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O pseudónimo António Madeira

Capítulo 1 – Percurso de um contista: a poesia e o teatro

1.2. O pseudónimo António Madeira

Com a colaboração na Presença, nasce o pseudónimo António Madeira, que assina textos de vários géneros. Nas páginas da “folha de arte e crítica”, assina dezanove poemas em prosa e dois contos. No entanto, Branquinho manterá o pseudónimo em textos vindos a lume em outras publicações. Em 1930, são da autoria de António Madeira os quatro poemas em prosa surgidos na revista Sinal; são também de António Madeira os cinco poemas em prosa publicados, em 1936, na revista Manifesto; e pertencem igualmente ao pseudónimo os dois poemas publicados nos Cadernos de Poesia, em 1940; bem como os quatro poemas editados, em 1943, em Variante. A António Madeira são ainda atribuídos os dois textos dramáticos publicados, em 1938-39, na Revista de

Portugal, o conto surgido na revista Litoral, em 1944, e as primeiras edições de Caminhos Magnéticos (1938) e O Barão (1942). É também António Madeira o responsável pela

autoria da edição de 1939 de Teatro. Além disso, o manuscrito de Vento de Longe permite concluir que o livro seria editado, não com o nome próprio do autor, mas com o pseudónimo.

David Mourão-Ferreira chama a atenção para o facto de o uso de pseudónimos ser uma prática comum a vários presencistas, e associa esse facto à «necessidade de dissociar o ente criador do indivíduo social»33. O uso do pseudónimo pode ter, evidentemente, significados profundos, quando resulta de uma escolha criteriosa, condicionada por motivos pertinentes. Todavia, não parece ter sido esse o caso de Branquinho. Em carta dactilografada, enviada a Alberto de Serpa, ele explica a origem do pseudónimo num tom ligeiro e algo divertido, isento de qualquer intenção significativa profunda, à maneira de Fernando Pessoa. Segundo Branquinho, o pseudónimo surgiu, porque nos primeiros tempos da Presença não era fácil arranjar colaboração. E assim, ele e José Régio inventaram o estratagema de escreverem vários textos com nomes diferentes: ele assinava com o nome próprio e com o pseudónimo, Régio assinava também com o nome próprio e com o pseudónimo João Bensaúde. À suposta pergunta de Alberto de

32 Óscar Lopes, «Branquinho da Fonseca», p. 680. 33

Serpa sobre a razão do pseudónimo, e perante o seu desejo de receber colaboração assinada pelo nome próprio do escritor, Branquinho responde desta forma:

«...é só uma questão de letras: Branquinho da Fonseca e António Madeira - são exactamente a mesma pessoa. É só uma questão de letras, como vês. No Fernando Pessoa era uma questão de personalidades; no meu caso julgo que não. Não tenho porém absoluta certeza, é claro... Eu te conto a história do António Madeira: - Era uma vez uma revista chamada “PRESENÇA”, dirigida, fundada e afundada pelas pessoas que sabes. Ora em certa ocasião faltou a colaboração, que é uma coisa que acontece a todas as boas revistas...e eu e o Zé Maria (nessa altura o Simões ainda vivia na Figueira e não tinha intervenção na direcção) resolvemos recorrer a um expediente secreto. - Porque a “PRESENÇA” ao princípio vivia de expedientes como sempre se faz nas aventuras e descobertas que o Rei não apadrinha...- E o expediente foi inventar dois nomes: João Bensaúde e António Madeira.»34

Com o desenvolvimento da explicação, o tom divertido vai dando lugar a alguma seriedade, como se, ao explicar, o poeta fosse tomando consciência de uma questão sobre a qual nunca tinha reflectido de forma satisfatória:

«Ora durante esse tempo verifiquei que o uso de pseudónimo dá um vago gosto de liberdade, o poeta emancipa-se de mim, não me chamam pelo nome dele, nem a ele pelo meu. Dirás que é só uma questão de arrumação, de catalogação: ficha 10-ficha 5: vão ter ao mesmo sítio, são números diferentes da mesma coisa. Mas não. Olha bem para ti e vê lá se isto não corresponde a uma forte realidade: não sentes em ti uma porção de coisas diferentes e contrárias e não vês que se as separares com um certo critério fazes para um lado uma personalidade e para outro lado outra personalidade? Isto é uma coisa que todos sabem, os que sabem qualquer coisa. Eu, Branquinho da Fonseca, Conservador do Registo, até me esqueço do António Madeira que, contudo, estimo muito. Mas há momentos em que não o sinto existir, em que com certeza não existe. Outras vezes andamos de braço dado pelas ruas...Mas não há nada como cada um tomar as responsabilidades das suas acções. Ele faz

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muitas coisas com que eu não concordo e eu faço outras tantas que o aborrecem.»

Para além desta explicação, em que, por momentos, quase parece pairar a inusitada companhia de Pessoa e Álvaro de Campos, Branquinho avança mais um motivo, capaz de justificar o uso do pseudónimo: o motivo estético35:

«E ainda podia preferir o pseudónimo só pela questão estética - António Madeira é de melhor música que: Branquinho da Fonseca. Ora consulta um Beethoven.»

Ao aproximar-se do fim da carta, Branquinho regressa ao estilo divertido e um pouco mistificador, deixando no ar a dúvida sobre a seriedade do pseudónimo e sobre a sua necessidade humana e literária:

«E agora vou te dizer ainda outra razão, em segredo, - é que eu gosto do mistério. Gosto de ouvir dizer diante de mim: Quem será este António Madeira? Etc. Etc. e tal...Faz um calafrio. Dá a impressão de que somos invisíveis, que estamos ali e que não nos podem ver. É puro Wells... Mas tu estás a supor que estou a brincar e olha que estou quase a falar a sério. Não sei se sabes: eu prefiro dizer as coisas sérias com o ar de quem brinca. É o que tenho estado a fazer. Podes crer que esta decisão de assinar tudo com o nome verdadeiro de António Madeira foi maduramente pensada. Já há mais de um ano que resolvi isto. E eu tenho palavra de rei...O que posso é um dia mudar a palavra de rei...Mas agora estou firmemente disposto a elevar aos píncaros da mais alta glória o nome que assino. Viva o elevador da Glória! Viva a Avenida da Liberdade! (Oh, diabo! estou-te a misturar o assunto com saudades de Lisboa!) »

No remate da carta, manuscrito, por causa da transparência do papel, Branquinho retoma o tom mais sério, abordando, de certo modo, a questão colocada por David Mourão-Ferreira quando relaciona a proliferação da pseudonímia entre o grupo

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Segundo Taborda de Vasconcelos, o motivo estético constitui uma das razões fundamentais da voga da pseudonímia entre os presencistas: «Importa, contudo, lembrar que os quatro maiores escritores “presencistas” emprestaram a nomes fictícios, mais atraentes e expressivos que os deles, e exactamente por isso, a autoria das suas obras.» (Pseudónimos e Heterónimos na Literatura Portuguesa, Porto, 1996, p. 42).

presencista com a necessidade de dissociar o artista do indivíduo social. Branquinho pede a Alberto de Serpa que, a quem lhe perguntar por ele, resuma, deste modo, o assunto tratado na missiva:

«Nada de generalizações. Particularizar até ao limite conveniente. Poeta ou cidadão? Não achas que são nomes diferentes? Achas que é o mesmo...Pois também eu...A Tragédia é essa...É não vir um raio que parta o outro que se nos pendura nas asas...E como afinal estamos de acordo, dá cá um forte abraço ao teu amigo, António Madeira.»

Para Branquinho foi sempre muito clara a distinção entre o escritor e o cidadão, nomeadamente ao nível das tarefas que a cada um cabe realizar. A arte deve estar, em sua opinião, totalmente desvinculada de compromissos sociais ou políticos de qualquer espécie; a intervenção social cabe ao cidadão e não ao escritor. E Branquinho levou a cabo, de facto, as duas tarefas, tentando nunca misturar os territórios. Note-se que a recusa da intervenção social através da literatura não tem nada que ver com a defesa da “arte pela arte”, postulado estético com o qual Branquinho nunca concordou, até porque não acreditava na sua exequibilidade36. A questão tem que ver com a fundamental destrinça dos campos onde se exerce a acção humana, e com a eficácia. A literatura deve preocupar- se com as questões eternas que ultrapassam as circunstâncias temporais. Ao cidadão consciente cabe a tarefa de melhorar o mundo, usando instrumentos eficientes, não se escudando com a literatura, numa atitude, que, além de ineficaz, pode mesmo revelar-se uma forma de deserção.

Perante uma tão cartesiana diferenciação de entidades seria de esperar que o uso do pseudónimo tivesse uma funcionalidade mais orgânica e coerente. No entanto, tal não acontece, pois embora António Madeira assine textos de vários géneros, pelo menos até 1944, ano em que publica, no número um da revista Litoral, o conto “Maresia”37, a sua produção literária não obedece a um esquema que a limite, isto é, que a identifique38. O

36 Branquinho pronuncia-se sobre a questão na entrevista publicada no Diário de Notícias, 23 de Setembro de 1976, e diz claramente: «eu não acredito que seja possível a arte pela arte».

37

Litoral, nº 1, Junho de 1944, p. 29-37.

38 Taborda de Vasconcelos parece defender uma opinião diferente, pois supõe que Branquinho recorreu ao uso do pseudónimo para «demarcar as duas fases da sua actividade literária: de poeta e dramaturgo, primeiro, e, mais relevante, depois, a de ficcionista.» (op. cit., p. 44). Taborda de Vasconcelos fornece ainda, em nota final, algumas informações um pouco estranhas: «Há quem defenda a opinião de que Branquinho da Fonseca recorreu ao subterfúgio daquele pseudónimo, António Madeira, para ocultar a imagem

conto “Maresia” é aliás um bom exemplo da fluidez de contornos da identidade literária de António Madeira, pois o conto é um texto que, com algumas modificações, constituirá uma parte essencial do capítulo décimo de Mar Santo, livro publicado por Branquinho da Fonseca em 1952, mas cujo primeiro manuscrito é finalizado em 1947, tendo havido antes um aturado trabalho de pesquisa na Nazaré, entre 1937 e 1940.

De igual modo, o conto “Jack” é publicado em Agosto de 1943, como novela inédita de António Madeira, na revista Eva, mas surgirá, em 1945, como parte integrante do volume Rio Turvo e Outros Contos, de Branquinho da Fonseca. É ainda António Madeira quem assina a «admirável novela, de sabor estranho», “O Involuntário”, publicada na Eva do Natal, em 1943, e que virá igualmente a constar da citada edição de

Rio Turvo.

A mesma oscilação quanto à autoria acontece com O Barão. A primeira edição, de 1942, é assinada por António Madeira; mas em 1945, o texto já faz parte de Rio Turvo

e Outros Contos, e na edição da Portugália de 1959, com ilustrações de Júlio Pomar, já é

Branquinho da Fonseca quem assume a autoria do conto. Ficam, assim, sendo de inequívoca autoria de António Madeira o conto “O Velho”, publicado no número dezanove da Presença, em Fevereiro-Março de 1929, e que não foi incluído mais tarde em nenhuma colectânea; o texto “misto” Pandeiretas dedicado a Gimenez Caballero, publicado no número vinte e cinco da Presença, em Dezembro de 1929; e todos os poemas assinados pelo pseudónimo, e que tendo vindo a lume em revistas, não foram republicados em Mar Coalhado, em 1932. Os contos de Caminhos Magnéticos e os textos dramáticos de Teatro são recolocados sob a autoria de Branquinho da Fonseca. Parece, por conseguinte, poder concluir-se que o uso do pseudónimo por Branquinho não obedece a uma estratégia solidamente arquitectada, que tenha tido em conta as repercussões da pseudonímia tanto ao nível funcional como ao nível recepcional39.

profissional, localmente considerada, de Inspector Escolar, que desempenhava quando publicou O Barão, em cujo protagonista se pretendia ver (e talvez fosse) o próprio autor.» (op. cit., p. 74).

39 Cf. Carlos Reis, O Conhecimento da Literatura - Introdução aos Estudos Literários, Coimbra, Livraria Almedina, 1995, p. 64: «Torna-se, pois difícil (ou até impossível) tipificar sistematicamente as circunstâncias e ocorrências da pseudonímia, atitude que, contudo, arrasta importantes consequências socioculturais, pelo menos a dois níveis: num plano funcional, porque o escritor reserva, através do pseudónimo, um nome específico para uma actividade específica (que é a da criação literária), nome que passa a ser, para a comunidade cultural, o da autoria e o da responsabilidade estética; num plano recepcional, porque o leitor não raro desconhece o nome civil do autor e até, nalguns casos, ignora mesmo que o antropónimo através do qual conhece esse autor é, afinal, um pseudónimo».

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