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DIREITOS FUNDAMENTAIS E DIREITOS DE PERSONALIDADE NO CONTRATO

III. O regime dos direitos de personalidade no Código do Trabalho – sinopse

1. Historicamente, apenas com o Código do Trabalho de 2003 – e, logo depois, com o Código do Trabalho de 2009 - se deu a devida ênfase ao relevo dos direitos fundamentais e dos direitos de personalidade do trabalhador no contrato de trabalho.

É certo que tais direitos não deixavam de ter relevo anteriormente. Simplesmente as questões por eles suscitadas no plano laboral tinham de ser resolvidas por outra via; ou recorrendo à aplicação direta das normas constitucionais em matéria de direitos fundamentais, através do artigo 18.º da CRP; ou aplicando o regime geral de tutela dos direitos de personalidade, constante dos artigos 70.º e ss. do CC.

Vejamos agora como é que este panorama evoluiu com o tratamento legal específico desta matéria no plano laboral.

2. O Código do Trabalho de 2003 regulou especificamente a matéria dos direitos de personalidade nos artigos 15.º e ss., que correspondem, no atual Código do Trabalho, aos artigos 14.º e ss.

Assim, estão hoje consagrados no Código do Trabalho direitos como a liberdade de expressão e de opinião na empresa (artigo 14.º), o direito à integridade física e moral (artigo 15.º), o direito à reserva da vida privada (artigo 16.º), incluindo a proteção de dados pessoais (artigo 17.º), o direito à tutela dos dados biométricos do trabalhador (artigo 18.º), direitos relativos à realização de testes e exames médicos ao trabalhador (artigo 19.º) e, ainda, o direito do trabalhador à reserva, mas na projeção específica dos meios de vigilância à distância (artigos 20.º e 21.º) e o direito do trabalhador à confidencialidade das mensagens pessoais (artigos 22.º). Por outro lado, em secção diferente, o Código do Trabalho trata as matérias relativas ao princípio da igualdade e não discriminação, em geral, no acesso ao emprego e na execução ao contrato de trabalho (artigos 23.º e ss.) e, em especial, o princípio da igualdade de género (artigos 30.º e ss.). Estes regimes, não só se inspiram e desenvolvem largamente o regime civil de tutela dos direitos de personalidade (artigos 70.º e ss. do CC), como constituem a projeção laboral de princípios fundamentais que têm a categoria de direito, liberdade e garantia na nossa Constituição (v. g., artigo 26.º, n.º 1, e artigo 13.º).

Por outro lado, importa ter em conta a perspetiva do Código do Trabalho na abordagem destas matérias. Talvez pela índole exces- sivamente civilista que adota no tratamento de algumas matérias6, o Código do Trabalho aborda a temática dos direitos fundamentais

e de personalidade em universo laboral numa perspetiva igualitarista, uma vez que se refere indistintamente a direitos de personalidade do trabalhador e do empregador (artigo 16.º, n.º 1, e artigo 14.º, n.º 1). Contudo, esta é uma perspetiva formal. É que, os direitos funda- mentais e de personalidade que carecem de uma proteção acrescida no contexto laboral são os direitos do trabalhador, já que é ele que está sujeito à posição de poder do empregador e é ele que envolve a sua personalidade no vínculo laboral, nos termos já referidos.

3. O primeiro direito de personalidade de que o Código do Trabalho se ocupa é o direito à liberdade de expressão e de opinião na empresa.

Consagrado no. artigo 14.º, este direito não reveste, contudo, grande especificidade nesta projeção laboral. Na verdade, trata -se de um direito que é também reconhecido na CRP (artigo 26.º, n.º 1) e que pode também ser associado ao direito à imagem, constante do Código Civil (artigo 79.º) e, por extensão deste, ao direito à palavra, hoje reconhecido como direito autónomo do direito à imagem, que evidencia a expressão corporal do respetivo titular.

O direito de liberdade de expressão e da opinião e o direito à imagem dos trabalhadores já foram objeto de tratamento jurisprudencial.

4. O segundo direito de personalidade de que o Código do Trabalho se ocupa é o direito à integridade física e moral, reportando-o tanto ao trabalhador como ao empregador (artigo 15.º).

De novo, trata -se da projeção laboral de um direito fundamental (artigo 25.º da CRP) e de um direito de personalidade (artigo 70.º, n.º 1, do CC). Todavia, a sua referência no Código do Trabalho é muito útil, nomeadamente quanto ao direito à integridade moral, pelas projeções laborais que tem tido, sobretudo na temática cadente do assédio moral na empresa.

5. O terceiro direito de personalidade previsto no Código do Trabalho é o direito à reserva da vida privada (artigo 16.º). Também previsto como direito fundamental (artigo 26.º, n.º 1, da CRP) e como direito de personalidade (artigo 80.º do CC), em contexto laboral é, porventura, o direito de personalidade do trabalhador mais vulnerável e a que, por isso mesmo, o Código reconhece várias projeções específicas nas normas subsequentes, a que convém dar a devida atenção – assim, as normas sobre proteção dos dados pessoais, exames médicos, meios de vigilância à distância e direito de reserva sobre a correspondência pessoal do trabalhador (artigos 17.º a 22.º do CT) constituem projeções do direito à reserva da vida privada.

O princípio geral nesta matéria, que decorre do Código do Trabalho e que a jurisprudência laboral tem também sublinhado, é o princípio da irrelevância das matérias da esfera privada das partes – destaca -se, aqui, sobretudo, a esfera privada do trabalhador, mas também poderá tratar -se da esfera privada do empregador para o contrato do trabalho. Este princípio de irrelevância das matérias da vida privada das partes para o contrato de trabalho manifesta -se desde a fase de formação do contrato, durante a execução do contrato e para efeitos da sua cessação, tendo sido trabalhado pela jurisprudência com referência a cada uma destas fases.

Na fase da formação do contrato, o direito à reserva da vida privada do trabalhador constitui um limite negativo ao dever da infor- mação do trabalhador ao empregador7. Neste sentido, embora o trabalhador tenha deveres de informação quando se candidata ao

emprego, nos termos do artigo 106.º do CT, tal dever não se estende a matérias da sua vida privada. Estas matérias são enunciadas no artigo 16.º do CT e incluem informações sobre o estado civil, a situação de saúde, o estado de gravidez, a orientação sexual ou as convicções religiosas e partidárias do trabalhador. Por outras palavras, aplicando aqui a teoria das esferas, o candidato a um emprego não tem de informar o empregador sobre aspetos da sua esfera íntima, privada ou familiar.

Assente o princípio geral de prevalência da reserva da vida privada sobre o direito do empregador à informação (ou seja, numa situação de colisão de direitos, prevalece o direito que, no caso, se considera superior, nos termos do artigo 335.º do CC), o empregador não pode questionar o trabalhador sobre estas matérias. Contudo, tem sido admitido que esta proibição possa ser temperada por exigências da própria atividade que o trabalhador vai desenvolver. Ainda assim, convém recordar que o Tribunal Constitucional, em sede de apreciação preventiva da constitucionalidade de algumas normas do Código do Trabalho de 2003 (Ac. TC n.º 306/2003, de 25 de junho8), obrigou à alteração desta norma do Código, justamente para evitar uma formulação excessivamente ampla – e, por

isso, excessivamente intrusiva na vida privada do trabalhador – das exceções à proibição de indagações ao trabalhador sobre aspetos da sua vida íntima ou privada.

Durante a execução do contrato de trabalho, o princípio da reserva da vida privada do trabalhador justifica a proibição de condutas do empregador que sejam invasivas da vida privada do trabalhador9 e, por consequência, a limitação dos poderes de indagação do

Mas, nesta fase do contrato, o direito do trabalhador à reserva da sua vida privada projeta -se também no seu direito de controlo dos dados pessoais que tenha fornecido ao empregador (artigo 17.º, n.º 3 do CT), bem como daqueles dados que tenham sido obtidos, por exemplo, através dos meios de vigilância à distância – voltaremos, um pouco mais tarde, a este ponto.

Por fim, o direito do trabalhador à reserva da sua vida privada, durante a execução do contrato de trabalho, projeta -se na tutela das suas mensagens de natureza pessoal e demais informação de natureza não profissional a que o trabalhador aceda, nomeada- mente, através do correio eletrónico ou de sítios na Internet (artigo 22.º, n.º 1, do CT). Quanto a este ponto, trata -se de uma projeção laboral do direito geral à inviolabilidade da correspondência, numa interpretação atualista e extensiva da noção de “cartas -missivas confidenciais”, subjacente ao artigo 75.º do CC.

Finalmente, para efeitos da cessação do contrato de trabalho10, o direito à reserva da vida privada do trabalhador torna, também,

em princípio, irrelevantes para efeitos de configuração de uma situação de justa causa para despedimento, as condutas que tenham que ver com a sua vida pessoal do trabalhador e, em geral, as suas condutas extralaborais.

Contudo, as características específicas de alguns vínculos laborais ou da atividade laboral em causa exigem alguma elasticidade na aplicação deste princípio geral, que, aliás, a jurisprudência tem reconhecido. Assim, já foram admitidas como justa causa para despedimento condutas do trabalhador que, apesar de serem do seu foro privado, se podem repercutir gravemente no cumpri- mento dos seus deveres laborais ou serem de molde a minar a confiança do empregador na possibilidade da continuação do vínculo laboral.

6. Mais especificamente, o Código do Trabalho contempla ainda a questão do recurso de meios de vigilância à distância no local de trabalho através de equipamento tecnológico (artigo 20.º).

Nesta matéria, é proibida a utilização destes meios para controlar a atividade do trabalhador e determinando que tais meios só podem ser utilizados para fins de segurança de equipamentos e instalações e quando seja comprovado o risco de violação dessa segurança. Adicionalmente, a lei impõe que os trabalhadores sejam informados da existência destes meios de vigilância e faz preceder a sua utilização da autorização da Comissão Nacional de Proteção de Dados.

Este conjunto de regras projeta e protege, no domínio laboral, vários direitos de personalidade: em primeiro lugar, o direito à imagem (artigo 79.º do CC), tanto em sentido restrito como em sentido amplo, uma vez que o equipamento tecnológico pode até incluir a gravação de som; e, depois, o direito à reserva da vida privada (artigo 26.º, n.º 1, da CRP e artigo 80.º do CC), que limita a utilização dos mecanismos de vigilância e proíbe, em todo, a sua colocação em alguns locais, como os vestiário ou as instalações sanitárias da empresa.

7. Merece ainda referência um outro direito fundamental, que também tem relevantes projeções no domínio laboral: o direito à igualdade e não discriminação (artigos 13.º e 26.º, n.º 1, da CRP)11.

É certo que o Código do Trabalho não refere esta matéria a propósito dos direitos de personalidade e, sim, na secção específica do regime do contrato de trabalho, que versa a matéria da igualdade e não discriminação. Simplesmente, o que é importante salientar aqui é que, deste direito fundamental à igualdade e não discriminação no trabalho decorre a proibição geral de condutas discriminató- rias do empregador em relação ao candidato a emprego ou ao trabalhador, em razão dos fatores de discriminação enunciados na lei, como o sexo, a idade, a orientação sexual, a situação familiar, a origem étnica, a raça, etc. (artigo 24.º n.º 1 do CT).

Este princípio geral de não discriminação não significa, de novo, que, por alguma característica específica da atividade laboral em causa ou num determinado contexto empresarial, estes direitos não possam ter de ceder perante outros direitos e interesses, que mereçam uma proteção superior, no caso concreto. De facto, também aqui se pode colocar uma situação de colisão de direitos, a resolver nos termos gerais do artigo 335.º do CC.

IV. Algumas tendências jurisprudenciais em matéria de direitos de personalidade e de direitos fundamentais em