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A poesia na Presença e outras revistas

Capítulo 1 – Percurso de um contista: a poesia e o teatro

1.3. A poesia na Presença e outras revistas

No que diz respeito à colaboração poética nas páginas da Presença, é evidente a ambiguidade autoral. Branquinho publica vários poemas na revista, entre 1927 e 1930, assinando ora com o pseudónimo, ora com o nome civil, chegando mesmo a publicar, no mesmo número, poesia assinada por António Madeira e por Branquinho da Fonseca40. Nota-se, no entanto, a tendência para assinar com o pseudónimo os poemas em prosa, uma atitude que se manterá nos textos publicados nas revistas Sinal e Manifesto, mas que não é continuada nem em Cadernos de Poesia nem em Variante.

Nos poemas em prosa publicados por António Madeira na Presença é assinalável a dinâmica narrativa que se insinua nos textos, e que constitui uma característica de grande parte da poesia do autor. Essa dinâmica narrativa, muito visível em alguns textos, mesmo ao nível do código óptico-grafemático, reveste os poemas de uma certa oscilação genológica: embora sejam apresentados como poemas, esses textos aproximam-se do conto. Para além do tom narrativo, há nos poemas em prosa de António Madeira a exploração de algumas linhas temáticas que os aproximam do resto da obra do autor. Desde logo, é visível a preocupação com o tema da cisão interior associado à procura da identidade, colocando o eu em confronto com os outros e consigo. A procura da identidade é ainda associada aos temas da viagem, da reflexão sobre o tempo, e de alguma ponderação sobre o poder da palavra e sobre os motivos justificadores da escrita.

A relação conflituosa do eu com os outros é um dos temas mais recorrentes da poesia de José Régio. Há na poesia de Régio uma necessidade veemente de comunicação baseada na sinceridade de um sujeito que se expõe perante a turba, desejando ser compreendido e aceite na sua diversidade, porque tem a ilusão de pensar que expondo-se a si mesmo expõe os outros, e que ao falar de si fala de todos. Na poesia de Branquinho publicada na Presença também existem as encenações regianas em que o eu se confronta com os outros, mas o poeta não sobe a um palco para se expor de forma teatralizada como acontece amiúde em Régio. A confrontação é em Branquinho uma forma de construção da identidade, sem haver o propósito de proselitismo, nem a intenção de captar a empatia dos

outros. O ego lírico da poesia fonsequiana não quer aproximar-se da multidão, não tem nenhum programa de redenção colectiva, nem é movido pela vocação sacrificial. Logo no primeiro poema publicado na revista, “Teatro de Variedades”41, o tom teatral, anunciado no título e desenvolvido nas primeiras estrofes, apenas dá conta da necessidade das máscaras sociais, sem fazer desse facto uma inevitabilidade dramática. Nas duas últimas estrofes, muda o cenário, o eu confronta-se apenas consigo mesmo, e é esse o confronto essencial, porque é desse encontro que pode resultar o caminho procurado:

Sozinho, muda o cenário, e já é outro programa, com um autor doutra fama mais humilde e visionário

Quase então digo o que quero, quase que sinto o caminho, e quase que vou sozinho e quase me sou sincero.

Repare-se em como através da repetição anafórica de “quase”, a impossibilidade do dizer, do sentir, do ir e do ser deixa de ser impossibilidade absoluta: sem o impedimento da máscara das convenções e dos papéis decorados, é viável o encontro do homem consigo mesmo, um encontro construtivo: «quase que sinto o caminho».

No texto “palhaçada”42, de António Madeira, é novamente usado o cenário teatral associado ao motivo do palhaço, uma figura que, com algumas metamorfoses, constitui um motivo recorrente em alguns poetas presencistas. O poeta tem «um circo de palhaços, acrobatas e números sensacionais» de que é o apresentador, e exibe-se perante um público, mas o público é ele: «Então visto uma casaca que tenho muito cuidada e apresento os números ao público, - a eles que são eu». A confusão entre o público e o artista é uma modulação da temática da cisão; cindido em duas figuras, o eu é ao mesmo tempo actor e espectador de si mesmo, do espectáculo que para si, e em si, representa, procurando deste modo o caminho que o há-de conduzir à sua própria unidade. Nesta

40 Na Presença, nº 14-15, de 23 de Julho de 1928, Branquinho da Fonseca é o autor do poema “Testamento” (p. 6), e António Madeira assina os poemas “chuva”, “as viagens”, “triunfo”, “claustro” (p. 10).

procura de si, há momentos de confiança («Eu passo; mas não passo como uma sombra: sou/eu. Tenho um cartão de identidade e fatos por medida»43), e momentos em que se insinua a sombra de um desalento antecipado, como se vê no poema “escuridão”:

Vou pensando em viver. Entre-tem-me. Se algum dia até isto me voar, fecho as portas e as janelas, apago a luz e deito-me no chão a um canto.44

No entanto, apesar da linha de desânimo que atravessa alguns poemas no processo de busca da identidade, quando a busca evolui no sentido da construção, o desalento vai dando lugar à capacidade de resistência. O sujeito que se questiona, dramatizando a sua relação com os outros e consigo mesmo, não cai na armadilha da autocomplacência, não é seduzido pelo carpir narcísico da originalidade pessoal em confrontação litigiosa com o mundo. Pelo contrário, o reconhecimento da diferença não faz o sujeito estagnar no terreno pantanoso da lamentação, mas move-o no sentido da aceitação, uma aceitação que não é passivamente resignada, mas estóica. Há, de facto, não só na poesia, mas também em toda a obra de Branquinho, uma certa ética da resistência, que acaba por conferir aos textos, mesmo aos mais sombrios, uma aura de esperança sólida, porque conquistada. Veja-se, por exemplo, o poema “claustro”, um texto que, desde o título, remete para uma situação de insulamento perquiridor:

Apago a luz. De que me vale? Há luzes na rua, há luas no céu, há quanto não são os outros e quanto são os outros - e sou Eu.

Na parede branca abriu-se a grade duma prisão: o caixilho da janela desenhado pela luz que vem de fora.

Volto a acender a luz. E penso: o melhor é não apagar as luzes, não desviar os olhos: olhar e sorrir com mágoa sempre igual e agradecimento sempre maior.45 42 Presença, nº 13, 13 de Junho de 1928, p. 6. 43 Presença, nº 13, 13 de Junho de 1928, p. 6. 44 Presença, nº 13, 13 de Junho de 1928, p. 6.

Este texto, sendo dominado por um certo tom de pessimismo, acaba por ter um remate que transforma o pessimismo em apelo à capacidade de resistir. A resistência não se faz de ilusão, de miragens, mas da coragem de olhar a realidade de frente, aceitando-a nos seus múltiplos matizes. E a primeira realidade que tem de ser aceite é o mundo pessoal, tão matizado e contraditório como todos os mundos exteriores ao sujeito. Por isso, há sempre a necessidade de concertar os desconcertos interiores, não em público, mas em recolhimento. A solidão é um momento privilegiado de reconstrução do sujeito46, longe das máscaras necessárias à ficção do teatro do mundo, e longe da lamentação patética, que em Branquinho é substituída pela vontade heróica: «Só não quero o vosso dó!/ Tenho a terra por lençol,/(...)Mas hei-de erguer-me, voltar,/que a espada não se quebrou!/ hei-de vencer, acabar,/ que o tempo não se acabou»47. É preciso haver momentos de restauração, para que a marcha possa continuar, como se depreende do poema sintomaticamente intitulado “Restauração”:

Se me vierem procurar: não estou. Quando me fecho em casa é para ser só eu: delicado e bru- tal, humilde e altivo, sacrificado e egoísta: o bem e o mal: humano! Sem atitudes seguidas. - Abaixo a Continuação

Quero estar só diante de mim sem disfarces nem conveniências!

Ora todos sabem que para conviver é necessário ser alguma coisa os outros.

Estou cansado! Deixem-me descansar! Deixem- -me ser só eu durante um dia e depois vereis como hei-de agradar-vos, como de mãos nas mãos me beija- reis o rosto e chamareis - Irmão!...48

45 Presença, nº 14-15, 23 de Julho de 1928, p. 10. 46

Branquinho dirá, em entrevista, que «a solidão é um mundo muito rico.» (Diário de Notícias, 30 de Setembro de 1976).

47 Presença, nº 2, 28 de Março de 1927, p. 7. 48

“Restauração” é um poema que faz lembrar “Caranguejola”, de Mário de Sá- Carneiro, pela necessidade de isolamento e descanso; no entanto, apesar das semelhanças, os dois poemas são muito diferentes. Quando Sá-Carneiro diz: «Não, não estou para mais; não quero mesmo brinquedos,/ Para quê? Até se mos dessem não saberia brincar...», para acabar por concluir: «Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.»49, está numa situação radicalmente diferente da apontada pelo poema de António Madeira, pois à desistência teatralizada de “Caranguejola” responde a resistência restaurada de “Restauração”.

Outra linha temática recorrente nesta poesia prende-se com a reflexão sobre o tempo. O tópico do tempus fugit é modulado de uma forma que faz lembrar, ao mesmo tempo, Sá de Miranda e Alberto Caeiro. No poema “A Paisagem da Janela”, a situação criada faz lembrar Caeiro, e a reflexão sobre a mutabilidade energética e renovadora da paisagem entronca na tradição mirandina:

Da janela olho a paisagem como quem não tem mais nada. Fechei as vidraças para não ouvir o rumor da cidade (...)

Esta paisagem não tem nenhum dia igual. Mais ou menos sol, mais ou menos noite, nuvens, dias de chuva, ou céu aberto: a claridade que cega.

Tem ainda a vida da primavera, o verão, o morrer do outono...a morte do inverno.

A olhar esta paisagem lembro-me: que não pu- demos conhecer nada. Tudo vive, passa e é diferente. O meu ponto de vista creio que não mudou: estou sentado na minha cadeira, que está no mesmo sítio de ontem. Olho pela mesma janela para a mesma pai- sagem: que é outra.

Bem sei: é que vivemos mais um dia: E num dia quanto nos morreu?! quanto nos nasceu?!50

49 Mário de Sá-Carneiro, Poesias, Lisboa, Edições Ática, 1973, p. 157-159. 50

A referência a Alberto Caeiro e a Sá de Miranda não significa que haja no texto ecos dos dois poetas, significa apenas que há uma confluência de temas. De resto, a dinâmica do texto é muito fonsequiana, nomeadamente nas potencialidades significativas dos pormenores, desde logo no início do texto - «Fechei as vidraças para não ouvir/ o rumor da cidade...» -, uma desvalorização do espaço urbano, que também é recorrente na poesia de Caeiro, mas que constitui igualmente um tópico reiterado na obra de Branquinho da Fonseca. A temática do tempo é desenvolvida ainda em outro texto, “Diálogo dos Mortos”, um diálogo, ou um monólogo a duas vozes, que está mais próximo dos textos dramáticos do que dos líricos. Cada instante que passa é um momento em que morremos ou que nos morre. Pode-se viver sem se dar conta de que se está vivo, dando importância às horas que não interessam, mas para se viver realmente é preciso sair da vida, vê-la de fora e abandonar-se:

«...Ainda estás na primeira vida: É como

nada...Sai dela para a veres. Não te salves nunca. Se sentires o mar, se sentires o peso dele a puxar-te, não te agarres a nada, não te prendas às algas, não grites para o céu...Abandona-te. Depois luta:- só com o mar...Ele há-de atirar-te uma praia...»51

Atente-se, sobretudo, na última frase do excerto «Ele há-de atirar-te uma praia», em que o estranhamento sintáctico não é gratuito, mas contextualmente justificado. A praia que o mar há-de atirar ao náufrago que se abandona na vida, é paralela ao caminho que espera cada homem, o caminho que tem de ser percorrido, porque só o seu percurso justifica a vida. O tema do caminho necessário, que já havia sido tratado no livro Poemas e há-de ser aprofundado em alguns contos, é apenas um exemplo das correspondências internas da obra de Branquinho.

O tema do tempo é abordado em outros textos, tanto de Madeira como de Branquinho, de forma a dar relevância ao momento, uma linha temática profundamente explorada na narrativa, nomeadamente em contos como “O Anjo” (CM), e “O Involuntário” (RT). No poema “Relógio”52, publicado no número um da revista Manifesto, o tópico do tempus fugit é trabalhado no sentido de salientar a importância do momento.

51 Presença, nº 24, Janeiro de 1930, p. 12. 52

Num cenário de povoação adormecida, típico do autor, as portas e as janelas fechadas funcionam como um muro de silêncio, um muro de morte; adormecidas, as pessoas estão mortas, sem darem conta da fluidez do tempo, um tempo fugidio, independente, que passa célere: «São as horas de viver a perderem-se por todo o mundo, como fumo pelos céus, sem alguém as poder apanhar». E há a consciência da falta de sincronia entre o homem que pretende viver o tempo e o tempo que o vive e foge, lábil e autónomo, deixando em cada momento um pedaço de morte: «Nunca poderei correr tão simultâneo como o tempo no mesmo instante em tudo, como era necessário e total». O dramatismo do tópico do

tempus fugit é muito bem expresso no fim do texto, aparecendo a palavra Tempo

maiusculada, como se fosse de facto uma entidade independente: «Lá vai o Tempo sempre antes de mim, que nunca chego porque cada momento já passou quando o sinto...e vejo-o aqui e universal escoar-se e renascer contínuo sempre mais longe de cada instante dele próprio...». O reconhecimento da labilidade do tempo conduz naturalmente à necessidade de fazer de cada momento o instante da vida, o instante decisivo: «Levo no dedo o anel de ferro/que diz “Agora”/e nada mais»53.

Um outro exemplo de correspondências temáticas internas é constituído pelo tema da viagem, recorrente ao longo de toda a obra. Nos poemas em prosa de António Madeira, a viagem é concebida de diferentes maneiras, por vezes mesmo de formas contraditórias, misturando-se o desejo de partir, com a nostalgia antecipada do desejo de regressar, que conduz naturalmente à recusa da viagem. Assim, em poemas como “as viagens”, o desejo de partir é um postulado vital:

Antes seja afastado do que já alcancei que o seja daquilo para que vou. A posse é um declínio. Antes um pássaro a voar que dois na mão. Dois pássaros na mão são o que já não falta. Um pássaro a voar: é ir com os olhos a voar com ele; ir sobre os montes, sobre os rios, sobre os mares; dar a volta ao mundo e continuar; é ter um motivo de viver - é não ter chegado ainda!54

53 Litoral, nº 3, Agosto-Setembro de 1944, p. 256. 54

Neste texto, a desconstrução do ditado popular - «Antes um pássaro a voar que dois na mão» - é a reafirmação da possibilidade da viagem como errância essencial à vida: viver é estar em movimento. Mas em outros casos, como por exemplo no poema “chuva”55, há a decisão de ficar: «Para quê, pois, sair donde se está, não se podendo/ andar eternamente? Antes ficar». No entanto, mesmo neste texto há uma nota de pessimismo em relação ao ficar, porque se fica pelo facto de não se poder andar eternamente, logo o desejável seria «caminhar sempre», como diz Paulo, o herói do conto O Conspirador (CM), animado pela vitalidade da deambulação nietzschiana. Ainda no poema “chuva”, é relevante a afirmação «Somos de mais para a vida. Não queremos acre-/ditar na aparência. Sonhamos e queremos procurar». O problema é, portanto, não acreditarmos na «nossa estreita condenação»; se acreditássemos, poderíamos talvez ser felizes, mas como não acreditamos, só nos resta procurar, viajar, no espaço, no tempo e na imaginação.

A viagem é assim concebida como uma forma de fugir à condenação, que é ao mesmo tempo espacial e ontológica. Por isso, o ímpeto deambulatório é, na poesia de Branquinho, movido por um sopro épico, que faz da viagem um movimento de descoberta do mundo e de reconhecimento dos caminhos da alma. Esse sopro épico da viagem aproxima a poesia do resto da obra do autor, pois há nos textos de Branquinho a presença difusa de um passado de marinheiros e viajantes aventureiros, que se consubstanciam ora nas figuras decadentes de viajantes mal sucedidos, como o Barão, ora em figuras de aprendizes de viajantes, como o adolescente D. Pedro, o herói de Bandeira Preta, comandante do «veloz navio Falcão». Num poema de António Madeira, publicado em 1940, em Cadernos de Poesia, é muito clara a associação entre a viagem geográfica inscrita no passado e transmitida pelo sangue, e a viagem por dentro, sondando os caminhos do futuro e construindo o rumo pessoal:

Como algum meu avô navegador

pintei no mapa uma ilha que ninguém sabia, e agora tenho de ir, seja lá como for,

e outros irão depois e dirão que existia. (...)

Eu ergo e sigo os astros do meu céu. Nem assim chega o mundo todo nosso. Mas não direi que o medo me perdeu,

e outros virão depois fazer o que eu não posso.

Caminhos por mim feitos mesmo em mapas errados! no mundo sempre desconhecido diante de mim, só esses sustêm os mundos sonhados

e não têm fim.

A interrogação sobre os motivos da escrita é uma das linhas temáticas mais interessantes da poesia de Branquinho, e terá também alguns desenvolvimentos em certos contos. Num dos poemas em prosa de António Madeira, intitulado “Ontem”56, a palavra poética surge como um instrumento que permite «desenhar as ideias», estando, assim, de algum modo, ao serviço do trabalho de descoberta da identidade, a que se associam os outros temas maiores: a viagem e a reflexão sobre o tempo. O poema é um texto fragmentário, com ideias interseccionadas, em que se misturam o real e a visão alterada das coisas num processo quase oficinal, isto é, o escritor quase diz como se pode alterar o real através da imaginação: «Conquiste-se a Independência da ilusão». É um texto em viagem, num sentido duplo: o poeta escreve durante uma viagem («Quando mudar de comboio, rasga-se tudo...»), ao mesmo tempo que viaja por dentro de si mesmo: «E como uma das coisas que ainda me interessa um pouco é o eu, encontro-me a observar-me as reacções, os movimentos, as ideias...». O tom do texto, muito mais narrativo do que lírico, é típico do diário íntimo, do diário não elaborado, porque não visa a publicação. E é por isso que as palavras não têm valor por si mesmas, não se inebriam com jogos retóricos; servem apenas de linhas que definem os contornos do sujeito: «Bem, mas isto não é para ser lido. É para desenhar melhor as ideias».

O texto começa num tom que remete claramente para Cesário Verde: «Hoje só tenho tido contrariedades». Mas a sequência é diferente, dominada pela frieza e o cinismo que satisfazem. Em seguida, um andamento à Régio, de introspecção, entendendo o eu como uma boneco de corda, cujos movimentos são estudados de uma forma objectiva, ou que se pretende objectiva. E a observação e consequente descrição têm por fim compreender, e alargar a visão das coisas e do mundo. A palavra que possibilita a compreensão não pode limitar, não deve ser uma barreira, mas uma via de inclusão no

universo. A palavra permite a expansão da personalidade, o que, em termos de escrita, equivale à procura da integridade do real. No poema “Universalismo”57, um vago sentir à Álvaro de Campos dá testemunho dessa dinâmica de expansão: «Mas não serei alguma coisa os outros, o vento e os cães?!». A expansão do sujeito e do mundo é conseguida através de um processo de observação e reflexão que não cerca o eu, não o asfixia, porque, embora partindo dele e dissecando-o, não o enclausura. Para essa abertura, muito contribui o tom narrativo de grande parte dos textos, mesmo aqueles que obedecem a uma arrumação estrófica mais tradicional. A escrita enxuta de Branquinho apura-se nos contos, mas também se experimenta na poesia, nomeadamente nos poemas em prosa de António Madeira, como reconhece Ângela Varela Rodrigues:

«Nestes textos, que dissecam, como processo modernista, a personalidade individual através da reflexão e da introspecção, António Madeira consegue dominar o poema em prosa: pela brevidade sugestiva da maior parte das composições, que se moldam numa linguagem despojada, pura prosa, pela auto-ironia e pela expressão paradoxal dos sentimentos (ainda processos modernistas) contra a tendência para a expansão lírica do poema confessional.»58

A prosa dos versos de Branquinho, a «linguagem despojada», estabelece ligações com a prosa novelística e é, creio, um dos elementos que permitem configurar, desde o início, a vocação contística do escritor. Em muitos dos poemas há uma clara tendência narrativa, que assume contornos bem definidos nos poemas em prosa assinados por António Madeira, mas que também se deixa vislumbrar nos poemas mais líricos.

1. 4. “Mar Coalhado”

O segundo e último livro de poesia publicado por Branquinho foi editado em

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