de debates “A Bienal de São Paulo e o Meio Artístico Brasileiro – Memória e Projeção”, organizado por Luisa Duarte, que abriu as atividades da 28ª

66 MESQUITA, Ivo; COHEN, Ana Paula. Introdução. In: FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Guia da exposição Em

vivo contato, 28ª Bienal de São Paulo, 2008.

67 O Arquivo Histórico Wanda Svevo, inicialmente chamado de Arquivos Históricos de Arte Contemporânea, foi criado em 1954 por Wanda Svevo, secretária da Bienal do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Atualmente o arquivo ocupa uma área de 400m2no segundo andar da Fundação Bienal de São Paulo.

68 AMARANTE, Leonor. As Bienais de São Paulo, 1951-1987. São Paulo: Projeto, 1989. 69 FARIAS, Agnaldo (ed.). 50 Anos de Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal, 2001.

70 ALAMBERT, Francisco; CANHÊTE, Polyana. As Bienais de São Paulo: da era do museu à era dos curadores

(1951-2001). São Paulo: Boitempo, 2004.

71 Cinquenta anos de Bienal Internacional de São Paulo. Revista USP, n. 52, dez/fev 2001-2002.

72 Cf. REBOLLO, Lisbeth. As Bienais e a abstração. São Paulo: Museu Lasar Segall, 1978; AMARAL, Aracy. Arte

Construtiva no Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

73 OLIVEIRA, Rita C. A. A Bienal de São Paulo: forma histórica e produção cultural. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2001.

 

Bienal em junho de 2008, priorizou o resgate da memória da exposição por meio de depoimentos de alguns agentes do circuito artístico brasileiro sobre suas impressões acerca de edições anteriores da mostra, suas opiniões sobre a situação atual e suas expectativas quanto ao futuro da Bienal. O objetivo desse ciclo foi, a partir das respos- tas às questões formuladas pela organizadora, alimentar o Arquivo Histórico Wanda Svevo com um acervo audiovisual que complementasse a documentação existente de catálogos das exposições, criando uma compilação sobre sua história, um diag- nóstico do presente e um conjunto de perspectivas em relação ao futuro. Assim, os participantes buscavam fornecer ao público uma “crônica” sobre história da Bienal, e realizar uma “consulta de opiniões” a respeito de sua crise e seus impasses, os quais forneceram dados para a formatação de um documento interno direcionado ao Conselho da Fundação Bienal.74

Logo, a questão colocada pela curadoria da 28ª Bienal foi: como resgatar uma for- tuna crítica existente no arquivo Wanda Svevo e reativá-la no contexto atual? Em uma entrevista realizada em novembro de 2008, Ivo Mesquita afirmou que o objetivo da 28ª Bienal era chamar a atenção para o seu arquivo histórico, enquanto estratégia política para transcender os limites da exposição por meio da recuperação da memó- ria e da redescoberta do pensamento crítico na América Latina, contribuindo assim para uma reflexão sobre o “modelo Bienal”.

Desde o início estava claro para nós que a proposta curatorial tinha a intenção de abrir uma reflexão sobre as bienais: sobre esta Bienal em relação com outras bienais e sobre o sistema global de bienais no mundo atual. O Arquivo Histórico Wanda Svevo era uma peça fundamental neste sentido, porque foi onde surgiram todos os referenciais para, digamos assim, subsidiar uma reflexão e o debate em torno da marca Bienal. Mas no processo de execução dessa ideia encontramos sem dúvida alguns problemas. Em prin- cípio havíamos optado por usar a ideia do arquivo como o centro mesmo de todas as atividades curatoriais; ou seja, não partimos da ideia de exibir parte do arquivo no ter- ceiro andar do edifício mas de impregnar todas as atividades com a ideia dos arquivos. Assim, no início, a proposta dos arquivos era ser mais que um centro especializado em bienais. Por outro lado, no Arquivo Histórico Wanda Svevo estão todos os documentos sobre a história da Bienal de São Paulo, outros sobre a história da arte contemporânea e alguns documentos do Museu de Arte Moderna (de São Paulo). Partindo desses limites, pensamos que seria oportuno ir além da simples Documentação sobre a Bienal de São Paulo. […] pensamos na ideia de transformar o arquivo em um centro sobre as bienais, um arquivo sobre as bienais ao redor do mundo. Deve-se assinalar que essa ideia pode ser ampliada para os debates e as contribuições dos catálogos.75

O resultado concreto do projeto foi um plano de leituras no formato de um arquivo

74 CYPRIANO, Fábio. “Um acordo de cavalheiros em vivo contato”. Disponível em: www.forumpermanente.org. 75 BARRIENDOS, Joaquín; SPRICIGO, Vinicius. “HORROR VACUI: Crítica institucional y suspensión (temporal) del sistema internacional del arte. Una conversación con Ivo Mesquita sobre la 28ava Bienal de São Paulo”. Estudios

 

flexível76construído no terceiro pavimento do pavilhão da Bienal,77incluindo um es- paço expositivo, uma biblioteca com catálogos de diferentes bienais e de exposições periódicas espalhadas pelo mundo todo e um auditório para a realização de confe- rências e debates. O segundo andar do edifício Ciccillo Matarazzo ficou vazio e o térreo seria, a princípio, transformado em uma praça pública, como no desenho ori- ginal de Niemeyer, propondo “uma nova relação da Bienal com o seu entorno – o parque, a cidade – que se abre como a ágora na tradição da pólis grega, um espaço para encontros, confrontos, fricções”.78Tratava-se, afinal, de converter o projeto de Oscar Niemeyer em metáfora arquitetônica da proposta curatorial, tornando explícita a dimensão pública do edifício e abrigando em seu interior um processo de reflexão crítica sobre a instituição Bienal.

A metáfora arquitetônica adotada pelos curadores da 28ª Bienal é a mesma da aber- tura dos museus modernos ao grande público, expressa pela transparência e pelo uso do vidro na arquitetura moderna e pela busca da integração dos espaços públicos e privados. Segundo Martin Grossmann, o projeto do Palácio de Cristal, que abrigou a Exposição Universal de 1851, é um elemento na formação de uma autocrítica ao mu- seu moderno e uma metáfora ao paradigma global da sociedade da informação.79 No entanto, as críticas ao “cubo branco” têm demonstrado o caráter paradoxal de sua autonomia e os vínculos do universalismo com o colonialismo. Grosso modo, a questão da democratização do acesso público aos bens culturais nunca foi resol- vida do ponto de vista arquitetônico ou institucional moderno. Sabe-se também que a Bienal sempre foi frequentada por uma parcela pouco significativa da população da cidade de São Paulo, os números oficiais anunciados pela Fundação Bienal ficam abaixo de 10% do total de habitantes da cidade, e são bem menos expressivos se consideramos o papel central dessa exposição no Brasil e na América Latina.

76 Sistema concebido por Ana Paula Cohen no projeto Istmo. http://www.forumpermanente.org/.rede /proj-istmo/.

77 O Pavilhão Ciccillo Matarazzo, antigo Palácio das Indústrias, foi projetado por Oscar Niemeyer e abriga a Bienal de São Paulo desde a sua quarta edição, realizada em 1957. O edifício faz parte de um conjunto arquitetônico localizado no Parque do Ibirapuera, inaugurado em 1953, na ocasião das comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo.

78 MESQUITA, Ivo; COHEN, Ana Paula. Introdução. In: FUNDAÇÃO BIENAL DE SÃO PAULO. Guia da exposição Em

vivo contato, 28ª Bienal de São Paulo, 2008.

79 Ressalta o autor que tal paradigma arquitetônico seria usado pelos museus de arte moderna no sé- culo XX, em substituição ao modelo neoclássico. GROSSMANN, Martin. O “Anti-Museu”. Disponível em: http://museologia.incubadora.fapesp.br

 

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