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O reino da aparência

No documento Política e violência em Merleau-Ponty (páginas 75-78)

II. A VIRTUDE POLÍTICA

2.5. O reino da aparência

Nesse sentido, passamos a conhecer outro aspecto da política maquiaveliana, que é o de se desenrolar na aparência. Inicialmente cumpre assinalar que esse desenrolar em aparência não significa que Maquiavel apregoe que na política o válido seja aquilo que deveria ser, em detrimento daquilo que é. Ele se ocupa em falar como um príncipe deve se comportar perante seus súditos e amigos, porém para isso não se fia numa reflexão moral sobre o agir político, pois a moralidade pura no mais das vezes se baseia em preceitos cristãos que correspondem mais a um imaginário abstrato sobre a vida em comum do que à “verdade efetiva” (MAQUIAVEL, 2001, p. 73) dela. Newton Bignotto observa que essa maneira de Maquiavel voltar os olhos para a “verdade efetiva” das coisas é uma leitura realista da política, que é a marca registrada do autor florentino na história do pensamento político moderno e que tal marca foi decisiva para a separação entre ética e política, porém de um modo que a política, apesar de ser autônoma em relação à ética, “não a desconheça ou a despreze” (BIGNOTTO, 2003, p. 31). Em vez de cair num imoralismo absoluto, do qual muitas vezes é injustamente acusado, Maquiavel busca, segundo Bignotto, “saber se o governante pode agir sempre em conformidade com os princípios éticos cristãos aceitos em seu tempo e esperar atingir seus objetivos, ou se deve aprender a seguir outros caminhos, quando confrontado com situações difíceis” (BIGNOTTO, 2003, p. 31). Assim, o apelo àquilo que é “verdadeiro” em detrimento do que é “imaginário” é fundamental para Maquiavel: uma boa ilustração disso é, como mostra Bignotto, a crítica dele a Savonarola, que, sendo “um homem de fé verdadeira e devotado aos valores cristãos, mostrou-lhe que sua

76 forma de agir o havia levado ao desastre” (BIGNOTTO, 2003, p. 31). Desse modo, o agir político não tem como ser totalmente desvinculado dos sujeitos aos quais ele se dirige, nem mesmo em nome dos valores cristãos, de forma que não há ação em si mesma boa ou má em política. Para Merleau-Ponty, isso se deve ao fato de que os atos do poder intervêm num certo estado da opinião pública e têm seu sentido alterado por ela, fazendo com que a doçura possa virar crueldade; a dureza, bondade etc., isso porque a “constelação de consciências” que é o povo tem seu juízo formado por meio de um “processo molecular” que pode alterar completamente o sentido das coisas. A figura dos espelhos dispostos em torno da chama ilustra isso:

[...] como espelhos dispostos em círculo transformam uma fraca chama em algo assombroso, os atos do poder, refletidos na constelação das consciências, se transfiguram, e os reflexos desses reflexos criam uma aparência que é o lugar próprio e em suma a verdade da ação histórica (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 351).

Assim, o poder tem em torno de si como que um halo que só pode ser visto pelos outros e não por quem o exerce. Portanto, diz Merleau-Ponty, “é uma condição fundamental da política se desenrolar na aparência” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 352). Esse desenrolar em aparência também nos remete à fenomenologia de Merleau-Ponty. Em A Estrutura do Comportamento o filósofo dizia que o objeto percebido aqui e agora existe do mesmo jeito que uma verdade não deixa de ser verdadeira quando não se está pensando nela, pois seu modo de ser é o da necessidade lógica e não o da “realidade”. Nos objetos há um perspectivismo e eles se apresentam ao espectador por meio de múltiplos perfis e, quando não percebemos os perfis do objeto atualmente, há um perspectivismo em ideia e uma essência do espectador, e a relação entre um e outro é de significados. Já no que diz respeito à experiência que temos do nosso corpo não temos acesso a uma inspeção ilimitada. Ora, assim também o poder se apresenta àqueles sobre os quais é exercido: por múltiplas perspectivas e abrindo um campo de significados; perspectivas e significados esses que são inacessíveis do ponto de vista de quem o exerce, pois, no que se refere ao corpo,

[...] quando se trata de uma coisa exterior, sei que mudando de lugar poderia ver os lados que me estão ocultos – ocupando a posição que pertencia há pouco a meu vizinho, eu poderia obter uma visão perspectiva nova e fazer um relatório verbal que concordaria com a descrição que meu vizinho fazia há pouco do objeto. Não tenho a mesma liberdade com relação a meu corpo. Bem sei que nunca verei diretamente meus olhos e que, mesmo num espelho, não posso apreender diretamente seu movimento e sua expressão viva. Minhas retinas são para mim um incognoscível absoluto” (MERLEAU-PONTY, 2006, p. 330),

77 “Nota...” é para este o mesmo que suas retinas: os outros podem mirá-las diretamente; ele, não. E ainda que ele tenha acesso à opinião dos outros a respeito de seu poder, ele mesmo nunca terá a experiência direta dele.

Isso está de acordo com o comentário de Lefort a respeito da infâmia em Maquiavel: no capítulo XV d’O Príncipe há uma série de características consideradas boas e más presentes num príncipe, e comumente se deseja que ele possua somente as boas (liberal em vez de miserável, íntegro em vez de astuto, religioso em vez de incrédulo etc.), algo que na verdade não é “inteiramente possível, devido às próprias condições humanas” (MAQUIAVEL, 2001, p. 74). Maquiavel conclui então que ele deve ter apenas prudência suficiente para evitar a infâmia dos vícios que lhe tirariam o Estado, bem como para não se importar em incorrer na infâmia dos vícios que lhe permitiriam conservar o Estado. Aqui vemos duas coisas: a primeira, que existiria uma infâmia “boa” e uma infâmia “ruim”, e a segunda é que o vício, apesar de ser introduzido nesse contexto como o oposto da virtude, figura como elemento a ser mobilizado pela virtù principesca. Lefort explica que, se há ao mesmo tempo uma infâmia tolerável e uma infâmia intolerável, isso é um indicativo de que

[...] a distinção tradicional das virtudes e dos vícios é ao mesmo tempo pertinente e inadequada; se há ‘algo que parece virtude’ e engendra a ruína e ‘algo que parece vício’ e procura a segurança, é talvez porque o que é percebido como tal por poucos não é a verdade de todos, ou o que é percebido como tal no instante muda de figura na duração (LEFORT, 1986, p. 405).

Desse modo, a conduta do príncipe, sinaliza Lefort, não é indissociável da representação que os outros têm dele, de maneira que o que determina se ele agiu ou não com virtù não é simplesmente a utilidade de suas ações – melhor dizendo: a capacidade de preservar o Estado – pois “os objetivos do príncipe só se definem sob o olhar de uma verdade que não tem nada a ver com o útil, onde se enuncia o sentido da relação social” (LEFORT, 1986, p. 405). Para Merleau-Ponty isso evidencia o grau de generalidade onde as relações políticas se estabelecem, e que para Maquiavel não serve de pretexto para o príncipe mentir e enganar seus súditos com o propósito de criar uma imagem falsa de si mesmo, até porque não é assim que as coisas funcionam: é em meio à relação social que a figura do príncipe se desenha, não é completamente desenhada por ele; “o príncipe não é um impostor; [...] mesmo verdadeiras, as qualidades do chefe estão sempre submetidas à lenda, porque elas não são tocadas, mas vistas, porque elas não são conhecidas no movimento da vida que as carrega, mas fixadas em atitudes históricas” (MERLEAU-PONTY, 1960, pp. 352-353). O príncipe assim deve ter consciência da aparência que tem diante de seus súditos, deve saber manejá-la,

78 mas não deve ser refém dela, ou seja, ele deve realmente ter as virtudes que aparenta ter, mas também deve saber mobilizar outras se isso for necessário. Isso é muito mais do que saber fingir: é ter uma virtude política, que torna o príncipe apto a “conceber um empreendimento histórico ao qual todos possam se unir” (MERLEAU-PONTY, 1960, p. 353).

No documento Política e violência em Merleau-Ponty (páginas 75-78)