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[...] se a educação é esta relação entre sujeitos cognoscentes, mediatizados pelo objeto cognoscível, na qual o educador reconstrói, permanentemente, seu ato de conhecer, ela é necessariamente, em conseqüência, um quefazer problematizador. (FREIRE,

2002b, p. 81).

Para que uma situação pedagógica seja considerada como uma situação genuinamente gnosiológica, impõe-se a necessidade de seus atores – educador e educandos – atuarem como sujeitos de aprendizagem, ou seja, sujeitos que utilizem todas as suas possibilidades cognoscentes nas relações com o mundo.

Freire considera que o ponto de partida da educação deve ser as relações problematizadas homem-mundo, pois a educação tem como uma de suas principais finalidades auxiliar homens e mulheres para que atinjam uma leitura crítica dessas relações. E isso só se faz através de uma educação problematizadora. “Inseparável do ato cognoscente, a problematização se acha, como este, inseparável das situações concretas”.(FREIRE, 2002b, p. 82).

Clarificando para o leitor essa questão, o próprio Freire pergunta sobre o que é essa problematização e responderá: é propor ao educando a “ad- miração” dos problemas

do mundo do trabalho, das obras, dos produtos, das idéias, das convicções, das aspirações, dos mitos, da arte, da ciência, enfim, o mundo da cultura e da história, que, resultando das relações homem-mundo, condiciona os próprios homens, seus criadores.(FREIRE, 2202b, p. 83).

É nessa “ad-miração” do “ad-mirado” que homens e mulheres percebem a necessidade de aprofundamento, de conhecer melhor e com mais exatidão os conteúdos da realidade concreta, que nosso autor denomina de “achados”, superando a doxa pelo logos.

Impõe-se, a essa altura, a inevitável pergunta que fazemos a Freire : como realizar essa difícil tarefa? Busquemos a resposta retornando à mola propulsora do conhecimento, a curiosidade e sua importância para que a educação atinja suas finalidades na perspectiva da criticidade, libertação e mudança.

– O QUE REPRESENTA A CURIOSIDADE NA EDUCAÇÃO? E A “AD- MIRAÇÃO”?

Antes de qualquer tentativa de discussão de técnica, de materiais, de métodos para uma aula dinâmica assim, é preciso, indispensável mesmo, que o professor se ache “repousado” no saber de que a pedra fundamental é a curiosidade do ser humano. É ela que me faz perguntar, conhecer, atuar, mais perguntar, re- conhecer.(FREIRE, 2007c, p. 86).

Se a curiosidade está presente como fenômeno vital na criatura humana tendo inclusive ultrapassado os limites desse domínio tornando-se condição “fundante da produção do conhecimento” (2007c, p.55), educadores e educandos, como seres naturalmente curiosos, não podem descartar essa força motriz na experiência educativa.

Na “curiosidade do(a) professor(a) e dos alunos, em ação, se encontra a base do ensinar-aprender”, afirma Freire(2008, p. 81). Destaca, ainda, que um dos saberes fundamentais à prática educativo-crítica é aquele que “adverte da necessária promoção da curiosidade espontânea para a curiosidade epistemológica” dos educandos (2007c, p.34). Como tal promoção não ocorre automaticamente, auxiliar o educando na superação da curiosidade ingênua para a curiosidade crítica representa, então, uma das principais tarefas da educação libertadora, do educador progressista.

É ao longo de toda obra Pedagogia da Autonomia, publicada em 1996 – e não só no item específico Ensinar exige curiosidade – que Freire discute o papel da curiosidade como matriz de todo conhecimento e a necessidade do

respeito à curiosidade natural do educador, dos educandos bem como o indispensável exercício de uma postura curiosa de ambos para que as situações pedagógicas se apresentem como verdadeiras situações gnosiológicas.

Sendo histórica, como já assinalamos anteriormente, a curiosidade pode ser elevada a níveis cada vez mais crescentes, superando-se. Por essa razão, cabe à escola e ao educador manterem viva a curiosidade do educando, ampliando-a, possibilitando o espaço de uma certa insatisfação e rebeldia, necessária ao seu desenvolvimento. Quanto mais se exercita a postura curiosa, mais a própria curiosidade é melhor aproveitada enquanto elemento propulsor do conhecimento.

O professor que não tem curiosidade epistemológica dificilmente supera a visão de educação como transmissão de conteúdos e não está comprometido com aquela promoção. Assim, o professor que busca “domesticar” ou que se utiliza de procedimentos para inibir a postura curiosa de seus educandos, termina por inibir a sua própria curiosidade, comprometendo negativamente a sua prática educativa, especialmente por abdicar da postura investigativa essencial à ação docente. Daí a necessidade da formação do professor se dar numa perspectiva do exercício da sua curiosidade epistemológica, o que exige uma constante crítica de sua própria prática pedagógica, num processo contínuo de auto-avaliação da condução das situações de aprendizagem.

A afirmativa acima se aplica a todos os níveis de ensino, inclusive no ensino superior, na Universidade e a todos os professores, pois, no pensamento freireano, não há docência desvinculada da pesquisa, da busca do conhecimento, o que exige uma postura curiosa e investigativa do educador. (FREIRE, 2008, p. 192-193).

Numa prática educativa bancária, o professor desrespeita a curiosidade do aluno, cerceia ou impede sua expressão, atende-o superficialmente, “castra”, “amacia” ou “domestica” sua postura curiosa diante do mundo, “burocratizando-a”, reduzindo-a à memorização mecânica de aspectos ou propriedades dos objetos (conteúdos) de estudo.

Numa prática educativa que se pretenda libertadora, o educador não só respeita como estimula e desafia a curiosidade do educando através de atitudes como a indagação, a comparação, a dúvida, a aferição, caminhos que conduzem ao que Freire chama de “exercício e educação do bom senso”, uma espécie de “trânsito” da curiosidade ingênua para a curiosidade epistemológica ou crítica, desde que se dê por prática metódica e não espontaneísta.

Enquanto ato de conhecimento a educação demanda a curiosidade de educandos e educadores diante do objeto. Essa curiosidade exige a “distância” do objeto para melhor compreendê-lo, o que se alcança através da pergunta, da observação, da delimitação, da análise (cisão), da investigação metódica sobre a sua razão de ser, da comparação, atitudes favorecedoras para o alcance da rigorosidade que a tornará, assim, curiosidade crítica ou epistemológica, condição para a produção do conhecimento novo, a partir do já conhecido.

Destacamos finalmente, nesse tópico, que para Freire, também no que diz respeito à curiosidade “pedagógica”, essa não se restringe apenas aos aspectos cognitivos. “O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado de sua razão de ser” (FREIRE, 2007c, p. 88). E ainda quando a curiosidade do educando seja compensada pelo alcance da compreensão do objeto, deve ser estimulada a continuar “viva”, na busca permanente do conhecimento, condição fundamental ao ato mesmo de conhecer.

Se para Freire a curiosidade de educadores e educandos em movimento se constitui a base do processo educativo, a “ad-miração”, pedagogicamente falando, é definida como uma operação possível e necessária ao educando para não só compreender sua realidade mas compreendê-la criticamente, de modo a transformá-la e não apenas adaptar-se a ela, é “a força da educação que se constitui em situação gnosiológica” (2002b, p.84). Grifo nosso.

Não há conhecimento sem “ad-miração” do objeto, afirma categoricamente Paulo na obra Ação Cultura para a Liberdade e outros

escritos, obra que ao lado de Extensão ou Comunicação? aborda mais

diretamente o tema. Se a educação se constitui numa situação gnosiológica, o ato de “ad-mirar” é uma operação das mais significativas e importantes no processo educativo. Ao “ad-mirar” os objetos (conteúdos), os educandos se colocam curiosamente diante dos mesmos numa atitude que também é

investigativa (busca as propriedades e a razão de ser mais profunda daquilo

que é investigado), analítica (promove a cisão da totalidade “ad-mirada”, aprofundando o conhecimento das partes para assim descrever o objeto),

comunicativa (permite que os educandos socializem entre si suas “ad-

mirações” através da linguagem, o que promove a qualidade do conhecimento dos “achados”) e crítica (que busca as interrelações dos conteúdos entre si e a realidade)

O exercício pedagógico da “ad-miração” de educador e educandos, mediatizados pelos objetos oportuniza para o primeiro a “re-admiração” do já “ad-mirado”, tornando-o um educador-aprendente aberto ao novo, crítico do seu próprio processo de “ad-mirar”, capaz de superar erros e equívocos e aos segundos a construção de um conhecimento autêntico, de um pensar certo, que os auxiliem na superação das percepções ingênuas, da doxa e na identificação dos condicionamentos sócio-históricos a que está submetida a sua leitura de mundo. Esse é, para Freire, o papel de uma educação genuinamente libertadora e humanista, que não se resume à transferência mecânica de conhecimentos a serem memorizados pelos alunos e que propõe, na problematização, a atitude de “ad-miração” dos educandos e do educador nas relações dialógicas.

– É POSSÍVEL UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA NAS RELAÇÕES