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O reconhecimento dos problemas e potencialidades da cultura no Brasil

Nesse ponto utilizamos trechos dos textos que caracterizam as avaliações e diagnósticos do governo sobre a situação e o potencial da cultura como área de atuação do governo, seguindo em princípio a lógica de construção dos textos analisados.

Nas páginas iniciais do Documento 1 e ao longo do texto, constata-se uma das justificativas da preocupação do governo com a cultura brasileira, uma das principais é a diversidade.

Num país com a extraordinária diversidade cultural do Brasil, as forças políticas comprometidas com a Coligação Lula Presidente não se permitem elaborar um Programa de Políticas Públicas de Cultura sem auscultar de perto as diferentes expressões culturais de cada região do país. Por isso, fomos a todas elas para estabelecer o debate necessário sobre essa questão crucial e estratégica para a formulação de um novo Projeto Nacional para o Brasil. (D1, p. 3)

As expressões grifadas (acima) marcam uma pressuposição de que cultura brasileira, não poderia ser abordada de outra forma na formulação de uma política, conferindo um sentido de verdade ou de obrigação (modalidade) a maneira de colher informações para mostrar sintonia com as demandas da sociedade para essa área.

No trecho abaixo, o diagnóstico é que a sociedade é controlada por monopólios da indústria cultural e define-se democrático como inclusão social (significação), também se usa um excesso de palavras da mesma área de significado, confundindo o que se pretende definir na prática como um país democrático e estabelece-se uma relação direta entre o caminho para democracia e as políticas de inclusão cultural.

[...] Os setores populares se encontram, hoje, entregues ao mercado das grandes cadeias de entretenimento com os níveis de degradação que todos conhecemos. A construção de um Brasil democrático, que aponte para a inclusão social, para o resgate dos valores da integridade e da solidariedade - tão caros ao nosso povo -, e para a abolição da desconfiança e do medo como motores das relações sociais é inseparável do necessário investimento em Políticas Públicas de Cultura que garantam a inclusão cultural. Em suma, o combate efetivo à exclusão social no Brasil passa inevitavelmente pela

abertura democrática dos espaços públicos aos nossos criadores populares e pela inclusão da Cultura na cesta básica dos brasileiros. (D1, p. 10)

Depois de construir a idéia de inclusão social pela cultura, nesse trecho (anterior) reforça-se a idéia, usando a palavra combate (luta), de que a exclusão é um inimigo dessa gestão e não uma situação (significação). Para reafirmar que tem a solução para o inimigo da exclusão, usa-se um tom imperativo (“inevitavelmente”), pressupondo que o espaço público, não é democrático e não existe cultura na vida dos brasileiros, significando-a como os outros itens da cesta básica.

É recorrente a estratégia discursiva da pressuposição dos problemas da sociedade, sem indicar diretamente um culpado (voz passiva), mas indica que a solução está nesse governo, como se ilustrou no trecho abaixo.

A sociedade brasileira é, hoje, uma sociedade dilacerada pela brutal concentração de renda, pela exclusão social e por uma cultura da violência que vai se generalizando como método de resolução das gravíssimas contradições a que foi conduzida. A concentração de renda e a exclusão social exprimem-se numa intolerável exclusão cultural [...] (D1, p. 9)

Além, da pressuposição no trecho seguinte identificou-se o uso da metáfora do muro para reforçar a idéia de separação, como diagnóstico, e em seguida indicou-se a solução dos problemas estabelecendo a idéia de cultura como direito social básico. Usa-se antítese para reforçar a idéia de que o governo preocupa-se com cultura e não a entrega ao mercado, sutilmente faz referência à gestão anterior e sua despreocupação com a área.

É necessário e urgente pôr abaixo os muros do apartheid social e cultural que fraturam a sociedade brasileira; reconhecer a cultura como um direito social básico, condição para o pleno exercício republicano e democrático; conjugar as políticas públicas de cultura em todas as suas linguagens, música, literatura, dança, artes visuais, arquitetura, teatro e cinema, com a ação quotidiana da rede escolar; afirmar as identidades étnico-culturais regionais como condição definidora da nossa identidade nacional; trabalhar políticas culturais de longo prazo, pois uma nação que se preza não entrega ao mercado a formação de sua juventude e a transmissão dos seus valores éticos ensinados e aprendidos ao longo da história. (D1, p. 8)

Mais uma vez, no texto abaixo se identifica o problema, mas não se aponta diretamente os responsáveis (voz passiva). Sutilmente faz-se uma significação do espaço público tanto como local de decisão sobre recursos, como sendo o Estado.

[...] com recursos públicos, financiou-se uma ação regional e setorialmente concentradora de renda. Operou-se uma transferência de responsabilidade do espaço público para diretorias de comunicação e marketing das empresas, para que ditassem aquilo que a população brasileira poderia ver nas casas de espetáculos dos centros urbanos. (D1, p. 16)

Abaixo, a significação de Estado como esfera pública se repete, mas acrescentando as funções dessa esfera qualificando-a como indutora e reguladora da cultura.

[...] que propomos aqui é a recuperação do papel da esfera pública de suas tarefas indutoras e reguladoras da produção e difusão cultural, a formação do gosto e a qualificação dos nossos artistas em todas as linguagens. (D1, p. 3) Já no trecho abaixo, critica-se que a relação do Estado com a produção cultural é mediada pelo projeto70 como um canal de comunicação e relação entre a produção cultural e o Estado. Pressupõe-se que o projeto é um filtro e, num tom/modo imperativo, que impossibilita a realização da democracia.

Institui-se como via unilateral de relação com o Estado a figura do projeto, “peça intelectual”, capaz de ser desenvolvida por poucos em um país semi- alfabetizado. Na planilha proposta, o MinC defende com clareza a quem pretende beneficiar com sua política: aqueles capazes de realizarem estratégias de comunicação competentes para atraírem a atenção das empresas e garantirem o retorno de marketing esperado. Nada parecido com o que se espera de uma política voltada para o fortalecimento do Estado democrático de direito. O projeto é um instrumento autoritário e reducionista, impensável como único mecanismo institucional de diálogo do poder público com sua população, na medida em que restringe o acesso dos mais pobres e fragilizados à esfera pública e que não realiza o movimento adequado à ação pública, que é mapear, diagnosticar e incentivar, ampliando com isso o campo das oportunidades aos tradicionalmente excluídos. (D1, p. 17)

Essa crítica ao projeto está conectada, a idéia construída no trecho abaixo, em que identificou-se, por pressuposição, que o desenvolvimento econômico, compreende a dimensão quantitativa (colocação e significação) e o cultural a dimensão qualitativa do desenvolvimento, ou seja, construindo uma relação de complementaridade entre os tipos de desenvolvimento. Essa pressuposição tem origem na ordem de discurso sobre desenvolvimento, que questiona o entendimento do desenvolvimento apenas pela vertente econômica e quantitativa, em detrimento das dimensões sociais e ambientais que qualificam o desenvolvimento isoladamente. A estratégia de usar a cultura como adjetivo de desenvolvimento (colocação e significação) posiciona a cultura no centro do debate de uma das grandes questões para os países emergentes e parece questionar a lógica utilitarista do desenvolvimento, apenas econômico, quando na realidade usar a cultura como adjetivo a posiciona como subordinada ao desenvolvimento econômico.

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Na prática essa realidade não mudou muito, pois até no Programa Cultura Viva, que propõe uma abordagem diferente de trabalhar a cultura popular e que não tem acesso a esses meios institucionais de financiamento, o projeto, a prestação de contas e outros tramites são requisitados.

É possível dizer que se o desenvolvimento econômico expressa o bem-estar material de uma nação, é o desenvolvimento cultural que define a sua qualidade. (D1, p. 3)

A possibilidade de desenvolvimento econômico pela cultura está em outro texto (abaixo) do Ministro para a Conferência Nacional que faz uma pressuposição de que temos na mestiçagem, uma singularidade cultural. Assim, propõe que esta singularidade é um diferencial com um ethos/estilo bastante persuasivo, pois considera que a nossa cultura está alheia e intocada pelo mundo globalizado, que é abordado com distanciamento (Metadiscurso) para dar uma força externa à argumentação.

Esta mestiçagem gerou aqui uma cultura tão intensa quanto diversa. E fez das múltipas expressões culturais do nosso povo, e do papel central da cultura em nosso modo de ser, o principal fator de diferenciação e valorização do país neste mundo globalizado. (D2, p. 5)

Contudo, no trecho abaixo, constrói-se a idéia da cultura brasileira tem um diferencial (significação), no sentido econômico e subordinada a lógica do desenvolvimento econômico, que é evidenciada, quando se usa a palavra “tesouro”. Ao mesmo tempo, essa intenção é atenuada quando se faz a pressuposição, reforçada pela pretensão de verdade (modalidade) de que a cultura dá qualidade às relações sociais e que é a salvação do corpo e coloca-a em igualdade com a alma (metáfora e significação). Com isso, formula-se a idéia de que trabalhar a cultura pode trazer a solução dos problemas sociais e consequentemente econômicos. Contudo, não se explica como, deixando o enunciado nesse sentido vago, dando maior liberdade de execução do governo, ao não explicitar claramente as propostas, favorecendo os atores que dominam o campo a conduzir as soluções.

Nossa cultura é na verdade um tesouro, um ativo social e econômico em permanente estado de transformação. Neste mundo marcado por injustiça e desigualdades, está provado também que a cultura qualifica as relações sociais e reduz os focos de tensão e violência, elevando a auto-estima e sentido de pertencimento.

O Brasil precisa compreender a grandeza que possui; juntar sua grandeza cultural com a de todos os outros povos do mundo. É nesta força profunda da nossa cultura que está a salvação. É no espírito que o corpo se salva. (D2, p. 6)

De forma geral percebeu-se que o governo trabalha com um conceito amplo de cultura e que o adota de forma contraditória. Isso indica também uma mudança sutil de visão do Partido, de antes e depois de tornar-se governo. O entendimento da diversidade cultural como ativo que poderia se valorizar externamente permeou os documentos, não só um como elemento a ser respeitado nas políticas, mas como primeiro passo para efetivar a inclusão social pela cultura.

No documento do segundo mandato, o Ministro Gilberto Gil apresentou a cultura como solução para os problemas do desenvolvimento em sintonia com o contexto global, ao invés de apontar a situação nacional de exclusão como nos documento anteriores. Apresentou- se essa outra proposta, sem ter resolvido os problemas e contradições internas assinaladas no primeiro programa. Apesar de ter dado apenas os passos iniciais para resolver os problemas internos, o texto (abaixo) parte da pressuposição, de que a situação está resolvida.

O contexto contemporâneo e mundial é de uma economia mais complexa, pressionada pela alta tecnologia, pelo deslocamento da noção de valor, pela necessidade de uma população mais capacitada e com maior acesso ao conhecimento. Este é o ponto crítico que condiciona a necessidade de gerar oportunidades de ocupação para todos. A cultura desafia o desenvolvimento a encarar a sua gente como força viva e patrimônio, como ponto de partida e de chegada do crescimento e da distribuição de riqueza, como sujeitos de acesso.

A cultura também desafia o desenvolvimento a realizar-se a partir da própria cultura, como fator essencial à preparação da sociedade e dos brasileiros, individualmente, para enfrentar os desafios do século XXI. Nosso desenvolvimento é pela cultura — reservatório de capacidades, ofícios e saberes — e não apesar dela e das populações que lhe emprestam o corpo. É ela a potência que, num curto prazo, irá influenciar na qualidade de nosso sistema de inovação e de produtividade. Que vai assegurar a qualidade de vida necessária para que os brasileiros realizem sua plena consciência de estar no mundo. Que vai qualificar as relações sociais e garantir uma vida mais abrangente do que as comunidades que nos compõem, possibilitando um sentimento verdadeiro de Nação.(D4, p. 6)

Neste trecho, a cultura não existe para resolver os problemas internos, mas para conectar o projeto nacional com o cenário internacional. A preocupação é apresentar um projeto para o Brasil e uma das respostas é, por pressuposição, a cultura atrelada indiretamente a idéia de conhecimento.

No trecho abaixo, reforça-se a preocupação com o contexto econômico externo e de que o modelo do crescimento econômico esgotou-se (pressuposição). O texto apresenta os processos criativos como ‘novo’ foco de disputas e reforça essa idéia com intertextualidade

manifesta e Metadiscurso de que a inclusão da cultura como fator de desenvolvimento está

nas novidades teóricas da área.

Hoje, em todo o mundo, a própria noção de crescimento econômico está em crise. Nesta fase da economia mundial, os processos criativos e bens simbólicos tornam-se o centro da disputa por hegemonia. As novas teorias do desenvolvimento, com a perspectiva de sustentabilidade, incorporam a cultura como aspecto decisivo do desenvolvimento. (D4, p. 8)

No texto da Conferência (a seguir) identificou-se a ampliação das políticas culturais no contexto de referência, reforçada em diversas ações do governo no exterior71 e no tratamento à cultura como um “capital simbólico”, configurando uma intertextualidade constitutiva com Bourdieu e manifesta com o texto da UNESCO.

O atual contexto histórico e marcado pelas novas tecnologias de informação e comunicação, e nele a cultura é “capital simbólico” cada vez mais decisivo na diplomacia, na economia e na política contemporâneas. Esse “capital” poderá ou não contribuir decisivamente para o desenvolvimento e o diálogo entre os povos, o combate à pobreza, à intolerância, à guerra, ao totalitarismo e à opressão, como ainda se vê nos dias de hoje.

É diante desse impasse e buscando novos caminhos que a UNESCO aprovou em 2005 uma Convenção Internacional sobre a Proteção e a Promoção da

Diversidade das Expressões Culturais. Essa Convenção encaminha garantis

aos Estados Nacionais para o estabelecimento de políticas que sustentem a continuidade de suas dinâmicas culturais, entretanto, salvaguardando-se de quaisquer ranços de xenofobia, agressão aos diretos humanos ou dirigismo cultural. (D3, p. 12)

Essa noção e valorização da dimensão simbólica da cultura como um capital do país e recurso imaterial, está permeando todo o documento do último programa de governo, desde o texto de abertura (abaixo), assinado pelo presidente da república.

É outra – e é nova – a visão que o Estado brasileiro tem, hoje, da cultura. Para nós, a cultura está investida de um papel estratégico, no sentido da construção de um país socialmente mais justo e de nossa afirmação soberana no mundo. Porque não a vemos como algo meramente decorativo, ornamental. Mas como base da construção e da preservação de nossa identidade, como espaço para a conquista plena da cidadania, e como instrumento para a superação da exclusão social – tanto pelo fortalecimento da auto-estima de nosso povo, quanto pela sua capacidade de gerar empregos e de atrair divisas para o país. Ou seja, encaramos a cultura em todas as suas dimensões, da simbólica à econômica. (D4, p. 5).

A visão de cultura que prioriza a diversidade foi na década de 90 uma reivindicação dos movimentos culturais que faziam oposição aos regimes ditatoriais e aos mecanismos massificadores da indústria cultural. No entanto, hoje essa proposta está permeando cada vez mais os discursos dos agentes hegemônicos e está tomando outro significado. Um dos que apontamos e que está mais presente no último programa de governo é o da exploração dessa diversidade como um produto exótico e genuíno e por isso valorizado para exportação.

No trecho seguinte (um texto do Ministro), evidencia-se como é possível trabalhar a diversidade como produto, pois é evidente a conexão de desenvolvimento e cultura como resposta aos limites do desenvolvimento estritamente econômico. Essa idéia está baseada na

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Pode-se citar o ano do Brasil na França como uma experiência marcante, mas também ações de exportação de produtos culturais como APEX em convênio com outros ministérios.

intertextualidade com discurso do Desenvolvimento Sustentável e é, de alguma forma, uma

resposta as cobranças da sociedade por um projeto nacional, principalmente depois da crise desse governo em 2005.

O efetivo ingresso do Brasil em um ciclo de desenvolvimento sustentável e duradouro deve ser moldado a partir da diversidade cultural e das aspirações mais legítimas do povo brasileiro em seu direito à cultura. Ao dar vida nova ao Ministério da Cultura, o governo Lula recupera a necessária grandeza da ação do Estado nesta área, horizonte fundamental para estruturar um projeto de país.

A formulação de uma política nacional de cultura como pilar estratégico do Estado faz vir à tona a diversidade que é patrimônio da sociedade brasileira. Este patrimônio — fruto da nossa formação histórica, da elaboração simbólica dos brasileiros e do esforço cotidiano de buscar a realização humana, a justiça social e a plena cidadania — tem ganhado condições melhores de existência, para além da sobrevivência, gerando a afirmação social de agentes que possibilitam uma melhor qualidade de vida. (D4, p. 6). Neste trecho a cultura recebe o significado (significação) de um elemento nacional que pode ser vendido em outros países e com isso promover melhores condições de existência e qualidade de vida (pressuposição). Esse argumento está conectado a idéia de que a cultura é uma vantagem comparativa do Brasil em relação aos outros países e pode ser explorada como um produto de exportação e ainda qualificar o desenvolvimento do país.

A mudança no discurso do Governo observada na análise dos textos do primeiro programa de governo em relação ao segundo, indica que no primeiro governo havia uma ênfase do discurso em usar a cultura para resolver os problemas internos (exclusão, desigualdade, etc). No segundo programa há uma pressuposição de que os problemas internos estão resolvidos e as potencialidades culturais do país podem ser pensadas como um produto de exportação, que permitirá ao país chegar galgar uma posição privilegiada no cenário internacional, e por conseqüência as questões internas (sociais e econômicas) serão resolvidas pela cultura. A ênfase na cultura como meio solução das questões internas é ampliada para o contexto internacional, inserindo-a como uma alternativa econômica viável para desenvolver o Brasil. Pode-se inferir que essa mudança de ênfase no discurso, mesmo sem ter superado os problemas do contexto interno, e avanço na elaboração de estratégias de desenvolvimento com um olhar para fora indicam uma perda de sintonia do governo com as demandas sociais internas.

7.2 A construção de uma nova Política Pública, um outro