• Nenhum resultado encontrado

Capítulo II: A Filosofia para Crianças FpC

2.3. O que é uma oficina de Filosofia para Crianças?

"O simples facto de haver uma exigência e de não se poder argumentar com um simples «eu quero falar» inaugura um registo diferente. Há um problema apresentado, e trata-se o problema. Há perguntas, responde-se às perguntas e não se parte para outro tema qualquer simplesmente «porque me apetece». Uma sessão de filosofia com crianças não é um atelier de expressão livre. E a diferença está no facto de haver um objetivo e de examinar se uma resposta responde a uma pergunta. Este é já um exercício muito importante em si mesmo. Na medida em que, se olharmos para o quotidiano, a maior parte das vezes ninguém responde às perguntas."192

Na sua versão mais tradicional, com origem lipmaniana, uma oficina de filosofia para crianças apresenta o seguinte alinhamento193:

- o «dificultador» e o grupo procedem à leitura de uma história, que serve de ponto de partida para o diálogo;

- há lugar ao levantamento das questões que surgem a partir da leitura partilhada pelo grupo;

- seguindo-se a discussão filosófica194.



191 “A multiplicity of ideas and perspectives, and the tension and the conflict that arises from the differences

among them, can be a good thing because it helps us understand the issues at hand more deeply. When alternative viewpoints come together, we say that they help to “inter-animate” or “inter-illuminate” each other.” Ibidem, p. 9. Nota: tradução nossa.

192 Cf. Oscar Brénifier: a filosofia está em todo o lado. (15 de maio de 2016). In

https://www.noticiasmagazine.pt/2016/15147/#ixzz48pGuwaZa (Acedido em agosto 18, 2018).

193 O alinhamento de uma oficina de filosofia para crianças, de índole lipmaniana, é referido por autores como

Dina Mendonça que, em vez de oficina lhe chama sessão, tal como se pode ler no ponto “Como funciona uma sessão”, na p. 20 do livro Brincar a Pensar.

194 Para Marie France-Daniel, este terceiro momento constitui “a etapa da formação da comunidade de

investigação, a etapa do surgimento dos valores democráticos, a etapa que marca a adesão ao pluralismo e a recusa do dogmatismo.” A influência de Peirce e de Dewey é salientada por Marie-France Daniel, num estudo onde sublinha o forte papel que a experiência apresenta no programa proposto por Lipman. Cf. Daniel M-F. (2000) A filosofia e as crianças. São Paulo: Nova Alexandria, p. 25.

Há, porém, outros modelos de abordagem à oficina de Filosofia para Crianças, como por exemplo aquele que é proposto por Jason Buckley195 e do qual fazem parte os seguintes

momentos:

- a criação do ambiente para a investigação filosófica, com recurso a jogos de aquecimento, que permitam o trabalho em equipa, por exemplo;

- o estímulo ou o ponto de partida para a investigação, que se pode traduzir na leitura de uma história ou de um excerto da história, na apresentação de uma imagem, numa notícia de jornal, na visualização de um vídeo, na partilha de uma fotografia, na audição de uma música ou de um objeto, numa situação que o grupo ou parte do grupo vivenciou;

- o tempo para pensar, de forma individual ou em pequenos grupos; - a partilha de perguntas;

- o arejamento das perguntas, em que é solicitado ao grupo que reflita sobre as perguntas colocadas; este momento pode ser prévio ao momento da votação e da escolha da pergunta a ser trabalhada;

- a escolha da pergunta, cujo sistema de votação pode ser variado, como por exemplo cada pessoa votar em apenas uma pergunta ou cada pessoa poder votar em três perguntas; o sistema de votação pode ser outro, sendo, no entanto, importante que o mesmo seja claro para os participantes;

- os primeiros pensamentos, momento em que o grupo é convidado a tomar uma primeira posição sobre a pergunta que será discutida;

- a discussão em si mesma;

- as alegações finais, momento que acontece perto do final da oficina, que nos permite assinalar os momentos durante os quais alguém mudou de ideias, em que podemos agradecer a alguém a partilha de uma ideia que foi importante para o curso do trabalho de investigação e em que o «dificultador» solicita a participação daquelas pessoas que menos participaram;

- o momento de revisão, em que o grupo é convidado a refletir sobre a forma como aconteceu a oficina, sobre a forma como esteve a pensar.

No nosso entendimento a oficina de FpC constitui-se como o alicerce da CIF. A oficina de FpC permite um encontro inaugural entre os membros da CIF, mas esta só acontece mediante a continuidade, ao longo do tempo e quando acontecem o “salto” de que fala Sharp e que elencámos no final do ponto 2.2.1. do presente trabalho. A oficina de FpC constitui o 

espaço e o tempo onde se procura fazer acontecer a CIF. Tal como mencionámos no ponto 2.2.1. quando referimos e adotámos a definição avançada por Cam face à CIF, o trabalho de continuidade com grupos de crianças e de jovens, em ambiente de oficina de FpC, constitui o terreno fértil onde o «dificultador» e os participantes da oficina lançam sementes para que a CIF possa florescer. Arnaiz196 descreve as oficinas de filosofia como um modo diferente de

ensinar /aprender filosofia, ou melhor dito, no contexto deste trabalho, a filosofar. Numa oficina de FpC é de extrema importância o processo de construção do pensamento, mais do que o resultado desse processo ou a conquista de uma resposta. Na mesma linha, de acordo com Celeste Machado, Oscar Brenifier defende:

“(…) que o pensamento se concebe, em grande parte, em oposição ao conhecimento, sendo este último a posse de ideias fixas que cristalizam, esterilizam e fossilizam os processos mentais.”197

As oficinas de FpC devem ser dificultadas e participadas por quem esteja disposto a abandonar as suas certezas e o saber acumulado. No seguimento do que defendemos no ponto 2.2.1. a propósito da CIF, a dúvida, no âmbito de uma oficina de FpC, deve ser acolhida e aceite, uma vez que a sua consciencialização e o compromisso para a trabalhar contribuem para que o grupo de participantes da oficina inicie o processo de desenvolvimento de momentos de dinâmica que atribuímos a uma CIF.

«Dificultar»198 um diálogo de investigação é diferente de «dificultar» um diálogo. Não é

difícil colocar as crianças a fazer perguntas - ainda que haja algumas mais tímidas e inseguras. O difícil é demorarmo-nos na pergunta, no problema que se encontra perante o grupo. Insistir, persistir - sem desistir, só porque é muito difícil, já estamos cansados ou não nos

apetece. Michel Sasseville199 refere que há aspetos da Filosofia para Crianças que são mais

fáceis de dizer do que propriamente de fazer. Salientamos aqui alguns desses aspetos:



196 Citado por Machado, C. (2013). Op. Cit., p.169.

197 Ibidem, p. 171. O papel do facilitador passa por se reconciliar com o seu próprio discurso, assumindo incertezas

e questionando as suas afirmações habituais, sobre as quais já deixou de refletir por hábito ou necessidade de segurança: “pelo que, o primeiro objetivo de um autêntico professor consistirá no desfazer ou romper dos nós que o conhecimento representa, um conhecimento caracterizado como opinião, com vista a libertar, deste modo, a mente e o pensamento. No fundo, a sua primordial função será a de “abrir as necessárias fendas na crosta do nosso convencimento, das nossas certezas” e “dar murros na nossa redoma e estilhaçá-la.”, porque, conforme Brenifier “una de las tareas principales de la práctica filosófica es la de invitar a la persona a reconciliarse con su propio discurso”. (Ibidem).

198 Utilizamos o verbo dificultar de forma a sermos coerentes com a proposta de nomenclatura. O «dificultador»

não facilita um diálogo, age como um dificultador e por isso dificulta.

199 Sasseville M. (2017). “Showing that children can do philosophy.” In Naji S., Hashim R. (Eds.), Op. Cit., pp.

 o facilitador200 deve estar sempre, e cada vez mais, consciente de que os diversos

estilos de pensar e de aprender traduzem-se em riqueza para a comunidade de investigação;

 a dinâmica da colaboração é mais do que sermos amigos uns dos outros; trata- se de colocar em prática o conflito cognitivo com os outros, de aceitar que somos desafiados pelos outros e que podemos até alterar o nosso ponto de vista, devido a esse conflito e / ou desafio.

A colaboração, ao invés da competição, exige do «dificultador» a criação de um contexto no qual os participantes estão envolvidos, do princípio ao fim, num processo de desenvolvimento da compreensão da pergunta, do tema, do desafio que foi proposto ao grupo ou pelo grupo, como motor para o diálogo. O «dificultador» deverá preparar-se e agir em conformidade, desenvolvendo ele próprio as disposições que pretende ver fomentadas durante o processo de diálogo, no âmbito da comunidade de investigação. Que disposições são essas? De acordo com Sasseville, essas disposições passam por ser crítico, ser autocrítico, espantar- se, pedir razões e princípios, ideias reguladoras / orientadoras, cuidar das diversas ferramentas da investigação, entre outras.201 Por outras palavras, e sublinhando a importância do pensar

sobre o pensamento, recorremos às palavras de Machado:

“Parar para pensar, repousar e escutar o pensamento, falar consigo mesmo, analisar criticamente, olhar de diferentes ângulos e em diferentes momentos, investigar, deixar(- se) narrar e questionar(-se), contar como foi, tendo em vista a compreensão de como é, e como poderá ser, são algumas das atitudes fundacionais do pensamento metacognitivo [...]”202

Capaz de pensar sobre o pensamento, a Filosofia apresenta-se como uma disciplina através da qual podemos praticar a reflexão metacognitiva acerca do ato de pensar.203

No seguimento dos estudos de Sasseville e de Machado, voltamos a recorrer a Lipman de forma a enunciar as categorias que o filósofo americano e e a equipa do IAPC (Institute for the Advancement of Philosophy for Children) elencaram, ao nível das competências:

- competências de formação de conceitos; - competências de investigação;



200 O autor não utiliza a nomenclatura que propusemos no ponto 2.2.2. do presente trabalho e por isso retomamos

a expressão facilitador.

201 Idem, p. 97.

202 Cf. Machado, C. (2013). Op. Cit., p. 525.

203 Cf. Manildo, S., & Rossi, C. (2018). “Staying Doubtful: How can Philosophical Inquiry in Science at Secondary

School Promote Interdisciplinary Reflection and Epistemological Awareness?” In E. Duthie, F. Moriyón, & R. Loro (Eds.), Op. Cit., pp. 226-236.

- competências de raciocínio; - competências de tradução.

Para Lipman, as competências do pensamento, por si só, não são suficientes. É necessário trabalhar ao nível das disposições ou atitudes. No Capítulo IV do presente estudo iremos retomar esta questão, no sentido de compreender as características distintivas do «dificultador». Por agora referimos que a dimensão experiencial que a FpC nos tem proporcionado e que já assinalámos com a descrição de Ann Margaret Sharp sobre a descoberta do trabalho proporcionado pela Comunidade de Investigação, leva-nos a considerar aquilo que sabemos por experiência própria:204 que o trabalho nesta área exige o desenvolvimento de cada

uma das competências do pensamento e também das disposições ou atitudes, tais como aquelas que Sasseville refere, em igual medida. Por este motivo se sublinha a importância da autocorreção que o «dificultador» deve colocar em prática e com a qual as crianças se vão familiarizando.