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CAPÍTULO IV – RELAÇOES ENTRE O PORTUGUÊS E AS LÍNGUAS LOCAIS DE

4.3 Eventos interactivos que marcam as relações entre o português e as línguas locais de

4.3.2 O recreio nas escolas de Zôngolo, Fortaleza e Chiela

Segundo o horário escolar, o intervalo ocorre das 10 horas e meia e termina às 10h55min. Durante este tempo, os alunos, para as suas brincadeiras, formam grupos entre si. As meninas, juntas, saltam à corda, ou, em volta de uma roda imaginária, saltitam batendo palmas ritmicamente, em combinação com os pés. Enquanto a menina colocada no meio do círculo vai jogando com os pés e batendo ritmicamente as palmas das mãos, as outras esperam que cada uma chegue a sua vez para competir com o grupo. Segundo o jogo, a menina que conseguir jogar, combinando o ritmo dos seus pés com o dos pés das outras, ganha o jogo, mas, se jogar sem ritmo, perde o jogo e se coloca no círculo para conquistar novamente a oportunidade de estar no meio do círculo como personagem principal do jogo.

Nas três escolas, algumas meninas jogam às pedrinhas, colocando-as nas palmas das mãos, lançam-nas levemente ao ar, a uma altura de pelo menos 3 centímetros e as agarram

com os dorsos das mãos. As que caem no chão são levantadas uma por uma, numa grande rapidez. Para isto, a menina, com a sua mão habitual de trabalho, independentemente de se é destra ou canhota, lança ao ar uma das pedrinhas e, antes que caia, deve levantar uma das pedrinhas e, com a mesma mão, agarrar a que foi lançada ao ar. Neste exercício, a menina não pode tocar em nenhuma outra pedrinha que não conseguir levantar, sob pena de perder o jogo. Se isso acontecer, outra menina toma conta do turno do jogo.

As meninas e os meninos menos crescidos vão correndo, um atrás do outro. Os rapazes mais crescidos fazem o jogo de futebol. Na escola de Zôngolo, a interacção durante esses jogos ocorre em português. As meninas e os meninos que têm dificuldades de se exprimirem em português se isolam dos demais colegas porque o contexto da comunicação torna-se difícil com o uso de códigos diferentes. Esses alunos evitam falar o fiote/ibinda com medo de serem desprezados pelos colegas, falantes do português, como disse o diretor da escola:

...apenas as crianças que chegam da República Democrática do Congo falam os dialetos. Muitas vezes, os colegas riem-se delas... (Diretor da escola de Zôngolo, 08 de Jan. de 2013).

Confirmámos isso com o caso de dois irmãos gémeos, que tinham muitas dificuldades de conversar em português. Durante os intervalos – enquanto durou a permanência dos dois na escola, que foi apenas de três meses – os dois irmãos brincavam apenas entre si, fora do convívio dos colegas. Eram filhos de imigrantes, que, em casa, falavam apenas a variante kiyombe, da língua Fiote/ibinda. Para eles, o português foi uma língua de aprendizagem escolar e tinham o Fiote/ibinda como a língua primeira e materna. Durante o intervalo, preferiam estar no canto da escola, conversando entre os dois.

A língua é um factor de integração ou de segregação social, por isso uma criança se integra com facilidade no grupo dos amigos ou colegas, quando a comunicação grupal se dá na mesma língua; caso contrário, pode surgir a autoexclusão ou a repulsa por parte do grupo. Dois factores, a nosso ver, dificultaram a integração dos dois gêmeos: a idade e a falta de domínio da língua. Quanto à idade, os dois eram os menos crescidos da turma, fato este que foi evocado pela professora para justificar a desistência das duas crianças:

são crianças demais, ainda não têm idade para frequentar a escola, por isso nunca mais vieram. Até porque não estavam matriculados, vinham porque gostavam de vir à escola. (Professora Rosa, Abr. de 2013)

Os dois irmãos não eram as únicas crianças falantes de Fiote/ibinda. Mesmo aquelas que, dentro da sala de aula ou no recinto escolar não falavam essa língua, muitas delas, têm o fiote/ibinda como uma das línguas falada em casa, com os pais.

4.3.2.1 Evento não escolar: Interacção entre uma mãe e o seu filho

Este evento apresenta uma interacção que decorre em fiote/ibinda entre uma mãe e o seu filho dentro do recinto escolar. Considerámo-lo importante porque a criança envolvida na cena é aluno da professora Rosa.

Num dos momentos de intervalo, uma senhora estava vendendo pipocas, dentro do recinto escolar. O filho, aluno da escola de Zôngolo, queria que a mãe lhe desse dinheiro. Como a senhora já não aguentava mais a insistência do filho, repreendeu-o em língua fiote/ibinda:

Mo so u’bulu.26

(Mãe de um aluno, Abr. de 2013).

Diante desta advertência em fiote/ibinda, perguntámos à mãe se a criança havia compreendido o que ela falara, por tê-lo feito em fiote/ibinda; ao que nos respondeu:

Eu sou a mãe dele. Ele deve ouvir o que falo.

A resposta inicial da mãe não fazia referência à questão linguística. O verbo ouvir, naquele contexto de advertência, não se referia à captação de estímulos sonoros ou à sua compreensão, mas ao ato de acatar o conselho. A senhora fez saber que não se tratava de qualquer relação entre ela e o menino, mas uma relação de mãe e filho, onde este tem o dever de reverenciar a mãe. Insistimos na questão linguística e perguntámos se o menino falava a língua fiote/ibinda. À nossa questão, respondeu:

ibinda é a nossa língua / se eu como mãe falo/ os meus filhos também devem falar / ele fala tanto o português como o ibinda// (Dona Albertina, Fev. de 2013).

A resposta da mãe nos esclarece as instâncias do uso das duas línguas, o português e o fiote/ibinda. O bilinguismo é evidente na criança que faz uma eleição,

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dependendo das circunstâncias, da língua que deve ser usada no seu devido momento. No convívio com os colegas da escola, o uso do português é exclusivo porque este é a língua exigida pela escola, que tem como objectivo tornar as crianças falantes do português, com o desenvolvimento e o aperfeiçoamento do domínio da comunicação e da expressão, tal como postula o Artigo 18º da Lei de Bases do Sistema de Educação Angolana, de 2001.

4.4 Domínios de uso do português e do fiote/ibinda nas três aldeias

Na três aldeias, o português e o fiote/ibinda convivem nos espaços públicos e em determinados lares. Em algumas famílias, os pais falam o português com os seus filhos, visto que as gerações mais novas preferem o português em relação ao fiote/ibinda. Os três encarregados, de diferentes aldeias, afirmaram que o português convive com eles, apesar das diferenças em intensidade de presença do português.

que língua vocês falam em casa? (Pesquisador)

Falamos kiyombe e bocadinho de português /.../ (Sr. João, Zôngolo, Jan. de 2014).

O meu marido fala umbundu / eu falo Iwoyo e todos os meus filhos falam português / porque é a língua que mais falamos em casa / mas entendem muito bem o Iwoyo e falam um pouco /.../ (Sra. Madalena, Fortaleza, Jan. de 2014).

Que outra língua é que podemos falar? / na minha casa falamos a língua da terra / o kilingi / há momentos que falamos português / mas não frequentemente. (Sr. Victor, Chiela, Jan. de 2014).

O três entrevistados reconhecem a presença do português nas suas casas. No primeiro caso, o do Sr. João, há predominância do fiote, variante kiyombe. Na casa da Dona Madalena, na aldeia de Zôngolo, o português predomina, mas, pelas diferenças de origem dos cônjuges, três línguas convivem no mesmo lar: fiote (iwoyo), umbundu e português.

Em contextos familiares plurilíngues, em que os cônjuges têm línguas diferentes, são feitas escolhas de práticas familiares, optando por uma das línguas faladas pelos cônjuges, que seja do uso maioritário no contexto social, ou aceita pelo meio de acolhimento. Algumas famílias preferem adoptar práticas bilíngues, fazendo que os filhos aprendam as línguas dos seus progenitores, (MOORE, 2006). A família da dona Madalena preferiu optar pelo