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2.4 Diálogo entre o Novo e o Existente

2.4.1 O que impede o Diálogo?

A prática do respeito pelo edifício existente e a conveniência da produção de um certo equilíbrio visual entre o novo e o existente, são relativamente recentes.

Nos últimos anos tem-se reconhecido que as consequências indiretas da utilização distorcida do Movimento Moderno foram pouco satisfatórias e benéficas para os centros históricos. Ainda assim, afirmar que o Movimento Moderno tentou eliminar a história é talvez exagerado. No entanto parece que de alguma forma tentou obstruir o seu discurso tradicional. Durante aquele período gerou-se um acentuado conflito entre tradição e vanguarda, impulsionado pela crença radical de que não era possível inovar por evolução, apenas por rutura. Assumiu-se a prática do contraste formal entre o novo e a arquitetura do passado como premissa de intervenção, desconsiderando a possibilidade de uma modernidade alternativa que pudesse proteger o passado.

"Se puede decir que toda nueva obra de arquitectura nace en relación - de continuidad o de antítesis, de lo mismo - con un contexto simbólico creado por obras precedentes libremente escogidas por el arquitecto como el horizonte de referencia de su temática."44

Ainda que de alguma forma o Movimento Moderno possa ter rejeitado a coexistência com o histórico e tenha inclusivamente tentado eliminar da sua memória o contexto real, ao considerarmos esta afirmação, somos levados a crer que uma rutura total com o passado e com a pré- existência não é possível, pois o homem, e particularmente o arquiteto, é sempre influenciado pelo meio e consequentemente toda a obra por ele criada tem uma base pré-existente. Assumindo então que a arquitetura estabelece, ainda que sem pretendê-lo, uma espécie de continuidade histórica, a questão fulcral prende-se na eleição do

44 Gracia, F., Op. Cit., p. 22.

contexto de referência, que a nosso ver pode e deve ser também o contexto real de intervenção.

a) Arquitetura Descontextualizada

"Se, em verdade, a organização do espaço tem na base uma atitude de escolha em face da circunstância haverá que contar com esta - mesmo negando-a em certos dos seus aspectos - mas não parece justo pô-la totalmente à margem, no sentido de criar formas pretensamente 'geniais' ou 'diferentes' que, por vezes, nada mais satisfazem do que o egoísmo dos seus autores, até porque é sabido que uma forma só possui significado na medida em que representa ou satisfaz, para além

de um homem, toda uma sociedade que dela se utiliza."45

O pretensiosismo do arquiteto teve talvez a sua expressão máxima na designada arquitetura descontextualizada, assim classificada por Francisco de Gracia (1992). Esta arquitetura assumiu-se como despreocupada face ao problema de construir no construído, situando- se à margem de qualquer questionamento perante os problemas da forma dentro de um contexto real, assumindo-se assim como um produto predominantemente comercial. Contudo a sua produção teve uma grande expressão. Quanto ao seu reconhecimento, caiu no anonimato e indiferença, talvez pela falta de fundamento encontrada na sua prática, que em todo o caso entendemos como um certo capricho. Não devemos, no entanto, confundir esta atitude com uma arquitetura de contraste, pois nesta adotou-se uma posição crítica intencional quanto à rejeição de uma possível continuidade da pré- existência.

b) Arquitetura Desvirtuada

Consideramos arquitetura desvirtuada toda a arquitetura que pela intenção de uma reabilitação, ou por uma simples alteração de uso levada a cabo pelo proprietário, desconsidera a capacidade de tal pré-

45 Távora, F., Op. Cit., p. 26.

Fig. 13 e 14 | Exemplo de Arquitetura Desvirtuada, Igreja do Convento de São Francisco, Torre de Moncorvo

Fig. 11 e 12 | Exemplo de Arquitetura

Descontextualizada, Cidade das Artes e das Ciências, Santiago Calatrava

existência para receber um determinado programa. A alteração é por vezes tão significativa que acaba por retirar ou modificar altamente elementos que dignificavam a pré-existência e lhe conferiam uma identidade particular.

Numa edificação que se prevê ser intervencionada, deve em primeiro lugar proceder-se à avaliação da qualidade dos elementos existentes (teoria do valor) e da capacidade que esta detém para receber um determinado programa. De outra forma poderá ocorrer uma desconsideração pelos elementos existentes qualificados e uma incompatibilidade de usos, não só devido a uma adaptação a uma morfologia inadequada, mas também por uma incompatibilidade ética e moral de usos, que resultam na perda de identidade.

São exemplos disso a antiga Igreja do Convento de São Francisco de Moncorvo e a Igreja de São Domingos em Coimbra.

c) Envelhecimento Precário

Consideramos igualmente que a precária qualidade do envelhecimento do edificado constitui um dos problemas para a difícil integração dos edifícios modernos no contexto histórico. A fugacidade e efemeridade características da arquitetura moderna e dos seus programas muito específicos que seguiam a máxima “Form follows function” resultaram em edifícios com reduzida capacidade de serem adaptados e albergarem diferentes programas.

Este caráter temporário acabou por impedi-los de atravessar a passagem do tempo preservando a qualidade material, formal e visual, o que pelo contrário se verifica nos edifícios com vários séculos que mantêm a exuberância e qualidade próprias, e oferecem variadas possibilidades de utilização.

Obras exemplares do Movimento Moderno sofreram processos de restauro poucas décadas após a sua construção. Acreditamos que parte da solução para este problema passa pela previsão do processo de

Fig. 15 e 16 | Antiga Igreja transformada em Centro Comercial, Igreja de São Domingos, Coimbra

Fig. 17 e 18 | Quinta da Malagueira, Álvaro Siza Viera

envelhecimento destes novos edifícios, que através de uma escolha cuidadosa de materiais e acabamentos com maior durabilidade, podem sofrer um processo de envelhecimento de acordo com as características do contexto.

d) Subjetividade do gosto – Assimilação Social

"Buildings are appropriated in a twofold manner: by use and by perception or rather by touch and sight... Tactile appropriation is not accomplished not so much by attention as by habit. As regards architecture, habit determines to a large extent even optical reception."46

O reconhecimento da beleza, segue essencialmente a informação recolhida pela perceção, que de forma genérica define o belo, sem ter por base uma metodologia com princípios estabelecidos que permitam definir uma forma como bela, sendo guiada pela subjetividade e pelo

bom gosto. Aleado a isto e segundo um conceito que Francisco de

Gracia (2001) designa por “assimilação social”47, a discrepâncias formais entre o novo e o velho, através de mecanismos psicológicos de acomodação ou hábito visual. Assim, elementos que tenham resultados insatisfatórios numa apreciação inicial, acabam por tornar-se parte integrante do conjunto, sob o olhar da população. O que é considerado “feio” ou descontextualizado num primeiro olhar, pode ter uma avaliação completamente oposta passado algum tempo, e vice-versa. Para o autor, o caráter evolutivo da perceção da relação entre o novo e o pré-existente, torna mais difícil a construção de uma teoria geral para a intervenção no construído.

46 Benjamin, W., Illuminations, New York: 1968, p. 242.

47 “Por lo demás, el ciudadano tiende a consiliarse com los ámbitos familiares aunque le hayen resultado insatistfactorios en una apreciación inicial. En el caso concreto de la existencia de discrepancias formales entre lo nuevo e lo viejo, el ciudadano propende a reducir la importancia de esa disensión mediante mecanismos psicológicos de acomodo perceptivo.” Gracia, F., Op. Cit., p. 72.

Fig. 19 e 20 | Intervenção Artística que fez desaparecer a pirâmide do Museu do Louvre

"Em espaço organizado, em formas, a situação caótica da arquitetura contemporânea portuguesa manifesta-se nos mais variados aspectos: pela utilização de técnicas que estão ultrapassadas ou ainda não têm sentido entre nós, pela criação de espaços que estão longe de corresponder às suas funções ou às necessidades dos seus utentes, pela utilização de 'colunas' ou outras formas de 'gosto' que de nada servem mas foram a alma de arquitecturas antigas, pela eliminação de valores legados pelo passado, e isto, pela não consideração das qualidades dos sítios, em resumo, pela ignorância de todo o sistema de relações que deve existir entre a arquitectura e a circunstância que a envolve e pela cobardia de quando tal circunstância tem aspecto negativo, recear combatê-la recear melhorá-la, recear transformá-la."48

Revemo-nos vivamente nas palavras de Távora, que sintetizam aspetos negativos da arquitetura contemporânea portuguesa, aspetos que se podem aplicar à situação da arquitetura mundial em geral. As soluções praticadas não fomentam o diálogo entre a arquitetura e a população, entre a arquitetura e o meio, entre a arquitetura do passado e do presente.

Sob o nosso olhar, a arquitetura deve representar um duplo diálogo: diálogo com a história e diálogo com a natureza. Em ambos os casos está subentendida a presença do Homem enquanto "fazedor" da história e também enquanto parte integrante da natureza. Se uma intervenção arquitetónica conseguir integrar o novo na história e no meio natural respondendo às necessidades do Homem, seu futuro utilizador, integrando-se igualmente na sua vida, podemos então considerar que existe um diálogo.

Felizmente nas últimas décadas tem-se vindo a desenvolver uma procura pelo reencontro com as condições ambientais que no passado e na cidade tradicional se praticavam. Finalmente compreendemos que o novo necessita do velho para se constituir, razão que se pode opor à

48 Távora, F., Op. Cit., p. 55.

rejeição do antigo praticada pelo modernismo. Agora que reconhecemos a necessidade da história para a concretização do presente, ela por si só, pode fornecer-nos as fórmulas para atuar eficazmente sobre a atualidade e "resolver el conflicto - téoricamente ficticio - entre modernidad y continuidad."49

49 Gracia, F., Op. Cit., p. 71.