século XX. São Paulo: Ática
O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS LGBT NAS ESFERAS REGIONAIS
caso haja falta de inovação. Mais além, nesse entendimento liberal, a construção e aplicação dos direitos humanos, por exemplo, são vistas como um conjunto de ideias capazes de influenciar a formação de políticas externas dos Estados.
A partir de pesquisa bibliográfica e documental, o presente trabalho tem por objetivo descrever o processo de reconhecimento dos direitos LGBT nas esferas regional, global e nacional de proteção dos direitos humanos. Primeiro, é apresentado um histórico a partir dos sistemas regionais de proteção de direitos humanos, em especial a partir dos sistemas europeu e interamericano, que constituem o locus das primeiras manifestações de reconhecimento oficial dos direitos LGBT. Em seguida, é apresentado o histórico do desenvolvimento do tema no âmbito global, a partir da Organização das Nações Unidas (ONU). Por fim, o texto examina o contexto brasileiro, apontando avanços realizados a partir das lutas dos movimentos sociais e da atuação do governo bem como desafios ainda presentes, que coincidem de alguma maneira com os desenvolvimentos ocorridos no cenário global. A ordem escolhida adota uma perspectiva temporal de distribuição dos acontecimentos na esfera internacional, permitindo-‐se compreender os acontecimentos nacionais e a análise da conjuntura atual de forma comparativa àqueles acontecimentos internacionais.
O RECONHECIMENTO DOS DIREITOS LGBT NAS ESFERAS REGIONAIS
Stonewall – em referência ao bar “Stonewall Inn”, em Nova Iorque, nos Estados Unidos -‐ é conhecido como um marco na luta pelos direitos LGBT, onde em 28 de junho de 1969, ele foi palco de uma forte reação da comunidade LGBT a uma intervenção policial de rotina no local, em um tempo em que ser LGBT não era algo socialmente aceito. A data é hoje celebrada internacionalmente como “Dia do Orgulho LGBT”. A luta, que em 28 de junho de 1969 ficou evidente nos Estados Unidos, perpassa hoje os vários países e fóruns multilaterais.
Os termos irão variar ao longo do tempo5, uma vez que as identidades de gênero se constroem (BUTLER, 2006) e fornecem pistas sobre este processo que reconhece identidades ainda que inacabadas ou em construção. O estado de permanente construção, no entanto, não está restrito ao tema das identidades, mas também é inerente aos direitos humanos, tidos como “direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas” (BOBBIO, 1992, P. 5).
Nos anos 1970, a homossexualidade foi excluída dos manuais de doenças mentais nos Estados Unidos como resultado das manifestações feitas por ativistas americanos. No Brasil, o movimento social, liderado pelo Grupo Gay da Bahia (GGB), iniciou a campanha pela retirada da homossexualidade do código de classificação de doenças do INAMPS, órgão nacional de previdência social, em 1981, proposta aceita pelo Conselho Federal de Medicina em 1985 (SIMÕES, 2010, P. 24). Por mais de cinquenta anos a homossexualidade foi considerada uma doença pela Organização Mundial de Saúde que, em 17 de maio de 1990, retirou-‐a do seu código de classificação de doenças.
Por outro lado, a transexualidade permanece no rol para diagnóstico psiquiátrico6 até os dias atuais e tem sido objeto do debate acadêmico que busca desconstruir tal conceito como patologia para dar significado a partir da antropologia, sociologia, dentre outras disciplinas. No âmbito dessa discussão, Simone Nunes Ávila chama atenção para a
5 Várias expressões têm sido utilizadas para fazer referência ao que chamamos hoje neste artigo de população LGBT e fazem parte de um amplo debate teórico e político sobre a orientação sexual e a identidade de gênero, dentre elas: GLS (gays, lésbicas e simpatizantes), GLBT (gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros/travestis e transexuais). A letra “T” nas várias siglas ainda é utilizada de várias formas, sendo que enquanto no âmbito global e regional a referência a “transgêneros” seja mais comum, no Brasil a escolha política foi no sentido de utilizar a expressão “travestis e transexuais”. Em alguns momentos pode-‐se inserir a letra “I” na sigla, em referência a pessoas “intersex”, popularmente conhecidas como hermafroditas.
6 A transexualidade pode ser classificada como “disforia de gênero”, nos termos do manual mais recente da sociedade americana de psiquiatria, Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM V). Disponível em: http://www.dsm5.org/documents/gender%20dysphoria%20fact%20sheet.pdf
emergência de masculinidades produzidas por transhomens, as transmasculinidades, que vêm se constituindo como “novas" identidades sociais e políticas no contexto brasileiro, identidades essas que parecem se ancorar, por um lado, nas definições médicas e “psi” que as patologizam, e por outro, na luta pela despatologização de suas identidades de gênero (AVILA, 2014, P.37).
As classificações em torno da orientação sexual e da identidade de gênero têm produzido processos excludentes, como todo processo classificatório (BUTLER, 2003), alijando os sujeitos LGBT do exercício dos seus direitos fundamentais e tornando crescente uma demanda por reconhecimento. Para Richard Milskolci,
se nos anos 1970 “sair do armário” parecia necessário para combater a vergonha e construir o movimento homossexual, na década seguinte, afirmar a existência de uma identidade gay foi importante para a demanda por políticas estatais. A partir da década de 1990, no entanto, estas duas formas da política sexual do passado começaram a mostrar suas armadilhas. Sair do armário se revelou não uma escolha, antes um privilégio daqueles/as que têm condições materiais e simbólicas para isso. Também ficou perceptível que assumir uma identidade sexual socialmente rechaçada não traz apenas vantagens, muito menos para pessoas em contextos morais rígidos e violentos” (MISKOLCI, 2011, P.50).
A demanda pelo reconhecimento dos direitos LGBT tem sido, portanto, travada nas diversas esferas e cortes de justiça, marcada por um forte ativismo de indivíduos e organizações da sociedade civil. A Corte Europeia de Direitos Humanos, por exemplo, desde o final dos anos 1990 tem reconhecido progressivamente os direitos LGBT, inicialmente quanto ao direito ao trabalho, principalmente em casos contra o Reino Unido7. Em P.B. e J.S. v. Áustria (n.º 18984/02), a Corte interpretou o artigo 14 (proibição de discriminação) em combinação com o artigo 8 (direito a privacidade e vida familiar) da Convenção Europeia de Direitos Humanos para afirmar que o estado deve garantir os direitos sociais, independentemente da orientação sexual da pessoa segurada. Com os mesmos argumentos, a Corte também reconheceu direitos
7 Ver, por exemplo, Lustig-‐Prean e Beckett v. Reino Unido (n.º 31417/96 e 32377/96), Smith e Grady v. Reino Unido (n.º 33985/96 e 33986/96), Perkins e R. v. Reino Unido (n.º 43208/98 e 44875/98) e Beck, Copp e Bazeley v. Reino Unido (n.º 48535/99, 48536/99 e 48537/99).
sucessórios em razão de uniões homossexuais nos casos Karner v. Áustria (n.º 40016/98) e Kozak v. Polônia (n.º 13102/02). O gozo à liberdade de assembleia e associação foi reafirmado nos casos Bączkowskie Outros v. Polônia (n.º1543/06) Alekseyev v. Rússia8 (n.º 4916/07, 25924/08 e 14599/09).
A adoção dessas decisões tem resultado em mudanças relevantes na legislação doméstica dos países europeus bem como na normativa dos mecanismos de integração europeu. Apesar de manifestações do Parlamento Europeu, a partir de resoluções contra a discriminação baseada na orientação sexual datarem de 1984, sua influência para a mudança normativa na instituição é notada somente nos anos 1990. Em 1999, a União Europeia foi o primeiro mecanismo de integração a mencionar explicitamente o tema orientação sexual como uma das formas de discriminação a serem combatidas no contexto do tratado de reforma de suas instituições, o Tratado de Amsterdam. Posteriormente, em 2000, a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, ainda que instrumento jurídico não vinculante, explicita a proibição à discriminação por orientação sexual. De impositivo, a União Europeia também adotou em 2000 as Diretrizes orientadoras sobre tratamento igualitário no trabalho que proíbem discriminação direta ou indireta baseada na orientação sexual.
O Parlamento Europeu por mais de uma vez manifestou-‐se pela necessidade de países candidatos à associação passarem por um exame quanto à situação de direitos humanos de gays e lésbicas9, dentre eles Bulgária, Chipre, Estônia, Hungria, Lituânia e Romênia.
Atualmente pelo menos nove países europeus reconhecem as uniões homossexuais. Apesar dos avanços, a Corte Europeia de Direitos Humanos ainda tem
8 A Rússia, dentre outros países não-‐europeus, é parte na Convenção Europeia de Direitos Humanos. Para status das ratificações ver:
http://conventions.coe.int/Treaty/Commun/ListeTableauCourt.asp?MA=3&CM=16&CL=ENG
9 Ver, por exemplo, a Resolução B4-‐0824 e 0852/98 sobre direitos iguais para gays e lésbicas na Comunidade Europeia.
Disponível em:
http://www.europarl.europa.eu/omk/omnsapir.so/pv2?PRG=CALDOC&FILE=980917&LANGUE=EN&TPV =DEF&SDOCTA=10&TXTLST=7&Type_Doc=RESOL&POS=1
pendentes decisões sobre casos de países do leste europeu e Rússia10,11, que em 2013 adotou uma lei que criminaliza a promoção de “propaganda homossexual”, assim como casos que questionam a devolução de solicitantes de refúgio e asilo oriundos de países como Irã, Iraque, Líbia e Jamaica, países que penalizam a prática da homossexualidade.
No sistema interamericano de direitos humanos, a atenção para o tema foi inicialmente promovida a partir dos procedimentos de relatorias, uma vez que até então o tema era timidamente referido nos relatórios anuais da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sendo a primeira menção somente em 199912. É também em 1999 que o primeiro caso sobre direitos LGBT é admitido pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, sendo o caso de Marta Lucia Álvarez Giraldo contra a Colômbia, apresentado por ela juntamente com as organizações de direitos humanos CEJIL, o Grupo de Direito Internacional dos Direitos Humanos (International Human Rights Law Group) e a Comissão Internacional de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas (Gay and Lesbian Human Rights Commission). Marta Alvarez estava detida desde 1994 no Centro de Reclusão Dos quebradas "La Badea", em Pereira, Colômbia, e alegava violação dos seus direitos humanos diante da negação de visitas íntimas em razão de sua orientação sexual13. Lésbica, Marta Alvarez não podia receber visitas íntimas de sua companheira. O caso foi admitido pela Comissão Interamericana, mas não teve desdobramentos adicionais neste mecanismo, uma vez que teve desdobramentos favoráveis no âmbito doméstico14. Entretanto, o primeiro caso a
10 Ver, por exemplo, os casos ainda pendentes de julgamento M.C. e C.A. v. Romênia (n.º 12060/12), Aghdgomelashvili e Japaridze v. Geórgia (no. 7224/11) sobre maus tratos policiais contra ativistas LGBT , assim como Bayev v. Rússia (no. 67667/09), Kiselev v. Rússia (no. 44092/12) e Alekseyev v. Rússia (no. 56717/12) sobre a proibição de “propaganda homossexual”.
11 A Rússia, assim como outros países não europeus são membros do Conselho Europeu e parte da Convenção. Para o status de ratificações ver:
http://conventions.coe.int/Treaty/Commun/ListeTableauCourt.asp?MA=3&CM=16&CL=ENG
12 A menção é referente a detenções arbitrárias e castigos impostos a homossexuais no contexto do estado de emergência no Equador (Parágrafo 46 do Relatório Anual). Disponível em:
http://www.cidh.oas.org/annualrep/99span/capitulo4a.htm
13 Informe No. 71/99, Caso 11.656, Marta Lucía Álvarez Giraldo, Colombia, 4 de mayo de 1999. Disponível em: http://www.cidh.oas.org/annualrep/99span/Admisible/Colombia11656.htm.
14 Em 2003, a Corte Constitucional confirmou as decisões judiciais anteriores no sentido de permitir a visita íntima homossexual e solicitou a regulamentação de tais visitas para que quem deseje ter acesso o encontre.
chegar à Corte Interamericana de Direitos Humanos é recente, Karen Atala e Filhas contra o Chile. Karen Atala teve a guarda de suas duas filhas retirada em razão de sua orientação sexual. O caso foi apresentado em 2004 perante a Comissão e em 2012 obteve decisão da Corte15 que, baseada na jurisprudência europeia, reconheceu que o estado chileno incorreu em violações de direitos humanos e, por isso, tem o dever de reparar os danos causados.
A relatoria, criada no âmbito da Comissão Interamericana de Direitos Humanos a partir de forte demanda dos movimentos sociais, tem sido importante para visibilizar as violações bem como avanços nos países quanto aos direitos LGBT. Em 2011, a Comissão criou uma unidade específica sobre direitos LGBT, reforçando, assim, a atuação da relatoria no tema.
Na América Latina, somente em Belize, Guiana e Peru as relações do mesmo sexo não são consideradas legais16. Em 2008, a Assembleia Geral da OEA aprovou a primeira resolução sobre direitos humanos, orientação sexual e identidade de gênero, que foi seguida por resoluções no mesmo tema nos anos posteriores. Finalmente, em 2013, a OEA adotou a Convenção Interamericana contra toda forma de discriminação e intolerância17, que reconhece que a discriminação, em sua forma direta, indireta, múltipla ou agravada, pode ter base na orientação sexual e identidade ou expressão de gênero. Para entrada em vigor a Convenção requer pelo menos duas ratificações, mas após um ano de sua adoção ela conta apenas com assinaturas de seis países, dentre eles Argentina, Brasil, Equador, Haiti, Panamá e Uruguai, sem nenhuma ratificação.
Dados da ILGA referentes a 2014 apontam que 78 países criminalizam a homossexualidade (ITABORAHY; ZHU, 2014, P.9). Para 40% dos membros das Nações Unidas, ser homossexual é crime e, portanto, a homofobia – aversão, discriminação e
15 Corte IDH. Caso Atala Riffo y Niñas Vs. Chile. Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia del 24 de febrero de 2012. Serie C No. 239. Disponível em:
http://joomla.corteidh.or.cr:8080/joomla/es/jurisprudencia-‐oc-‐avanzado-‐en/38-‐jurisprudencia/1598-‐ corte-‐idh-‐caso-‐atala-‐riffo-‐y-‐ninas-‐vs-‐chile-‐fondo-‐reparaciones-‐y-‐costas-‐sentencia-‐del-‐24-‐de-‐febrero-‐de-‐ 2012-‐serie-‐c-‐no-‐239 16 Ver: http://ilga.org/. 17 Disponível em: http://dai-‐mre.serpro.gov.br/atos-‐internacionais/multilaterais/convencao-‐interamericana-‐contra-‐toda-‐ forma-‐de-‐discriminacao-‐e-‐intolerancia/
violência contra homossexuais – é “direta ou implicitamente patrocinada pela lei desfavorável do estado” (ITABORAHY; ZHU, 2013, P. 7).
Em dezembro de 2011, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a primeira resolução que menciona o termo “orientação sexual”, ao tratar de execuções extrajudiciais, sumárias e arbitrárias. O termo foi incluído após muitas resistências e com um placar final de 93 votos a favor da inclusão de tal menção, 55 votos contra e 27 abstenções. Na ocasião, a representante dos Estados Unidos, Estado que liderou a emenda que trazia o termo, destacou que naquela data, “as Nações Unidas enviara uma mensagem clara e sonora que a justiça e os direitos humanos se aplicam a todos os indivíduos independentemente da orientação sexual deles”. 18 Até que a Assembleia Geral adotasse um documento com explícita menção ao tema, um longo caminho foi percorrido. A seguir, descreveremos a trajetória da discussão sobre a violência baseada na orientação sexual e identidade de gênero e os direitos LGBT no sistema internacional de proteção dos direitos humanos.