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RETRATO DE UMA REALIDADE: O ENSINO E A PESQUISA DE DIREITOS HUMANOS NOS CURSOS DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS NO BRASIL

 

Desde  o  fim  da  Segunda  Guerra  Mundial,  o  movimento  de  “reconstrução  dos   direitos  humanos”  (Lafer,  1988),  responsável  por  expandir  os  horizontes  de  proteção   ao   âmbito   mundial,   tem   proporcionado   crescente   projeção   das   questões   normativas   na   agenda   internacional.   Se   naquela   época   a   percepção   das   Relações   Internacionais   sobre   o   tema   comungava   com   a   ideia   de   demonstração   da   importância   do   Direito   Internacional  na  sociedade  internacional  (Falk.  1968;  Henkin,  1989),  a  partir  de  1990,  o   tratamento   dado   ao   assunto   passa   a   integrar-­‐se   aos   fundamentos   da   área.   Atualmente,  a  temática  dos  direitos  humanos  está  intrinsecamente  ligada  às  noções  de   estabilidade   e   segurança   estatal,   havendo   se   tornado   parte   fundamental   da   política   internacional,   entre   outras   razões,   pela   capacidade   de   coordenação   com   outras   esferas   de   interesse,   como   comércio,   ambiente   e   ajuda   internacional   ao   desenvolvimento.   Ademais,   o   compromisso   com   os   direitos   humanos   passou   a   ser   crucial   para   manter   o   apoio   político   doméstico   e   a   legitimidade   doméstica   e   internacional   (Hillebrecht,   2009,   2014).   Hafner-­‐Burton   e   Ron   (2009,   p.   360-­‐361)   captam  o  sentido  deste  movimento  na  seguinte  passagem:  

 

Ao   longo   das   duas   últimas   décadas   o   idioma   dos   direitos   humanos   se   espalhou   como   fogo   entre   as   arenas   da   política   internacional,   transformando  a  forma  como  governos,  jornalistas,  e  acadêmicos  se  referem   às   relações   internacionais,   direito   internacional,   comércio,   assistência   ao   desenvolvimento,   mídia   e   justiça   pós-­‐conflitos.   Os   orçamentos   de   grupos   não-­‐governamentais  de  direitos  humanos  estão  crescendo  e  a  lista  de  cursos   de  treinamento  em  direitos  humanos  se  ampliou  ao  longo  dos  anos.  Países   ricos   cada   vez   mais   incluem   aparatos   de   direitos   humanos   dentro   de   suas   burocracias  de  política  exterior  e  as  agências  de  direitos  humanos  na  ONU  e   em   organismos   regionais   estão   sendo   reconfiguradas   e   fortalecidas.   A   marcha   e   a   amplitude   da   revolução   dos   direitos   são   notáveis.   (tradução   livre).  

 

O   impulso   transformador   sobre   os   direitos   humanos   na   década   de   1990   decorreu,   em   certa   medida,   das   proposituras,   por   parte   de   Organizações  

 

 

Internacionais,  de  diversos  Programas  Internacionais  de  Ação,  projetos  politicamente   mais  viáveis  após  o  fim  da  Guerra  Fria.  No  que  se  refere  especificamente  à  educação   em  direitos  humanos,  apesar  destes  direitos  encontrarem-­‐se  formalmente  declarados   desde  1948  pela  Declaração  Universal  dos  Direitos  do  Homem,  o  assunto  recebeu  um   enquadramento   institucional   apenas   após   a   Conferência   Mundial   sobre   Direitos   Humanos  de  1993,  onde  houve  uma  pressão  internacional  para  dar  efetividade  a  esses   direitos.   Como   resposta,   a   Assembleia   Geral   da   ONU   declarou   o   período   de   1995   a   2004   como   a   Década   Mundial   para   a   Educação   em   matéria   de   Direitos   Humanos,   estabelecendo  o  objetivo  de  “pleno  desenvolvimento  da  personalidade  humana  num   espírito  de  paz,  compreensão  mútua  e  respeito  pela  democracia  e  pelas  leis”.  Por  meio   da  Resolução  48/184  da  Assembleia  Geral  da  ONU,  consolidou-­‐se  a  ideia  de  que  este   ensino   precisaria   ser   introduzido   em   todos   os   níveis   da   educação   formal   (sistema   escolar  convencional)  e  adotado  na  educação  informal  (chamada  “educação  popular”),   sendo   valorizados   métodos   de   ensino   interativos,   participativos   e   culturalmente   relevantes”  (Claude,  2005).  

Esse  movimento  internacional  de  paulatina  incorporação  dos  direitos  humanos   na   agenda   internacional   coincide   com   um   momento   transformador   no   desenvolvimento  das  Relações  Internacionais  no  Brasil.  Superada  a  marca  da  história   diplomática   característica   dos   anos   1970   e   1980,   na   década   seguinte   a   área   já   se   encontrava  mais  consolidada  no  país,  o  que  se  depreende  pelo  número  de  cursos  de   graduação,   pela   sistematicidade   de   publicações   e   maior   organização   da   comunidade   acadêmico-­‐científica.   De   acordo   com   Lessa   (2005),   neste   momento,   a   academia   brasileira  dedicada  às  Relações  Internacionais  cresceu  quantitativa  e  qualitativamente   e   ganhou   novas   formas   institucionais,   levada   pela   necessidade   de   compreender   as   inflexões  da  política  internacional,  especialmente  pontuadas  pelo  fim  da  Guerra  Fria  e   pelo   advento   da   globalização.   Sob   o   ponto   de   vista   interno,   o   momento   político   de   redemocratização  do  país  reforçou  o  interesse  pelo  estudo  de  questões  correlatas  aos   direitos   humanos.   Monica   Herz   (2002),   em   uma   das   poucas   narrativas   acerca   da   evolução  do  campo  das  Relações  Internacionais  no  Brasil  que  faz  menção  aos  estudos  

 

 

em  direitos  humanos5,  pontua  a  existência  prévia  de  uma  ampla  bibliografia  sobre  os   direitos   humanos   no   país   (limitada   aos   círculos   das   ciências   sociais   e   do   direito)   em   razão  da  intensa  experiência  brasileira  de  desrespeito  aos  mesmos.  Entretanto,  um  dos   fatores   preponderantes   a   incentivar   o   interesse   das   Relações   Internacionais   pelo   assunto   foi   a   adesão   brasileira   aos   tratados   internacionais   de   proteção   aos   direitos   humanos,   a   partir   dos   anos   1990.   O   objetivo   desta   seção,   portanto,   consiste   em   demonstrar  como,  nos  últimos  vinte  e  cinco  anos,  a  temática  dos  direitos  humanos  se   inseriu  nos  cursos  de  Relações  Internacionais  do  país,  sob  as  perspectivas  do  ensino  e   da  pesquisa.  Com  respaldo  em  trabalhos  anteriores6,  pretendemos  verificar  o  status  da   temática  de  direitos  humanos  nos  estudos  de  Relações  Internacionais  no  país  a  partir   das   seguintes   variáveis:   inclusão   de   disciplinas   específicas   de   direitos   humanos   nos   cursos   de   graduação   em   Relações   Internacionais,   espaço   dedicado   aos   estudos   de   direitos  humanos  em  fóruns  acadêmicos  de  abrangência  nacional  e  publicação  sobre   direitos  humanos  em  periódicos  nacionais  reconhecidos.    

Impulsionados   seja   pelo   acúmulo   de   capital   intelectual   na   área   (Myamoto,   1999)   ou   por   oportunidades   de   mercado   (Herz,   2002),   os   cursos   de   Relações   Internacionais  no  Brasil  se  expandiram  consideravelmente  nos  anos  2000.  Atualmente,   registram-­‐se   119   cursos   de   graduação   em   Relações   Internacionais   no   Ministério   da   Educação,   dentre   os   quais   95   são   ofertados   por   instituições   de   ensino   privadas   e   o   restante   por   instituições   públicas,   sendo   19   por   universidades   federais   e   5   cursos   estaduais.  A  distribuição  regional  dos  cursos  no  país  ainda  é  bastante  assimétrica,  em   reflexo   ao   próprio   desenvolvimento   particular   de   cada   região.   O   acesso   às   grades   curriculares  de  102  cursos7  evidencia  que  o  ensino  em  matéria  dos  direitos  humanos   encontra-­‐se   presente   em,   aproximadamente,   44%   das   graduações   em   Relações  

5  Não  verificamos  em  sínteses  anteriores  sobre  o  desenvolvimento  das  Relações  Internacionais  no  país   um  retrato  claro  sobre  o  significado,  a  relevância  e  o  desenvolvimento  do  tema  dos  direitos  humanos  no   campo.  Esforço  precedente  na  área  do  Direito  (Piovesan,  2002)  ensejou  a  reflexão  sobre  o  assunto  nas   Relações  Internacionais.    

6  Faria  (2012),  Piovesan  (2002).    

7  O  mapeamento  dos  cursos  de  graduação  em  Relações  Internacionais  foi  realizado  a  partir  do  portal   eletrônico  e-­‐MEC  (disponível  em:<  http://emec.mec.gov.br/>.  Último  acesso  em:  21.5.2014)  e  o  acesso   às  grades  curriculares  deu-­‐se  por  meio  de  consulta  ao  site  oficial  de  cada  Instituição  de  Ensino  Superior.   Nos  casos  onde  não  se  obteve  sucesso  na  obtenção  das  grades  curriculares  por  estes  meios,  solicitamos,   por  email  e  por  telefone  os  dados.  Ainda  assim,  em  poucos  casos  não  obtivemos  êxito.    

 

 

Internacionais.  Embora  a  concentração  de  cursos  de  Relações  Internacionais  se  dê  nas   regiões  sul  e  sudeste  do  país,  o  ensino  em  matéria  de  direitos  humanos  encontra-­‐se,   proporcionalmente   mais   concentrado   no   nordeste   e   centro-­‐oeste.   Quanto   às   instituições   de   ensino,   as   disciplinas   de   direitos   humanos   são   ofertadas   em   80%   das   instituições  estaduais,  em  42%  das  federais  e  apenas  em  34%  das  privadas.  Uma  das   possíveis   explicações   para   essa   diferença   porcentual   entre   as   instituições   de   ensino   públicas   e   privadas   é   que,   nestas   últimas,   salvo   algumas   exceções,   o   enfoque   dos   cursos   acaba   privilegiando   uma   formação   voltada   para   o   mercado   de   trabalho   na   iniciativa   privada.   Todavia,   argumentamos   que   essa   justificativa   para   a   escolha   do   perfil  do  curso  em  detrimento  de  noções  de  direitos  humanos,  por  parte  de  algumas   das   instituições   de   ensino   privadas,   pode   desconsiderar   uma   das   temáticas   mais   inovadoras  e  questionadoras  para  as  Relações  Internacionais,  que  consiste  em  explorar   as   nuances   do   relacionamento   entre   empresas   ou   corporações   multinacionais   e   o   cumprimento   de   padrões   internacionais   de   direitos   humanos   (Risse,   Ropp   e   Sikkink,   2013).   De   outro   lado,   a   existência   de   um   grande   número   de   disciplinas   em   direitos   humanos   ofertadas   pelas   instituições   públicas   pode   ser   um   demonstrativo   de   que,   após  a  democratização  no  Brasil,  o  Estado  passa  a  ser  visto,  no  espectro  dos  direitos   humanos,  não  mais  como  um  inimigo,  mas  como  um  interlocutor  com  o  qual  se  pode   dialogar   e   colaborar   e,   em   algumas   vezes,   como   um   parceiro   e   aliado   nas   transformações  da  sociedade  (Tosi,  s.d).    

As   disciplinas   de   direitos   humanos   oferecidas   nos   cursos   de   Relações   Internacionais   no   país   totalizam   52,   havendo   variações   quanto   às   denominações   dadas,  sendo  as  mais  comuns:  Direitos  Humanos  (11  ocorrências),  Direitos  Humanos  e   [cidadania,   cosmopolitismo,   ética,   meio   ambiente   etc.]   (11   ocorrências),   Proteção   Internacional   dos   Direitos   Humanos   (09   ocorrências)   e   Proteção   Internacional   da   Pessoa  Humana  (04  ocorrências).  No  que  se  refere  à  natureza  da  disciplina,  na  maioria   dos   cursos   (em   38   casos)   as   disciplinas   de   direitos   humanos   possuem   caráter   obrigatório,   sendo   que,   nos   demais,   se   distribuem   equitativamente   entre   optativas,   complementares  e  apenas  uma  profissionalizante  (no  caso,  na  Universidade  Federal  de   Goiás).   O   acesso   aos   programas   de   ensino   (nos   quais   foram   analisados   os   tópicos,  

 

 

metodologias   de   ensino,   sistema   de   avaliação   e   bibliografia)   de   algumas   destas   disciplinas  ofertadas  nos  cursos  de  Relações  Internacionais  revela  que,  em  sua  maioria,   são  priorizados  enfoques  históricos  e  legalistas,  empregadas  metodologias  e  sistemas   de   avaliação   convencionais   e   utilizado   um   conjunto   de   leituras   em   comum,   pouco   correlatas  às  Relações  Internacionais.  O  gráfico  abaixo  ilustra  alguns  destes  dados.  

 

GRÁFICO   1.   ENSINO   EM   MATÉRIA   DE   DIREITOS   HUMANOS   NAS   RELAÇÕES  

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