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Capítulo II. A composição da tropa paga no Grão-Pará

1. O recrutamento: uma ação sistematizada de mobilização de pessoas

Defender a região do Grão-Pará colonial também significava para a Coroa resolver a questão do provimento de homens nas tropas pagas. Como vimos no 1º capítulo essa foi uma questão que, ao longo de toda a primeira metade do século XVIII, rendeu um considerável número de documentos que em grande medida manifestavam queixas das autoridades coloniais acerca da falta de soldados para defesa. Esse era um problema que seria observado ainda na segunda metade desse século, como podemos verificar nas palavras do governador Francisco Xavier de Mendonça Furtado, que descrevia ter encontrado as “tropas do Grão-Pará em estado lamentável”, pois em sua opinião eram compostas de “pouca gente”, “sem disciplina”, sendo que “os oficiais eram tão ignorantes na arte militar quanto os soldados”.1 Todavia, se considerarmos o processo

de enganjamento de homens nas tropas pagas, podemos verificar uma ação sistematizada por parte da coroa de Portugal em função de uma possível solução para o problema de operacionalização da defesa no Grão-Pará. Estamos nos referindo às ações de recrutamento e a todas as suas implicações internas e externas.

Ao discutir a questão de defesa e principalmente o recrutamento nas conquistas, a historiografia privilegiou notadamente o recrutamento interno vinculado a momentos de grande tensão externa como definidores de mobilização de homens que se destacavam as fronteiras. São exemplos dessa perspectiva a obra de Enrique Peregalli, intitulada

Recrutamento militar no Brasil colonial, na qual se refere à formação de tropas em São Paulo por meio de um recrutamento compulsório e violento para serem enviadas para Tibaji, Iguatemi (Paraná) e Rio Grande, que formavam a fronteira sul com as colônias da Espanha. O motivo das disputas entre as coroas ibéricas era o domínio da região do Prata e de Potosi.2 Não há dúvidas que as disputas territoriais e, sobretudo, as ameaças estrangeiras às possessões portuguesas implicaram no acirramento do recrutamento na

1 NOGUEIRA, Shirley. Razões para desertar: institucionalização do exército no Estado do Grão-Pará

no último quartel do século XVIII. Tese de mestrado, NAEA, 2000, p. 51.

2 PEREGALI, Enrique. Recrutamento militar no Brasil Colonial. Campinas: Editora da UNICAMP, 1986.

colônia e na vida dos soldados, é o que podemos observar das reflexões de Paulo Possamai sobre o envio de tropas para a defesa da colônia do Sacramento pela ocasião do cerco dos espanhóis em 1735.3

Essa perspectiva é evidente também em documentos produzidos pelos governadores no Grão-Pará. A indefinição de fronteiras no Cabo do Norte mobilizou em grande medida tropas de guarda costa para vigiar os limites entre as possessões de Portugal e França. Uma dessas diligências ocorreu em 1728, quando por ordem do governador João da Maia da Gama, saía dos portos do Pará uma tropa armada em guerra com destino às terras do Cabo do Norte. Essa diligência foi organizada excepcionalmente para se observar os marcos do rio de Vicente Pinzón. O responsável por essa importante missão foi o comandante Diogo Pinto da Gaia, que em regimento de 22 de março do mesmo ano, recebeu as instruções necessárias assim como canoas, índios, soldados, armamentos e outros apetrechos necessários à tropa.4

É evidente, portanto que a questão de fronteira foi um elemento fundamental para a estruturação de tropas militares na colônia. O problema é que muitos trabalhos que tratam da defesa têm se dedicado a perceber como esses momentos de tensão ou ainda as guerras com os grupos indigenas, implicaram no recrutamento interno. O que queremos chamar atenção é que a tropa paga não se compõe apenas de soldados feitos internamente. Ora, se a própria configuração do corpo de defesa profissional da Coroa é diversa e não se compõe apenas de homens recrutados internamente, não podemos compreendê-la em todas as suas implicações sem uma ampliação do conceito de recrutamento.

Fernando Dores Costa refere-se ao recrutamento como uma “mudança forçada da condição de vida dos indivíduos e também de destruição das unidades econômicas, retirando-lhes os herdeiros e a mão-de-obra jovem”.5 Essa definição do recrutamento

apontada por Costa no contexto da Guerra da Restauração (1641-1668) em Portugal pode ser observada também como uma característica no recrutamento desencadeado nas Colônias. Cristiane Figueiredo Pagano de Mello sintetizou os critérios utilizados pela

3 POSSAMAI, Paulo. “A Mazagão do Rio da Prata: colônia do Sacramento, 1735-1737” In: Possamai (org.). Conquistar e defender: Portugal, Países baixos e Brasil. Estudos de história militar na Idade Moderna. pp.359-379.

4 Termo de vistoria que mandou fazer o Cappam comande Diogo Pinto da Gaia as pedras do Monte chamado Darjon que se achavam na boca do rio de Vicente Pinzón. 10 de julho de 1728. APEP, códice 2, microfilme 19.

Coroa para o engajamento de homens nas três forças militares no século XVIII. Vejamos:

Nas listas de ordenança estavam todos os homens incumbidos da obrigação militar. Entre os filhos segundos das famílias, excetuando-se os de viúvas e de lavradores, escolhiam-se os soldados pagos, que viriam a constituir a tropa de linha. As tropas Auxiliares constituíam-se daqueles isentos do serviço da primeira linha, como dos casados em idade militar.6

Essa lógica de recrutamento que buscava agregar toda população masculina em idade militar estava normatizada por regimentos que regulavam e orientavam as ações dos recrutadores no reino e nas conquistas. São exemplos, nesse sentido, o Regimento das Ordenanças e a provisão de 1574, o “Regimento dos capitães-mores, & mais capitães” de dezembro de 1570 e o regimento de fronteiras de 1645. As prerrogativas dessa legislação estavam presentes nos regimentos que acompanhavam os governadores gerais, como já mencionamos no capítulo anterior. Portanto, a ação de recrutar deveria estar pelo menos na teoria, alinhada às disposições reguladoras das questões militares vindas do Reino. O fato é que, por um lado, a imprescindível necessidade em manter os territórios conquistados e, por outro, a impossibilidade da Coroa em suprir com soldados do reino todas as companhias militares transformaram o recrutamento em um elemento principal de mobilização interna e externa à conquista. Uma ação que em grande medida, foi efetivada de forma violenta e compulsória.

Neste capítulo buscaremos definir essas duas formas de recrutamento: interno e externo ao Grão-Pará, e a forma como elas confluem para a formação da tropa paga na região. Por outro lado, buscaremos refletir sobre o perfil desses soldados e o significado do recrutamento na vida desses sujeitos. Isso sugere uma reflexão que enverede por dois caminhos principais: o recrutamento e os recrutados. Trata-se, sobretudo do entendimento da percepção da Coroa sobre os homens de que dispunha para a composição das tropas militares na capitania. Consideramos aqui o recrutamento como uma ação sistematizada que conecta pessoas e espaços geográficos. Portanto, entendido como um elemento central de mobilização no que diz respeito às constituições de tropas militares no Grão-Pará.

6MELLO, Cristiane Figueiredo Pagano de. “Forças militares no Brasil colonial”. In: Possamai (org.).

Conquistar e defender: Portugal, Países baixos e Brasil. Estudos de história militar na Idade Moderna, p.106.