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O que a escola faz ao instituir o uso dos

uniformes escolares?

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Katiene Nogueira da Silva2

lembro de Jen White me falando sobre um par de sapatos que seus pais compraram para ela ir à escola. Sapatos práticos, bons, mas com os quais você tinha vergonha de ser visto. É difícil avaliar seriamente, de forma suficiente, a agonia desses momentos, a raiva, o sofrimento, o desespero. Uma identidade demasiadamente visível está lá, nos seus pés, fazendo troça de você, humilhando você (Stallybrass, 2000, p.43).12

Este capítulo buscará discutir de que forma a escola, ao instituir a prática de uso dos uniformes escolares, pode ter promovido uma moralização dos costumes nesse espaço. Ao uniformizar esteticamente os corpos mediante uma única forma de vesti-los, a escola moraliza os alunos, pois faz uso do ato de vestir para transformar a moral em prática, inserindo-a no comportamento discente. Analisar os diferentes usos dos uniformes escolares – pois a sua obrigatoriedade legal tem

1 Capítulo redigido com base na dissertação “Criança Calçada, Criança Sadia!”:

Sobre os uniformes escolares no período de expansão da escola pública paulista (1950/1970), de Katiene Nogueira da Silva (2006), sob orientação de Denice Barbara Catani, com o financiamento do CNPq.

2 Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo, com período

sanduíche no Institut National de Recherche Pédagogique (INRP), em Paris, França e estágio de pós-doutorado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Professora do Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. E-mail: katiene@usp.br

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sido justificada, muitas vezes, no âmbito da economia, do controle e da higiene – neste trabalho poderá ser fértil para a compreensão da cultura da escola e de suas práticas. Entendidas como manifestações da vida e da cultura escolar, as práticas de uso dos uniformes obedeceram a diferentes motivações e finalidades.

Neste estudo, é possível analisar não apenas as motivações para a imposição desse traje como também seus vínculos com políticas educativas, condições econômicas concretas na vida escolar e idealizações pedagógicas de professores e alunos. Durante o período de democratização da escola pública paulista, por exemplo, o Brasil passava por intenso processo de urbanização e industrialização e, simultaneamente, também por um processo de modernização dos costumes.

Essa modernização expressava-se de maneiras múltiplas, dentre elas nos modos de vestir, nas cores, nos modelos e contornos das roupas, principalmente dos jovens. Nesse sentido, os uniformes escolares eram vistos como imposição de uma “igualdade” construída pela instituição escolar. As cores azul, branco e cáqui, adotadas nos uniformes escolares paulistas entre os anos de 1950 e 1970, no período de expansão da escola pública paulista, por exemplo, faziam com que os estudantes carregassem no próprio corpo as cores nacionais atreladas ao caráter militar.

No que diz respeito à disciplina, o uso desse vestuário também estendia o regimento interno da escola para além de seus portões, pois os alunos, onde quer que estivessem, quando uniformizados, deveriam respeitar as normas escolares. Com relação à questão do acesso à escola, faz-se necessário chamar a atenção para as dificuldades que as famílias mais pobres enfrentavam para conseguir manter os filhos nesse espaço devido às exigências materiais que eram feitas, dentre elas, a obrigatoriedade de uso dos uniformes. No interior do espaço escolar, muitas vezes, associados à higiene e à disciplina, os uniformes estiveram (e estão) presentes não só como dispositivo de controle e imposição de hábitos, mas também como objeto de moralização e de uniformização da escola.

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As roupas como objeto de estudo

Peter Stallybrass (2000), ao estudar o casaco de Karl Marx, defendeu que as roupas são objetos dotados de memória e que carregam consigo as marcas de cada sujeito. Stallybrass discorre também sobre as funções que teve o casaco que Karl Marx vestia para ir ao Museu Britânico na época em que escreveu o livro O Capital. Tal roupa entrava e saía da casa de penhores e possuía usos bem específicos: conservar Marx aquecido no inverno e distingui-lo como um “cidadão decente”, e como tal pudesse frequentar o salão de leitura daquele museu. No ano de 1852, ele ficou doente e escreveu com muita dificuldade. Sua família vivia de doações e daquilo que podia penhorar. Penhorar tornava-se a principal fonte de renda na casa de Marx. Em 1850, ele havia conseguido um passe de entrada para a sala de leitura do Museu Britânico, onde realizaria sua pesquisa. Porém, para financiá-la, ele precisava escrever por dinheiro, sendo necessário que se dedicasse ao jornalismo. Sua situação financeira era muito difícil naquele ano, o que o levou a penhorar seu casaco de inverno. Sem essa roupa, ele não podia entrar no Museu Britânico.

Mas os fatores ideológicos eram, provavelmente, tão importantes quanto o frio. O salão de leitura não aceitava simplesmente qualquer um que chegasse a partir das ruas: e um homem sem um casaco, mesmo que tivesse um passe de entrada, era simplesmente qualquer um. Sem seu casaco, Marx não estava, em uma expressão cuja forma é difícil de reproduzir, ‘vestido em condições em que pudesse ser visto’ (Stallybrass, 2000, p.65).

Seu casaco determinava diretamente o trabalho que Marx podia realizar ou não, se aquele estivesse na loja de penhores, sua pesquisa não se realizava, e ele tinha de voltar para o jornalismo. Para o autor,

tornou-se um clichê dizer que nós não devemos tratar as pessoas como coisas. Mas trata-se de um clichê equivocado. O que fizemos com as